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Tipologia: Notas de estudo
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OS ERRANTES: UMA INTRODUÇÃO Fomos errantes desde o início. Conhecíamos a posição de todas as árvores num raio de duzentos quilômetros. Quando os frutos ou as castanhas amadureciam, lá estávamos nós. Seguíamos os rebanhos em suas migrações anuais. Deleitávamos-nos com a carne fresca. Por ações furtivas, estratagemas, emboscadas e ataques de força bruta, alguns de nós realizávamos em conjunto o que muito de nós, sozinhos, não podíamos conseguir. Dependíamos uns dos outros. Viver por conta própria era uma idéia tão absurda quanto fixar residência. Trabalhando juntos, protegíamos os filhos dos leões e das hienas. Ensinávamos a eles as habilidades de que iriam precisar. E as ferramentas. Naquela época, como agora, a tecnologia era a chave de nossa sobrevivência. Quando a seca era prolongada, ou quando o frio se demorava no ar do verão, nosso grupo partia - às vezes para terras desconhecidas. Procurávamos um lugar melhor. E, quando não nos dávamos bem com os outros em nosso pequeno bando nômade, partíamos à procura de um grupo mais amigável em algum outro lugar. Sempre podíamos começar de novo. Durante 99,99% do tempo, desde o aparecimento de nossa espécie, fomos caçadores e saqueadores, errantes nas savanas e nas estepes. Não havia guardas de fronteiras então, nem funcionários da alfândega. A fronteira estava por toda parte. Éramos limitados apenas pela Terra, pelo oceano e pelo céu - e mais alguns eventuais vizinhos rabugentos. No entanto, quando o clima era adequado, quando os alimentos eram abundantes, tínhamos vontade de ficar no mesmo lugar. Sem aventuras. Engordando. Sem cuidados. Nos últimos 10 mil anos - um instante em nossa longa história - abandonamos a vida nômade. Domesticamos as plantas e os animais. Por que correr atrás do alimento quando se pode fazer com que ele venha até nós? Apesar de todas as suas vantagens materiais, a vida sedentária nos deixou irritáveis, insatisfeitos. Mesmo depois de quatrocentas gerações em vilas e cidades, não esquecemos. A estrada aberta ainda nos chama suavemente, quase uma canção esquecida da infância. Atribuirmos um certo romance aos lugares remotos. A minha suspeita é de que o apelo tem sido meticulosamente elaborado pela seleção natural, como um elemento essencial de nossa sobrevivência. Longos verões, invernos amenos, ricas colheitas, caça abundante - nada disso dura pra sempre. Esta além dos nossos poderes predizer o futuro. As catástrofes têm um modo de nos atacar sorrateiramente, nos pegando desprevenidos. Talvez você deva sua vida, a de seu bando ou, até mesmo, a de sua espécie a uns poucos inquietos - levados, por um desejo que mal podem expressar ou compreender, a terras desconhecidas e a novos mundos. Herman Melville, em Moby Dick, falou pelos errantes de todas às épocas e meridianos: “Sou atormentado por um desejo constante pelo que é remoto. Gosto de navegar mares proibidos...”. Para os antigos gregos e romanos, o mundo conhecido compreendia a Europa e reduzidas Ásia e África, tudo circundado por um intransponível Oceano do Mundo. Os viajantes poderiam encontrar seres inferiores, chamados bárbaros, ou seres superiores, chamados deuses. Toda árvore tinha a sua dríade, toda região o seu herói lendário. Mas não havia assim tantos deuses, ao menos no inicio, talvez apenas uns doze. Viviam nas montanhas, sob a Terra, no mar ou lá em cima do céu. Mandavam mensagens às pessoas, intervinham nos assuntos humanos e cruzavam conosco. À medida que passava o tempo e que a capacidade exploratória dos homens acertava o seu passo, ocorriam surpresas: os bárbaros podiam ser tão inteligentes quanto os gregos e os romanos. A África e a Ásia eram maiores do que se tinha pensado. O Oceano do Mundo não era intransponível. Havia antípodas. Existiam três novos continentes, ocupados pelos asiáticos em eras passadas, sem que a notícia jamais tivesse chegado à Europa. E, decepcionantemente, não era fácil encontrar os
