Docsity
Docsity

Prepare-se para as provas
Prepare-se para as provas

Estude fácil! Tem muito documento disponível na Docsity


Ganhe pontos para baixar
Ganhe pontos para baixar

Ganhe pontos ajudando outros esrudantes ou compre um plano Premium


Guias e Dicas
Guias e Dicas

ADE na análise de 'Uma vela para Dario' de Dalton Trevisan, Manuais, Projetos, Pesquisas de Literatura

Este artigo discute a aplicabilidade da análise do discurso ecossistêmico (ade) em 'uma vela para dario', um conto de dalton trevisan. O autor se mantém fiel à teoria ade, analisando o texto-discurso monológico e abstrato, enfatizando a interação e a defesa da vida. Palavras-chave: ade, análise de texto-discurso, interação, defesa da vida.

Tipologia: Manuais, Projetos, Pesquisas

2022

Compartilhado em 07/11/2022

Gustavo_G
Gustavo_G 🇧🇷

4.6

(43)

226 documentos

1 / 12

Toggle sidebar

Esta página não é visível na pré-visualização

Não perca as partes importantes!

bg1
5
Ecolinguística: Revista Brasileira de Ecologia e Linguagem, v. 07, n. 02, p. 05-16, 2021.
UMA INTERPRETAÇÃO DO CONTO ‘UMA VELA PARA DARIO’ DE DALTON
TREVISAN PELA ADE
Ubirajara Moreira Fernandes (Especialista em literatura brasileira aposentado e ambientalista)
Abstract: The main objective of this article is to show the applicability of Ecosystemic Discourse
Analysis (EDA) in the analysis of literary text-discourses, illustrating with “Uma vela para Dario”
by Dalton Trevisan. I intend to strictly adhre to the principles of EDA, part of the version of
Ecolinguistics called Ecosystemic Linguistics. The article begins by giving an outline of the
theory. Because it is a relatively new theory, many attempts to apply it end up largely using the
language of other theories, such as Bakhtin's theory and that of traditional DA. Even though the
prototypical text-discourse in EDA is the dialogue, it can also be used for analyzing monological
text-discourses and even highly abstract ones. For this theory the most important point in a text-
discourse is not of political and/or ideological nature, but the defence of life and the fight against
avoidable suffering. Political ideologies are subsidiaries of ecoideology. Due to the fact that it
focuses on life, it emphasizes interactions, communicative or not, in its object.
Key-words: EDA; analysis of text-discourse; interation; defence of life; fight against avoidable
suffering.
Resumo: O principal objetivo deste artigo é mostrar a aplicabilidade da Análise do Discurso
Ecossistêmica (ADE) na análise de textos-discursos literários, exemplificando com “Uma vela
para Dario” de Dalton Trevisan. Pretendo me ater estritamente aos princípios da ADE, parte da
versão da Ecolinguística chamada Linguística Ecossistêmica. Por isso, começo apresentando um
esboço da teoria. Por ser relativamente nova, muitas tentativas de aplicação dela acabam usando
em grande parte a linguagem de outras teorias, como a teoria de Bakhtin (1981) e a das AD
tradicionais. Mesmo tendo o texto-discurso dialógico como prototípico, a ADE pode debruçar-se
sobre textos-discursos monológicos e até textos-discursos altamente abstratos. Para ela, o busílis
de um texto-discurso não são questões político-ideológicas, mas a defesa da vida e a luta contra o
sofrimento evitável. As ideologias político-partidárias são subsidiárias da ecoideologia. Por
centrar-se na vida, ela enfatiza no seu objeto as interações, comunicativas ou não.
Palavras-chave: ADE; análise de texto-discurso; interação; defesa da vida; luta contra sofrimento
evitável.
pf3
pf4
pf5
pf8
pf9
pfa

Pré-visualização parcial do texto

Baixe ADE na análise de 'Uma vela para Dario' de Dalton Trevisan e outras Manuais, Projetos, Pesquisas em PDF para Literatura, somente na Docsity!