Ela desembarcou em Nova York, reuniu-se a Leib e ainda viveu o suficiente para dar à luz a minha mãe e sua irmã, morrendo mais tarde de complicações de parto. Nesses poucos anos na América, seu nome fora, às vezes, anglicizado para Clara. Um quarto de século mais tarde, o nome que minha mãe deu a seu filho primogênito era uma homenagem à mãe que nunca conheceu. Nossos antepassados distantes, observando as estrelas, notaram cinco que faziam mais que levanta-se e pôr-se numa marcha impassível, como era o caso das assim chamadas estrelas “fixas”. Essas cinco tinham um movimento curioso e complexo. Ao longo dos meses, pareciam errar lentamente entre as estrelas. Às vezes, andavam em círculo. Hoje nós as chamamos de planetas, a palavra grega para errantes. Era, assim imagino, uma peculiaridade que nossos antepassados compreendiam. Sabemos agora que os planetas não são estrelas, mas outros mundos, impelidos gravitacionalmente para o sol. Exatamente quando a exploração da Terra estava sendo completada, começamos a reconhecê-la como um mundo na multidão inumerável de outros mundos que circulam ao redor do Sol ou giram em torno de outras estrelas que formam a galáxia da Via Láctea. Nosso planeta e nosso sistema solar são circundados por um novo oceano do mundo - os abismos do espaço. Não é mais intransponível que o anterior. Talvez seja um pouco cedo. Talvez ainda não tenha chegado a hora. Mas esses outros mundos - promissores oportunidades ilimitadas - acenam, chamando-nos. Nas ultimas décadas, os Estados Unidos e a antiga União Soviética realizaram algo assombroso e histórico - o exame minucioso de todos esses pontos de luz, de Mercúrio a Saturno, que levaram nossos antepassados à admiração e à ciência. Desde o advento do vôo interplanetário bem-sucedido em 1962, nossas máquinas têm voado por mais de setenta novos mundos, descrevendo órbitas ao redor ou pousando em sua superfície. Temos errado entre os errantes. Descobrimos imensas elevações vulcânicas que eclipsam a montanha mais alta da Terra; vales de rios antigos em dois planetas, enigmaticamente, um demasiado frio e o outro quente em demasia para ter água corrente; um planeta gigantesco com um interior de hidrogênio metálico liquido em que caberiam mil Terras; luas inteiras que se fundiram; um lugar coberto de nuvens com uma atmosfera de ácidos corrosivos, onde até os platôs elevados têm uma temperatura acima do ponto de fusão do chumbo; superfícies antigas em que se acha gravado um registro fiel da formação violenta do Sistema Solar; mundos glaciais refugiados dos abismos transplutônicos; sistemas de anéis com padrões refinados, marcando as harmonias sutis da gravidade; e um mundo rodeado por nuvens de moléculas orgânicas complexas com as que, na história primeva do nosso planeta, deram origem à vida. Silenciosamente, eles giram em torno do Sol, esperando. Descobrimos maravilhas jamais sonhadas pelos nossos antepassados que especulavam pela primeira vez sobre a natureza dessas luzes errantes no céu noturno. Investigamos as origens de nosso planeta e de nós mesmos. Descobrindo outras possibilidades, confrontando-nos com os destinos alternativos de mundos mais ou menos parecidos com o nosso, temos começado a compreender melhor a Terra. Cada um desses mundos é encantador e instrutivo. Mas, que se saiba, são também desertos e áridos. No espaço, não existem “lugares melhores”. Até agora, pelo menos. Durante a missão robótica Viking, que teve início em julho de 1976, em certo sentido passei um ano em Marte. Examinei os penedos e as dunas de areia, o céu, vermelho até o auge do dia, os vales de rios antigos, as montanhas vulcânicas elevadas, a feroz erosão eólica, o terreno polar laminado, as duas luas escuras em forma de batata. Mas não havia vida - nem um grilo ou uma folha de grama, nem mesmo, tanto quanto podemos afirmar com certeza, um micróbio. Esses mundos não foram agraciados, como o nosso, com a vida. A vida é relativamente uma raridade. Podem-se examinar dúzias de mundos e descobrir que só em um deles a vida nasce, evolui e persiste. Não tendo cruzado, até aquele momento, em suas vidas, nada mais largo que um rio, Leib e Chaya foram promovidos à travessia de oceanos. Tinham um grande vantagem: do outro lado das águas, haveria - revestidos de costumes estranhos, é verdade - outros seres humanos que falavam a sua língua e partilhavam ao menos alguns de seus valores, e mesmo pessoas com quem tinham relações próximas. Em nossa época cruzamos o Sistema Solar e enviamos quatro naves às estrelas. Netuno se acha um milhão de vezes mais distante da Terra que a cidade de Nova York das margens do Bug.