Ecolinguística: Revista Brasileira de Ecologia e Linguagem , v. 0 7 , n. 0 2 , p. 05 - 16 , 20 21. UMA INTERPRETAÇÃO DO CONTO ‘UMA VELA PARA DARIO’ DE DALTON TREVISAN PELA ADE Ubirajara Moreira Fernandes ( Especialista em literatura brasileira aposentado e ambientalista ) Abstract : The main objective of this article is to show the applicability of Ecosystemic Discourse Analysis (EDA) in the analysis of literary text-discourses, illustrating with “Uma vela para Dario” by Dalton Trevisan. I intend to strictly adhre to the principles of EDA, part of the version of Ecolinguistics called Ecosystemic Linguistics. The article begins by giving an outline of the theory. Because it is a relatively new theory, many attempts to apply it end up largely using the language of other theories, such as Bakhtin's theory and that of traditional DA. Even though the prototypical text-discourse in EDA is the dialogue, it can also be used for analyzing monological text-discourses and even highly abstract ones. For this theory the most important point in a text- discourse is not of political and/or ideological nature, but the defence of life and the fight against avoidable suffering. Political ideologies are subsidiaries of ecoideology. Due to the fact that it focuses on life, it emphasizes interactions, communicative or not, in its object. Key-words : EDA; analysis of text-discourse; interation; defence of life; fight against avoidable suffering. Resumo : O principal objetivo deste artigo é mostrar a aplicabilidade da Análise do Discurso Ecossistêmica (ADE) na análise de textos-discursos literários, exemplificando com “Uma vela para Dario” de Dalton Trevisan. Pretendo me ater estritamente aos princípios da ADE, parte da versão da Ecolinguística chamada Linguística Ecossistêmica. Por isso, começo apresentando um esboço da teoria. Por ser relativamente nova, muitas tentativas de aplicação dela acabam usando em grande parte a linguagem de outras teorias, como a teoria de Bakhtin (1981) e a das AD tradicionais. Mesmo tendo o texto-discurso dialógico como prototípico, a ADE pode debruçar-se sobre textos-discursos monológicos e até textos-discursos altamente abstratos. Para ela, o busílis de um texto-discurso não são questões político-ideológicas, mas a defesa da vida e a luta contra o sofrimento evitável. As ideologias político-partidárias são subsidiárias da ecoideologia. Por centrar-se na vida, ela enfatiza no seu objeto as interações, comunicativas ou não. Palavras-chave : ADE; análise de texto-discurso; interação; defesa da vida; luta contra sofrimento evitável.