Mas não há parentes remotos, nem seres humanos, nem qualquer vida aparente esperando por nós nesses outros mundos. Nenhuma carta trazida por emigrantes recentes nos ajuda a compreender a nova terra - apenas dados digitais transmitidos, à velocidade da luz, por emissários-robôs precisos, insensíveis. Eles nos dizem que esses novos mundos não são como a nossa casa. Continuamos, no entanto, a procurar os habitantes. Não podemos evitar. Vida procura vida. Ninguém na Terra, nem mesmo o mais rico dentre nós, tem recursos para empreender a viagem; assim, não podemos fazer as malas e partir rumo a Marte ou Titã ao sabor de um capricho, por estarmos entediados, desempregados, oprimidos, porque fomos recrutados pelo exército ou porque, justa ou injustamente, nos acusaram de um crime. Não parece haver lucro suficiente, a curto prazo, para motivar a indústria privada. Se nós, humanos, algum dia partirmos rumo a esses mundos, será porque uma nação ou um consórcio de nações acredita que o empreendimento lhe trará benefícios sendo pressionados por um grande numero de questões que disputam o dinheiro necessário para enviar pessoas a outros mundos. Este é o tema desse livro: outros mundos, o que nos espera neles, o que eles nos dizem sobre nós mesmos e - dados os problemas urgentes que nossa espécie enfrenta no momento - se faz sentido partir. Deveríamos resolver esses problemas primeiro? Ou serão eles um razão a mais para partir? Sob muitos aspectos, este livro é otimista a respeito do futuro humano. À primeira vista, os capítulos iniciais podem dar a impressão de troçar de nossas imperfeições. Eles estabelecem, porém, um fundamento espiritual e lógico essencial para o desenvolvimento de minha argumentação. Tentei apresentar mais de uma faceta das questões. Haverá momentos em que pareço estar discutindo comigo mesmo. Estou. Percebendo algum mérito em mais de um lado, freqüentemente discuto comigo mesmo. Espero que, no ultimo capítulo, fique claro aonde quero chegar. O plano do livro é, em linhas gerais, o seguinte: examinar primeiro as afirmações, muito difundidas em toda a história humana, de que o nosso mundo e a nossa espécie são únicos, e, até, centrais para o funcionamento e a finalidade do cosmo. Percorrer o Sistema Solar, seguindo os passos das últimas viagens de exploração e descoberta, e, então, avaliar as razões geralmente apresentadas para enviar seres humanos ao espaço. Na última parte desse livro, mais especulativa, traço um esboço de como imagino que será, a longo prazo, o nosso futuro no espaço. Pálido ponto azul é sobre esse novo reconhecimento, que ainda nos invade lentamente, de nossas coordenadas, de nosso lugar no Universo - e de como um elemento central do futuro humano se encontra muito além da Terra, embora o apelo da estrada aberta esteja hoje emudecido.
diferente dentro do plano da eclíptica e, por isso, pudera realizar as célebres explorações de Urano e Netuno. Os dois robôs Voyager exploraram quatro planetas e quase sessenta luas. São triunfos da engenharia humana e uma das glórias do programa espacial norte-americano. Ainda estarão nos livros de história, quando muitos outros dados sobre nossa época já tiveram caído no esquecimento. O funcionamento das Voyager só estava garantido até o encontro com Saturno. Achei que seria uma boa idéia, logo depois de Saturno, que elas lançassem um último olha para casa. Eu sabia que, vista a partir de Saturno, a Terra pareceria demasiado pequena para que a Voyager distinguisse algum detalhe. O nosso planeta seria apenas um ponto de luz, um pixel solitário, mal distinguível dos muitos outros pontos de luz que a Voyager podia divisar, planetas próximos e sóis distantes. Mas, justamente por causa da obscuridade de nosso mundo assim revelado, valeria a pena ter a fotografia. Os marinheiros fizeram um levantamento meticuloso das costas litorâneas dos continentes. Os geógrafos traduziram essas descobertas em mapas e globos. Fotografias de pequenos fragmentos da Terra foram tiradas, primeiro por balões e aviões, depois por foguetes em vôos balísticos curtos e, finalmente, por naves espaciais em órbita - gerando uma perspectiva similar à que obtemos quando posicionamos o globo ocular uns três centímetros acima de uma grande esfera. Embora quase todo mundo aprenda que a Terra é um globo ao qual estamos, de certa forma, presos pela gravidade, a realidade de nossa circunstância só começou, de fato, a penetrar em nosso entendimento com a famosa fotografia Apollo 17 na última viagem de seres humanos à Lua. Ela se tornou uma espécie de ícone da nossa era. Ali está a Antártida, que norte- americanos e europeus consideram a parte extrema da Terra, e toda a África estirando-se acima dela: vemos a Etiópia, a Tanzânia e o Quênia, onde viveram os primeiros seres humanos. No alto, à direita, estão a Arábia Saudita e o que os europeus chamam Oriente Médio. Mal e mal espiando no topo, está o mar Mediterrâneo, ao redor do qual surgiu uma parte tão grande de nossa civilização global. Podemos distinguir o azul do oceano, o amarelo-ocre do Saara e do deserto árabe, o castanho-esverdeado da floresta e dos prados. Não há, entretanto, sinal de seres humanos na fotografia, nem de nosso reelaboração da superfície da Terra, nem de nossas máquinas, nem de nós mesmos: somos demasiado pequenos e nossa política é demasiado fraca para sermos vistos por uma nave espacial entre a Terra e a Lua. Desse ponto de observação, nossa obsessão com o nacionalismo não aparece em lugar algum. As fotografias Apollo da Terra inteira transmitiram às multidões algo bem conhecidos dos astrônomos: na escala de mundos - para não falar da escala de estrelas ou galáxias - os seres humanos são insignificantes, uma película fina de vida sobre um bloco obscuro e solitário de rocha e metal. Parecia-me que outra fotografia da Terra, tirada de um ponto de centenas de milhares de vezes mais distantes, poderia ajudar no processo continuo de revelar-nos nossa verdadeira circunstância e condição. Os cientistas e filósofos da Antigüidade clássica tinham compreendido muito bem que a Terra era um simples ponto num vasto cosmo circundante, mas ninguém jamais a vira nessa condição. Era a nossa primeira oportunidade (e também a última em várias décadas). Muitos membros do Projeto Voyage da NASA deram o seu apoio. Vista a partir da orla do Sistema Solar, porém, a Terra fica muito perto do Sol, como uma mariposa enfeitiçada ao voar ao redor de uma chama. Apontaríamos a câmera para tão perto do Sol, a ponto de correr o risco de queimar o sistema vidicon da nave espacial? Não seria melhor esperar ate que fossem obtidas todas as imagens cientificas de Urano e Netuno, se a nave espacial chegasse a durar tanto tempo? E assim, esperamos - o que foi bom - de 1981, em Saturno, a 1986, em Urano, e a 1989, quando as duas naves espaciais já tinham passado das órbitas de Netuno e Plutão. Por fim, chegou a hora. Havia, porém, algumas calibrações instrumentais a serem feitas primeiro, e esperamos um pouco mais. Embora a nave espacial estivesse nos lugares certos, os instrumentos ainda funcionassem maravilhosamente, e não houvesse outras fotografias a serem tiradas, alguns membros do projeto se opuseram. Não era ciência, diziam. Descobrimos, então, que, numa NASA em dificuldades financeiras, os técnicos que projetavam e transmitiam os comandos de rádio para a Voyager estavam para ser dispensados imediatamente ou transferidos para outras tarefas. Se quiséssemos tirar a fotografia, tinha de ser naquele momento. No último minuto - na verdade, no meio do encontro da Voyager 2 com Netuno - o então administrador da NASA, contra-almirante
Richard Truly, interveio e garantiu que as imagens fossem obtidas. Os cientistas espaciais Candy Hansen, do Laboratório de Propulsão a Jato da NASA (JPL), e Carolyn Porco, da Universidade do Arizona, projetaram a seqüência de comandos e calcularam os tempos de exposição da câmera. Assim, aqui estão elas - um mosaico de quadrados dispostos sobre os planetas e uma coleção heterogênea de estrelas mais distantes ao fundo. Não só conseguimos fotografar a Terra, mas também outros cinco dos nove planetas conhecidos que giram em torno do Sol. No brilho deste, perdeu-se Mercúrio, o mais próximo. Marte e Plutão eram demasiado distantes. Urano e Netuno são tão indistintos que, para registrar a sua presença, foram necessárias longas exposições; conseqüentemente, devido ao movimento da nave espacial, suas imagens não ficaram nítidas. Essa seria a imagem eu os planetas ofereceriam a uma espaçonave alienígena que se aproximasse do Sistema Solar depois de uma longa