1. Introdução Esta é minha terceira incursão no domínio da Ecolinguística, mais especificamente no âmbito da parte da Linguística Ecossistêmica chamada Análise do Discurso Ecossistêmica. A primeira é um miniartigo, publicado em no Boletim do GEPLE (FERNANDES 2020a). Sob forma revista e ampliada esse miniartigo foi publicado em inglês em Fernandes (2020b). Minha segunda publicação de cunho ecolinguístico é Fernandes (2021). A terceira é em parceria com Márcio M. G. Silva (SILVA; FERNANDES, 2021). A ADE já foi objeto de todo o número anterior de ECO-REBEL. Os artigos que o integram já dão uma boa ideia sobre as bases teóricas e as possibilidades de aplicação da teoria. O primeiro artigo, por exemplo, é uma exposição dos princípios da teoria, em inglês (COUTO; COUTO; SILVA, 2021). No presente artigo, gostaria de voltar à questão da aplicação dela a um caso específico, mesmo porque muitos ensaios feitos presumivelmente em ADE são, na minha opinião, insatisfatórios. A ADE é uma teoria de análise de textos-discursos relativamente jovem. Ela surgiu em 2013 e o primeiro livro dedicado a ela é de 2015. Existem também uns poucos artigos e capítulos de livros, além de dissertações de mestrado e teses de doutorado, bibliografia que pode ser vista em Couto (2020b) e no site da Linguística Ecossistêmica, sobretudo na seção ADE e na do site Linguística Ecossistêmica (www.ecoling.unb.br ). A despeito de haver essa pouca literatura, os autores das tentativas de análise que tenho visto por aí aparentemente não a leram. Às vezes citam literatura secundária, em vez de ir às fontes primeiras. Notei que ignoram o fato de a ADE ser parte da versão da Ecolinguística chamada Linguística Ecossistêmica, sendo esta última Ecologia Linguística, não Linguística Ecológica. Por não lerem a bibliografia original pertinente, pelo menos não o demonstram em seus ensaios, muitos autores parecem pensar que usar palavras como “ecossistema”, “meio ambiente”, “ecologia”, “interação”, “diversidade” e outras faz um ensaio ser linguístico-ecossistêmico e, no caso, discursístico-ecossistêmico, um ensaio em ADE. Afora isso, muitos desses ensaios poderiam ter sido feitos em outros arcabouços teóricos e até sem arcabouço teórico nenhum; um jornalista bem-informado poderia fazer algo muito parecido. Como observou a ecolinguista chilena Celia González, “está circulando una mala versión del ADE, que lo mezclan con el AD crítico, y con la propuesta de Arran Stibbe” (comunicação pessoal). Trocado em miúdos, esses ensaios não usam a linguagem da ADE nem a da Linguística Ecossistêmica (de que ela faz parte) nem a da Ecologia, de que a Linguística Ecossistêmica faz parte. Quando usam termos, conceitos e categorias presumivelmente pertencentes a essas disciplinas, com muita frequência o fazem de modo inadequado. O conceito mais usado inadequadamente é o de “ecossistema”. Várias publicações linguístico-ecossistêmicas salientam o fato de que, para sermos fiéis ao conceito original de ecossistema na Ecologia, só podemos considerar determinada situação um ecossistema se ela consistir em interações entre alguns interagentes em algum lugar. Não sendo esse o caso, quando muito se pode falar em “ecologia”, termo mais geral, como em “ecologia das línguas”. Por esses e outros motivos, decidi fazer uma tentativa de análise, pela ADE, do conto “Uma vela para Dario”, de Dalton Trevisan, usando meu tempo livre de aposentado como professor de Literatura Brasileira e dando vazão ao meu gosto pela Ecologia, inclusive o ambientalismo, além da minha amizade com um estudioso de LE/ADE, que me pôs em contato com seu criador. Esse conto já foi objeto de análise pela ADE por Couto; Fernandes (2021), tentativa de análise que, a meu ver, contém muito pouco de ADE, como discutida na literatura original. Os capítulos teóricos são aceitáveis, mas onde se fala do conto passa-se longe do verdadeiro espírito da ADE. É preciso pôr as coisas no seu devido lugar. A minha análise do conto pode não ser a melhor possível, e não