viagem interestelar. A partir dessa distância, os planetas parecem apenas pontos de luz, nítidos ou não - mesmo através do telescópio de alta resolução a bordo da Voyager. São como os planetas vistos a olho nu da superfície da Terra; pontos luminosos, mais brilhantes que a maioria das estrelas. Durante um período de meses, a Terra, como os outros planetas, pareceria mover-se entre as estrelas. Olhando simplesmente para um desses pontos, não se pode dizer como ele é, o que existe na sua superfície, qual foi seu passado e se, neste momento em particular, alguém vive ali. Devido ao reflexo da luz do Sol na nave espacial, a Terra parece estar pousada num raio de luz, como se nosso pequeno mundo tivesse um significado especial. Mas é apenas um acidente de geometria e óptica. O Sol emite sua radiação eqüitativamente em todas as direções. Se a foto tivesse sido tirada um pouco mais cedo ou um pouco mais tarde, nenhum raio de sol teria dado mais luz à Terra. E por que essa cor cerúlea? O azul provém em parte do mar, em parte do céu. Embora transparente, a água em copo absorve um pouco mais de luz vermelha que de azul. Quando se tem dezenas de metros da substância ou mais, a luz vermelha é totalmente absorvida e o que se reflete no espaço é sobretudo o azul. Da mesma forma, o ar parece perfeitamente transparente num pequeno campo de visão. Ainda assim - algo que Leonardo da Vinci era mestre em pintar - quando mais distante o objeto, mas azul ele parece ser. Por quê? O ar dispersa muito melhora a luz azul do que a vermelha. O matiz azulado, portando, provém da atmosfera espessa, mas transparente, da Terra e de seus oceanos profundos e líquidos. E o branco? Em um dia normal, a Terra tem quase metade de sua superfície coberta por nuvens brancas de água. Nós podemos explicar o azul-pálido desse pequeno mundo porque conhecemos muito bem. Se um cientista extraterrestre, recém chegado às imediações do nosso Sistema Solar, poderia fidedignamente inferir oceanos, nuvens e uma atmosfera espessa, já não é tão certo. Netuno, por exemplo, é azul, mas por razões inteiramente diferentes. Desse ponto de observação, a Terra talvez não apresentasse nenhum interesse especial. Para nós, no entanto, ela é diferente. Olhem de novo para o ponto. É ali. É a nossa casa. Somos nós. Nesse ponto, todos aqueles que amamos, que conhecemos, de quem já ouvimos falar, todos os seres humanos que já existiram, vivem ou viveram as suas vidas. Toda a nossa mistura de alegria e sofrimento, todas as inúmeras religiões, ideologias e doutrinas econômicas, todos os caçadores e saqueadores, heróis e covardes, criadores e destruidores de civilizações, reis e camponeses, jovens casais apaixonados, pais e mães, todas as crianças, todos os inventores e exploradores, professores de moral, políticos corruptos, “superastros”, “lideres supremos”, todos os santos e pecadores da historia da nossa espécie, ali - num grão de poeira suspenso num raio de sol. A Terra é um palco muito pequeno em uma imensa arena cósmica. Pensem nos rios de sangue derramados por todos os generais e imperadores para que, na glória do triunfo, pudessem ser os senhores momentâneos de uma fração desse ponto. Pesem nas crueldades infinitas cometidas pelos habitantes de um canto desse pixel contra os habitantes mal distinguíveis de algum outro canto, em seus freqüentes conflitos, em sua ânsia de recíproca destruição, em seus ódios ardentes. Nossas atitudes, nossa pretensa importância, a ilusão de que temos uma posição privilegiada no Universo, tudo é posto em dúvida por esse ponto de luz pálida. O nosso planeta é um pontinho solitário na grande escuridão cósmica circundante. Em nossa obscuridade, em meio a toda essa imensidão, não há nenhum indício de que, de algum outro mundo, virá socorro que nos