Quando se fala em defesa da vida, ela é entendida em seu sentido biológico: os seres vivos nascem, crescem e morrem. Daí partir a ADE do ecossistema natural da língua: pessoas (P) de carne e osso convivendo em um lugar (T) específico e interagindo entre si pelo modo tradicional de interagir, que é sua linguagem (L). De modo geral, se parte da realidade concreta, físico-natural para, a partir dela, se chegar à dimensão mental e à social bem como às intersecções entre elas: a dimensão psicofísica e a psicossocial. No caso do conto a ser analisado mais abaixo, trata-se de um incidente no meio da rua, envolvendo diversas personagens. Mesmo sendo ficção, é um simulacro da vida real (SILVA, 2017). Aqui a obra de arte parece ser realmente de caráter mimético. Quando se diz que a ADE olha para seu objeto de modo abrangente, holístico, é necessário acrescentar que cada investigador tem que dirigir o foco para um aspecto microscópico dele, fazendo uso do método da focalização. Como proposto por Marx e Engels no início de A ideologia alemã , a LE/ADE parte do mundo real, no caso, de pessoas de carne e osso, vivendo e convivendo em determinado lugar, também real. Trata-se da sua dimensão natural, tecnicamente denominada ecossistema natural da língua. Mas, essas pessoas têm um cérebro e uma mente (dimensão mental) e convivem em sociedade (dimensão social). As AD tradicionais se atêm geralmente ao social, quando muito chegando ao mental. Geralmente ignoram solenemente a dimensão natural. A Sociologia dominante tem horror ao mundo real, com seus odores. Pois bem, a ADE leva os três em conta, sempre na medita do possível, é claro. Ela é de cunho biopsicossocial. Como exige a Linguística Ecossistêmica, é necessário distinguir as relações do objeto de estudo com seu entorno (sua exoecologia) das relações que se dão em seu interior (sua endoecologia). A LE/ADE é multimetodológica e multidisciplinar. A ecometodologia que ela segue, permite conciliar a visão macroscópica com a microscópica fazendo uso método da focalização (GARNER, 2004; COUTO, 2018). Por outros termos, ela consegue conciliar a visão holística do objeto, sua exoecologia, com a análise de partes específicas desse objeto, na visão microscópica, sua endoecologia. No site da Linguística Ecossistêmica há uma seção dedicada à ADE (www.ecoling.unb.br ), com muito material de interesse para a área. 3.Contextualização: visão macroscópica da exoecologia do conto Vejamos um pouco da vida do autor de “Uma vela para Dario”, Dalton Jérson Trevisan. Ele nasceu em Curitiba em 14 de junho de 1925, onde vive até hoje (início de março de 2021) com seus 96 anos. Trevisan é tido como um dos grandes contistas brasileiros, assunto que tem sido bastante explorado no âmbito dos estudos literários. O conto em questão foi publicado pela primeira vez em Cemitério dos Elefantes (Rio de Janeiro: Record, 1964) e passou a integrar diversas outras coletâneas ulteriormente. Eu estou usando a versão que saiu em Vozes do retrato: quinze histórias de mentiras e verdades (São Paulo: Ática, 1991, p. 25-26). Trata-se de um miniconto de apenas duas páginas, com cerca de 640 palavras, número que pode variar conforme a edição. Como disse Waldman (1997, p. 139), Trevisan lança mão da “subtração que basicamente significa suprimir e ‘enxugar frase, trechos de contos, reescritos estes sistematicamente a cada nova edição”, pois ele “tem na mira o haicai”. O próprio autor disse certa feita que vai "do conto para o soneto e dele para o haicai". Trata-se de um conto típico de Dalton Trevisan. Além das inúmeras análises que lhe têm sido dedicadas no âmbito dos estudos literários, ele tem sido objeto de pelo menos dois curtas- metragens em 16mm, como o de Rodrigo Ferrari Caetano (1994) e o de Samantha Capdeville (1998). Trevisan começou a dar vazão a suas inquietações literárias ainda como estudante secundarista, criando o jornal Tingui em 1940, publicado até 1943 e no qual publicou Sonetos tristes e Visos ,

ambos em 1941, obras que parece que ele renegou. Em 1946, ele cria a revista Joaquim , que durou até 1948. Nesta revista publicou o livro, Sete anos de pastor (1946). Trata-se de duas juvenilidades de Trevisan, como diz Carollo (1987). No ano anterior já havia publicado a novela Sonata ao luar (1945). Nove anos depois publicou Guia Histórico de Curitiba (1954) e Crônicas da Província de Curitiba (1954) em formato popular. Uma década depois trouxe a lume Cemitério dos Elefantes (1964 ), seguido de Morte na Praça (1965) e Desastres do Amor (1968). Nesse mesmo ano recebeu o Prêmio Jabuti, no I Concurso Nacional de Contos, promovido pelo Estado do Paraná. Desde a década de cinquenta do século passado, Trevisan tinha o hábito de publicar sua produção em forma de folhetos, como se faz na literatura de cordel e, mais uma vez como este, retratando o meio em que vivia, no caso, a cidade de Curitiba. Mas, o livro que marcou sua vida de modo indelével é O Vampiro de Curitiba (1965). A tal ponto que o autor passou a ser chamado justamente de O Vampiro de Curitiba em parte devido ao seu temperamento arredio, recluso, avesso a entrevistas. Trevisan continuou publicando. Entre as obras que vieram a seguir contam-se A Guerra Conjugal (1970), Crimes da Paixão (1978), Ah, É (1994), O Maníaco do Olho Verde (2008), Violetas e Pavões (2009), Desgracida (2010), O Anão e a Ninfeta (2011), entre outras. Em 1959 Dalton Trevisan foi agraciado com o Prêmio Jabuti da Câmara Brasileira do Livro, por Novelas Nada Exemplares , que compilava cerca de vinte anos de produção literária. Dalton se dedicou quase exclusivamente ao conto. Ele só publicou um romance, A Polaquinha , em 1985. Dalton Trevisan ganhou muitos outros prêmios. Um deles é o Prêmio Ministério da Cultura de Literatura, em 1996, pelo conjunto da obra. Recebeu ainda, juntamente com Bernardo de Carvalho, o I Prêmio Portugal Telecom de Literatura Brasileira, pelo livro Pico na Veia, em 2003. Um segundo foi o Prêmio Camões de 2012, em sua 24.ª edição. Este último é muito importante para os escritores de língua portuguesa por ser patrocinado por Brasil e Portugal, em conjunto. Um terceiro é o prêmio Clarisse Linspector da Fundação Biblioteca Nacional, em 2008, por O maníaco do olho verde. O conto “Uma vela para Dario” em si é representativo das “mini-histórias” de Trevisan, que, como vimos, namora com o haicai. A seguir, vou falar do próprio conto, sua endoecologia.