Ann Druyan sugere uma experiência: olhem de novo para o pálido ponto azul do capitulo anterior. Observem bem. Olhem fixamente para o ponto por um longo tempo e tentem se convencer de que Deus criou todo o Universo para uma das aproximadamente 10 milhões de espécies de vida que habitam este grão de poeira. Agora dêem um passo adiante: imaginem que tudo foi feito apenas para uma única nuança dessa espécie, gênero ou subdivisão religiosa ou étnica. Se isso não lhes parecer improvável, tomem outro dos pontos. Imaginem que ele é habitado por uma forma diferente de vida inteligente. Que também nutre a noção de um Deus que criou todas as coisas para o seu bem. Até que ponto vocês levariam a sério essa pretensão? “Está vendo aquela estrela?” “A vermelha brilhante”? - pergunta a filha em resposta. “Sim. Sabe, ela talvez já não esteja ali. Poder ter desaparecido a essa altura - explodido ou algo assim. A sua luz ainda está cruzando o espaço, só agora atingindo nossos olhos. Mas não a vemos como ela é. Nós a vemos como ela foi”. Muitas pessoas experimentam estimulante admiração quando se vêem, pela primeira vez, diante dessa verdade simples. Por quê? Por que ela seria tão irresistível? Em nosso pequeno mundo, a luz se move, para todos os fins práticos, instantaneamente. Se uma lâmpada está acessa, é claro que se encontra, brilhando onde a vemos. Estendemos a mão e a tocamos: está ali, sem dúvida alguma, e desagradavelmente quente. Se o filamento se rompe, a luz se apaga. Não a vemos no mesmo lugar, brilhando, iluminando o quarto, anos depois que se queimou e foi removida de seu suporte. A simples idéia parece sem sentido. Se estamos distantes, porém, um sol inteiro pode se apagar e continuaremos a vê-lo brilhar resplandecentemente; é bem possível que, por eras, fiquemos sem saber de sua morte - na verdade, durante o período do tempo que a luz, de velocidade assombrosa mas não infinita, leva para cruzar a imensidão intermediária. As imensas distâncias até as estrelas e as galáxias significam que todos os corpos que vemos no espaço estão no passado - alguns deles tal como eram antes que a Terra viesse a existir. Os telescópios são máquinas do tempo. Há muitas eras, quando uma galáxia primitiva começou a derramar luz na escuridão circundante, nenhuma testemunha poderia ter adivinhado que bilhões de anos mais tarde alguns blocos remotos de rocha e metal, gelo e moléculas orgânicas se juntariam para formar um lugar chamado Terra; nem surgiria a vida, nem que seres pensantes evoluiriam e um dia captariam um ponto dessa luz galáctica, tentando decifrar o que a enviara em sua trajetória. E depois que a Terra morrer, daqui a uns 5 bilhões de anos, depois que ela for calcinada ou até tragada pelo Sol, surgirão outros mundos, estrelas e galáxias - e eles nada saberão de um lugar outrora chamado Terra. Quase nunca parece preconceito. Ao contraio, parece apropriada a justa idéia de que, por ter nascido acidentalmente, o nosso grupo (seja ele qual for) deveria ter uma posição central no universo social. Entre os principais faraônicos e os pretendentes dos Plantagenet, os filhos de barões saqueadores e os burocratas do Comitê Central, as gangues de rua e os conquistadores de nações, os membros de maiorias convictas, seitas obscuras e minorias ultrajadas, essa atitude de favorecer os seus próprios interesses parece tão natural quanto respirar. Ele tira o seu sustento das mesmas fontes em que se alimentam o sexismo, o racismo, o nacionalismo e outros chauvinismos mortais que atormentam nossa espécie. É necessária força incomum de caráter para resistir às lisonjas dos que nos atribuem uma superioridade evidente, até concedida por Deus, sobre os nossos companheiros. Quando mais precária a nossa auto-estima, maior a nossa vulnerabilidade a esses apelos. Como os cientistas são pessoas, não é surpreendente que pretensões parecidas tenham se insinuado na visão científica do mundo. Na verdade, muitos dos debates centrais na história da ciência parecem ser, ao menos em parte, disputas em que se procura decidir se os seres humanos são especiais. Quase sempre, o pressuposto aceito é de que a premissa é examinada com cuidado, descobre-se - em um número desalentadoramente grande de casos - que não somos. Os nossos antepassados viviam ao ar livre. Sua familiaridade com o céu noturno era igual
à que temos hoje com nossos programas favoritos de televisão. O Sol, a Lua, as estrelas e os planetas, todos nasciam no leste e se punham no oeste, cruzando o alto do céu nesse meio tempo. O movimento dos corpos celestes não era simplesmente uma diversão, provocando uma saudação ou resmungo reverente; era a única maneira de reconhecer as horas do dia e as estações. Para os caçadores e colhedores, bem como para os povos agrícolas, conhecer o céu era uma questão de vida ou morte. Providencial que o Sol, a Lua, os planetas e as estrelas fizessem parte de um relógio cósmico elegantemente configurado? Nada parecia acidental. Eles ali estavam, a nosso serviço. Quem mais fazia uso deles? Para que mais serviam? E as luzes no céu se levantam e se põem ao nosso redor, não é evidente que estamos no centro do Universo? Os corpos celestes - tão claramente impregnados de poderes extraterrenos, especialmente o Sol, de que dependemos tanto, pois dele dependemos tanto, pois dele recebemos luz e calor - giram ao redor de nós como cortesãos adulando o rei. Mesmo que ainda não tivéssemos adivinhado, o exame mais elementar dos céus revela que somos especiais. O Universo parece projetado para seres humanos. É difícil considerar essas circunstancias sem experimentar confiança e orgulho. Todo o Universo feito para nós! Devemos ser realmente algo especial. Essa demonstração satisfatória de nossa importância, escorada na observação cotidiana dos céus, transformou o conceito geocêntrico em uma verdade transcultural - ensinada nas escolas, incorporada à língua, parte integrante da grande literatura e das Escrituras Sagradas. Os dissidentes foram desencorajados, às vezes por meio de tortura e morte. Não é de admirar que, durante a maior parte da história humana, ninguém a tenha questionado. Era, sem dúvida, a visão de nossos antepassados caçadores e saqueadores. No segundo século, Ptolomeu, o grande astrônomo da Antigüidade, sabia que a Terra era uma esfera, sabia que seu tamanho era “um ponto” se comparado à distância das estrelas e ensinava que ela estava “bem no meio dos céus”. Aristóteles, Platão, santo Agostinho, santo Tomás de Aquino e quase todos os grandes filósofos e cientistas de todas as culturas acreditaram nessa ilusão durante 3 mil anos até o século XVII. Alguns se ocupavam em imaginar como o Sol, a Lua, as estrelas e os planetas poderiam estar engenhosamente presos a esferas cristalinas, de transparência perfeita - as grandes esferas, é claro, centradas na Terra -, o que explicaria os movimentos complexos dos corpos celestes. Tão meticulosamente relatados por gerações de astrônomos. E foram bem-sucedidos: com modificações posteriores, a hipótese geocêntrica explicava adequadamente os fatos do movimento planetário, assim como este era conhecido nos séculos II e XVI. Daí foi apenas um passo para reivindicação ainda mais grandiosa - a de que a “perfeição” do mundo seria incompleta sem os seres humanos, como Platão afirmou em Timeu. “O homem é tudo”, escreveu o poeta e clérigo John Donne em 1625. “Ele não é uma parte do mundo, mas o próprio mundo; e logo abaixo da glória de Deus, a razão da existência do mundo”. A Terra, no entanto - não importa quantos reis, papas, filósofos, cientistas e poetas tenham insistido em afirmar o contrário - persistiu em girar em torno do Sol durante todos esses milênios. Pode-se imaginar um observador extraterrestre severo olhando a nossa espécie com desprezo durante todo o tempo, enquanto tagarelávamos animadamente: “O Universo criado pra nós! Somos o centro! Tudo nos rende homenagem! E concluído que nossas pretensões são divertidas, nossas aspirações patéticas e que este deve ser o planeta dos idiotas. Esse juízo é demasiado severo, porém. Fizermos o melhor possível. Havia uma coincidência infeliz entre as aparências cotidianas e nossas esperanças secretas. Tendemos a não ser especialmente críticos diante de evidências que parecem confirmar nossos preconceitos. E havia pouca evidência que os anulasse. Em abafado contraponto, algumas vozes dissidentes, através dos séculos, aconselhavam humildade e uma visão mais realista. Na aurora da ciência, os filósofos atomistas da Grécia e Roma antigas - que sugeriram pela primeira vez que a matéria é feita de átomos - Demócrito, Epicuro e seus discípulos (e Lucrecio, o primeiro divulgador da ciência), propuseram a escandalosamente a existência de muitos mundos e muitas formas alienígenas de vida, todos constituídos pelas mesmas espécies de átomos de que somos feitos. Apresentavam à nossa consideração infinidades no espaço e no tempo. Mas nos cânones predominantes do Ocidente, seculares e sacerdotais, pagãos e cristãos,