4. Visão microscópica da endoecologia do conto Nesta seção do artigo vou aproximar o foco diretamente no conto, a fim de avaliá-lo endoecologicamente, ou seja, sua interioridade. Para tanto, faz-se necessário focar primeiro em sua tessitura, como ele é organizado, enfim, o texto, o que será feito na primeira subseção. Na segunda falarei do discurso propriamente dito. Texto e discurso não são entidades cartesianamente separadas. Eles fazem parte de um todo, pois todo discurso vem materializado em um texto assim como todo texto contém algum discurso, motivo pelo qual a ADE sugere o composto “texto- discurso”. Se não contiver discurso, não será texto; se for discurso, está em um texto. Eles são as duas faces da mesma moeda. No entanto, para efeitos operacionais, de análise, pode-se dirigir o foco ora para um deles, ora para o outro, mas sempre mantendo em mente o que diz o método da focalização (SILVA, 2020). Por exemplo, quando o operador de uma câmera aproxima o foco e faz um close , é possível ver detalhes do rosto de uma pessoa na arquibancada de um estádio de futebol. Porém, todas as demais pessoas continuam lá, mesmo que momentaneamente não estejam sendo vistas (não estejam no foco). Tanto que basta recuar a câmera para que fiquem visíveis de novo (GARNER, 2004, p. 202). Olhar para o conto partindo da perspectiva da ADE é um procedimento bastante semelhante.

No momento de criação do texto, o leitor (p 2 ) não está presente, motivo pelo qual o escritor (p 1 ) se cinde em “eu falante” (EF) e “eu ouvinte” (EO). No fluxo interlocucional do autor com seu alter-ego, as réplicas deste último não aparecem, o que está representado por reticências. Só num segundo momento, quando ocorre o término do conto e ele é recebido por algum leitor, p 2 pode entrar em ação, embora esse momento não esteja mostrado no fluxo. No interior do conto, quase todas as interações se dão em silêncio, não verbalmente. Só quase no meio do conto uma “velhinha de cabeça grisalha grita que ele está morrendo” (uma exclamação), mas não há resposta verbal; logo em seguida, o motorista do táxi pergunta “quem pagará a corrida?”, “concordam em chamar a ambulância”; “alguém informa da farmácia na outra rua”; “um terceiro sugere lhe examinem os papéis”; “A última boca repete – Ele morreu !” (outra exclamação). Por olhar para a vida real, nua e crua, a linguagem do texto é bastante enxuta. As frases são curtas, sem muitas subordinadas ou orações relativas. Há poucos adjetivos; as exceções visam a salientar que quem mais teve compaixão pelo sofrimento de Dario foram uma “velhinha de cabeça grisalha”, um “senhor gordo”, um “menino de cor e descalço”, ou seja, pessoas que de alguma forma fogem do comum. As orações são curtas, os períodos e parágrafos são curtos e sempre vazados em uma linguagem coloquial, sem termos especiosos. Os verbos de ação estão todos no presente do indicativo, não no pretérito, que é o tempo narrativo mais comum. O presente do indicativo sequer é o “presente histórico” das gramáticas expositivas, em que ele é usado em lugar do pretérito. Parece que o autor está fazendo uma descrição objetiva de algo que está vendo. A propósito de “Debaixo da ponte preta”, outro texto de Trevisan, Waldman (1997, p. 141-145) disse que na obra de Trevisan “evita-se a oração subordinada, e vai-se delineando a oração nominal como uso predileto do autor” (141). Parece que ele gostaria de escrever “ministorias” como se fossem “haicai” em prosa, termos que ele mesmo usou. Waldman continua dizendo que Trevisan apresenta “ flashes do cotidiano em estado bruto” (143), com um “minimalismo de forma”. Do ponto de vista da relação linguagem-mundo, há uma outra asserção muito interessante dessa crítica. De acordo com ela, “Daltan procura fazer com que o que ele diz seja presença da coisa e não discurso sobre a coisa”. Assim, Trevisan diverge daqueles escritores que valorizam mais os malabarismos, acrobacias e pirotecnias verbais do que os problemas da vida das pessoas em seu meio natural. Mas, isso não significa que ele deixe a forma inteiramente de lado. Tanto que “nos seus melhores contos o método é francamente poético”. Assim, “atrás da narrativa, a poesia; atrás

da poesia, a narrativa”, mesmo que “sua independência em solo crítico-alegórico [esteja - UMF] fora de qualquer programa de grupo pré-estabelecido”. O fato é que “um certo coloquialismo [.....] dá o tom geral”. Trevisan faz uso da “prática hiper-realista de transferir para o texto linguagens prontas, ready mades , clichês que vêm do mundo da experiência cotidiana”. Tudo isso pode ser visto também em “Uma vela para Dario”. A “introdução” se dá sem nenhuma preparação, mas captando algo acontecendo na rua, com um rápido “desenvolvimento” e uma “conclusão” em suspenso, sem happy end. De qualquer forma, a narrativa obedece a uma sequência lógica, não há antecipação nem postergação de cenas/episódios, mas uma sequência lógico-natural, da vida como ela é. Por estar intimamente ligado ao objeto, como veremos com Waldman mais abaixo, há coerência e coesão textuais. Passemos ao discurso por trás desse texto. 4.2. O discurso Existem inúmeras definições do termo ‘discurso’. Para o que interessa no presente contexto, podemos dizer que discurso não passa daquilo que o autor quis dizer ao produzir o texto mais aquilo que os leitores reais e potenciais veem nele. O que acontece no conto em tela? Dito de outro modo, que sentidos e significados estão embutidos nesse texto? Abramos as cortinas a fim de vermos o que acontece no cenário em que a ação se desenrola, com tudo que lhe diz respeito: lugares, pessoas, objetos, ações, atitudes individuais, valores sociais etc. Como é comum na obra de Trevisan, o conto mostra um instantâneo da vida na cidade, aquilo que em inglês se chama footage que, mais do que um único fotograma em filme antigo corresponderia ao que se chama sequência, ou sequência de fotogramas. Não se sabe o que veio antes do momento inicial, em que “Dario vem apressado, guarda-chuva no braço esquerdo” e depois que “o toco de vela apaga-se às primeiras gotas da chuva, que volta a cair”, última frase do conto. O que temos é um acontecimento sui generis na rua que se torna o leitmotiv de tudo que se passa no conto: todas as interações e ausência de interação se dão em função desse acontecimento, um transeunte que de repente se sente mal, “diminui o passo até parar, encosta-se a uma parede”. O mal era tão intenso que ele “por ela (a parede - UMF) escorrega, senta-se na calçada” e “descansa na pedra o cachimbo”, o último ato consciente que praticou, pois, logo em seguida começou a agonizar e acabou morrendo. O que acontece depois é uma amostra do que se vê quando alguém precisa de ajuda nas ruas das grandes cidades. Muitos curiosos se aglomeram em volta dele, outros espiam pela janela, como as “crianças de pijama”. Subitamente, “a velhinha de cabeça grisalha grita que ele está morrendo”. Alguns tentam colocá-lo em um táxi para lhe prestar socorro, mas o taxista deseja saber quem vai pagar a corrida e, diante do silêncio, recusa-se a levá-lo. Outros pensam em levá-lo até a farmácia, mas, como ele é “muito pesado”, largam-no “na porta de uma peixaria” com o que ele fica coberto de moscas. Se todo mundo que viu a cena agisse como recomenda a Ecologia Profunda, teriam intervindo o máximo possível para amenizar o sofrimento de Dario ou, se isso já não adiantasse mais nada, pelo menos para resguardar sua dignidade, não o deixando ao relento, sob a chuva, próximo a uma peixaria e coberto de moscas. A autorrealização pessoal aqui falou mais alto do que o dever de interferir em prol da vida e contra o sofrimento evitável. Dario devia ser bem de vida. Infelizmente, porém, quando se viu caído anônimo na rua, enfartando, era como qualquer morador de rua que luta pela sobrevivência no mundo “natural”. Na situação em que se encontrava, de nada servia sua presumível boa situação social. Nesse momento o que vale é a luta pela vida. Não é para menos que Couto (2015) publicou um pequeno texto demonstrando que “Todos são iguais perante a natureza”. Ela não faz distinção entre os que têm

morrendo”. Por isso era praticamente impossível defender a vida de Dario. Mas, como ela já estava se esvaindo, pelo menos tentar aliviar o sofrimento da passagem, de cujo destino ninguém retornou para dizer como é. É bem verdade que “o rapaz de bigode pede aos outros se afastem e o deixem respirar. Abre-lhe o paletó, o colarinho, a gravata e a cinta”. É verdade também que “um senhor piedoso dobra o paletó de Dario para lhe apoiar a cabeça. Cruza as suas mãos no peito” e que “um menino de cor e descalço vem com uma vela, que acende ao lado do cadáver”. Infelizmente, porém, ninguém se engaja na causa para valer, não quer se envolver. Eles intervêm até certo ponto, pois, como se vê no final do conto, o corpo é literalmente largado às moscas, debaixo de chuva. De todos que intervieram ou deixaram de intervir até certo ponto, quem menos poderia ser inculpado é justamente o menino, que, além de pobre – estava “descalço” – era criança. Como tal, as medidas que se faziam necessárias estavam além de sua capacidade. Seguindo a proposta de intervenção da Ecologia Profunda, a ADE sugere a seus praticantes que lutem em prol da vida e contra sofrimento evitável. No caso, o sofrimento era inevitável, pois o enfarte se devia a causas anteriores ao cenário em que a história se passa. Sequer foi possível salvar a vida de Dario, pois não havia médicos entre os que se aproximaram dele quando agonizava. Porém, ninguém se envolveu para valer e acompanhou o enfartante até um pronto socorro. O que é pior, já no final, com Dario já morto, abandonaram seu corpo na rua.

5. Observações finais Existem outras versões da Ecolinguística que se preocupam com a vida não humana, como a praticada por Arran Stibbe. O que ele faz é muito bem-vindo. No entanto, ele praticamente só defende a vida dos animais não humanos, com o que exclui os humanos de suas preocupações (STIBBE, 2015). A ADE é mais abrangente, seguindo a Ecologia Profunda, cujos seguidores frequentemente ouvem a pergunta: “Eles não são muito mais amigos dos animais do que dos humanos?”, vale dizer, não seriam eles misantropos? De acordo com Arne Naess, “a resposta consiste em que seja lá qual for a intensidade de sua luta pelos animais, ou pela vida selvagem, eles reconhecem a obrigação especial que têm pelos humanos”. Isso porque “o que procuramos não é uma mudança de cuidado de humanos para não humanos, mas uma extensão e aprofundamento de cuidado para com ambos” (NAESS, 1992). Embora Stibbe fale em Ecologia Profunda, em geral ele não inclui em suas preocupações os humanos que sofrem. Pois bem, a ADE se preocupa com a vida na face da terra em geral, o que inclui a vida humana e a não humana, de todos os seres vivos e até dos não vivos. A Ecocrítica (GLOTFELTY; FROMM, 1996), praticada pelo pessoal da Literatura que se interessa por questões da natureza, tampouco é abrangente como a ADE. Com efeito, ela está preocupada é com “o estudo das relações entre literatura e meio ambiente físico”, como diz Glotfelty na Introdução, não direta e explicitamente com a defesa da vida. Ela acrescenta que “assim como a crítica feminista examina a linguagem e a literatura da perspectiva da consciência sobre gênero, e a crítica marxista enfatiza os modos de produção e a questão de classe econômica na leitura dos textos, a ecocrítica assume uma postura terrocêntrica nos estudos literários” (GLOTFELTY, 1996, p. xviii). Vale dizer, não há uma ênfase na vida na face da terra, mas no meio ambiente físico. Para a ADE a ênfase na vida é o busílis da questão. Por fim, gostaria de acrescentar que o capítulo 5 da Parte II de Couto; Fernandes (2021) é dedicado à análise de “Uma morte para Dario”. Porém, as autoras abordaram o conto de uma maneira bastante diferente da que tentei fazer aqui. Elas se utilizaram talvez em demasia de conceitos de outras teorias sem necessariamente levar em conta como se pratica multidisciplinaridade adequadamente. Mas, é uma boa abordagem do assunto, abordagem que pode complementar a que tentei apresentar no presente artigo.

Referências BAKHTIN , Mikhail. Marxismo e filosofia da linguagem. São Paulo: HUCITEC, 1981, 2ª ed. BENVENISTE, Émile. Problemas de linguística geral II. Campinas: Pontes, 1989. CAROLLO, Cassiana Lacerda. Tingui: um capít7lo das juvenilidades de Dalton Trevisan. Revista letras n. 36, 1987, p. 260-272. DOI: http://dx.doi.org/10.5380/rel.v36i0. COUTO, Elza; FERNANDES, Eliane. Análise do discurso ecossistêmica ( ADE ): teoria e prática. Brasília: PPGL/UnB, 2021, e-book disponível em http://www.ecoling.unb.br/publicacoes/livros/e-books COUTO, Hildo H. do. Todos são iguais perante a natureza. Ilinguagem e Glotopolítica 17/08/2015. Disponível em: http://ilinguagem.blogspot.com/2015/08/todos-sao-iguais-perante-natureza.html _______. Notas sobre o conceito de texto em linguística ecossistêmica. ECO-REBEL v. 3, n. 2, 2017, p. 22-36. Disponível em: https://periodicos.unb.br/index.php/erbel/article/view/9677/ _______. A metodologia na linguística ecossistêmica. ECO-REBEL v. 4, n. 2, 2018, p. 18-33. Disponível em: https://periodicos.unb.br/index.php/erbel/article/view/12355/ _______. Discursística. Ilinguagem e glotopolítica , 2020a. Disponível em: http://ilinguagem.blogspot.com/2020/03/discursistica.html _______. Análise do Discurso Ecossistêmica – ADE. Árboles y rizomas v. 2, n. 2, 2020b, p. 1- 14 (Universidad de Santiago de Chile). Disponível em: http://www.revistas.usach.cl/ojs/index.php/rizomas/article/view/4634/ https://doi.org/10.35588/ayr.v2i2. COUTO, Hildo. A linguagem rural da região de Major Porto, município de Patos de Minas (MG) : uma visão linguístico-ecossistêmica. Campinas: Pontes, 2021. COUTO; Hildo; COUTO, Elza. 2019. Uma leitura ecolinguística de “Se eu quiser falar com Deus” de Gilberto Gil. ECO-REBEL v. 5, n. 2, 2019, p. 40 - 53. Disponível em: https://periodicos.unb.br/index.php/erbel/article/view/27661/ COUTO; Hildo; COUTO, Elza; SILVA, Anderson. Ecosystemic discourse analysis. ECO-REBEL v. VI, n. 1, 2021, p. 5-17. Disponível em: https://periodicos.unb.br/index.php/erbel/article/view/36017/ COUTO; Hildo; COUTO, Elza; BORGES, Lorena. Análise do discurso ecológica - ADE. Campinas: Pontes, 2015. FERNANDES, 2020a. “Mas ele não é corrupto”. Boletim do GEPLE 3, 2020a. Disponível em: http://www.ecoling.unb.br/images/numero3.pdf _______. “But he is not corrupt”: Not being corrupt justifies any delinquency and crime. ECO- REBEL v. 6, n. 4, 2020b. p. 73-77. Disponível em: https://periodicos.unb.br/index.php/erbel/article/view/35675/ _______. 2021. Notas sobre sofrimento, dor, respeito, compaixão e medo, na análise de discursos pela ADE. ECO-REBEL v. 7, n. 1, 2021, p. 46-53. Disponível em: https://periodicos.unb.br/index.php/erbel/article/view/36698/ GARNER, Mark. Language : an ecological view. Berna: Peter Lang, 2004. GLOTFELTY, Cheryl; FROMM, Harold (orgs.). The ecocriticism reader. Athens: The University of Georgia Press, 1996.