que a Terra se movia. Foi condenado a uma espécie de prisão domiciliar para o resto de sua vida. Uma ou duas gerações mais tarde, na época em que Isaac Newton demonstrou que uma física simples e elegante podia explicar quantitativamente - e predizer - todos os movimentos planetários e lunares observados (desde que se assumisse que o Sol estava no centro do Sistema Solar), a ilusão geocêntrica desgastou-se ainda mais. Em 1725, numa tentativa de descobrir o paralaxe estelar, o dirigente astrônomo amador inglês James Bradley encontrou, por acaso, a aberração da luz. Acho que o termo aberração da luz traz em si um pouco de caráter inesperado da descoberta. Observando-as ao longo de um ano, descobriu-se que as estrelas traçavam pequenas elipses no céu. Era, conforme se constatou, o que todas as estrelas faziam. Isso não podia ser paralaxe, pois se esperava uma grande paralaxe para as estrelas próximas e outra incapaz de ser detectada para as estrelas distantes. Em lugar disso, a aberração é semelhante a impressão de estarem caindo obliquamente que as gotas de chuva, que atingem um carro em movimento, dão aos passageiros; quanto mais veloz o carro, mais pronunciada a inclinação. Se a Terra estivesse parada no centro do Universo, em vez de se movendo velozmente ao redor do Sol, Bradley não teria descoberto a aberração da luz. Era uma demonstração irrefutável de que a Terra girava em torno do Sol. Convenceu a maioria dos astrônomos e alguns outros, mas não convenceu, na opinião de Bradley, os “anticopernicanos”. Só em 1837 observações diretas das estrelas mostraram de forma muito clara que a Terra, de fato, gira ao redor do Sol. A paralaxe anual tão longamente discutida foi por fim descoberta - não por melhores argumentos, mas por melhores instrumentos. Como explicar o que a paralaxe significa é muito mais simples que explicar a aberração da luz, sua descoberta foi muito importante. Colocou o último prego no caixão do geocentrismo. Basta olhar para o seu dedo com o olho esquerdo e depois com o direito, e você verá que ele parece se mover. Todo mundo é capaz de compreender a paralaxe. No século XIX, caso ainda existam alguns relutantes, podemos resolver a questão diretamente. Podemos testar se vivemos num sistema centrado na Terra, com planetas afixados em esferas de cristal transparente, ou num sistema centrado no Sol, com planetas controlados a distância pela gravidade dessa estrela. Por exemplo, temos investigados os planetas com radar. Quando fazemos um sinal ricochetear numa lua de Saturno, não captamos nenhum eco de rádio vindo de uma esfera de cristal mais próxima, ligada a Júpiter. Nossas naves espaciais chegam a seus destinos com precisão newtoniana. Quando nossas naves voam a Marte, seus instrumentos não captam nenhum tinido nem detectam cacos de cristal quebrado, ao irromperem pelas “esferas” que - segundo as opiniões autorizadas que prevaleceram durante milênios - impelem Vênus ou o Sol em seus movimentos obedientes ao redor da Terra Central. Ao esquadrinhar o Sistema Solar de um ponto além do planeta mais afastado, a Voyager 1 viu, assim como Galileu e Copérnico haviam previsto, o Sol no meio e os planetas em órbitas concêntricas ao seu redor. Longe de ser o centro do Universo, a Terra é apenas um dos pontos em órbita. Por já não estamos convidados em um mundo único, somos agora capazes de alcançar outros mundos e determinar de forma decisiva que tipo de sistema planetário habitamos. Todas as outras propostas, e seu número é impressionante, de nos afastar do centro do palco cósmico também encontraram resistência, em partes por razões semelhantes. Parecemos ansiar por privilégios a que não teríamos direito por nossas realizações, mas pelo nosso nascimento, pelo simples fato de sermos humanos e termos nascido sobre a Terra. Poderíamos dar a essa presunção o nome de antropocêntrica - “centrada no humano”. Presunção que beira o clímax na noção de que somos criados à imagem de Deus: o Criador e Regente de todo o Universo se parece comigo. Céus, que coincidência! Que conveniente e satisfatório! Xenófanes, filósofo grego do século VI a. C., compreendeu a arrogância desse ponto de vista: Os etíopes atribuem a seus deuses pele preta e nariz arrebitado; os trácios dizem que os seus têm olhos azuis e cabelo vermelho... Sim, e se os bois, os cavalos ou os leões tivessem mãos, pudessem pintar e produzir obras de arte como os homens, os cavalos pintariam os deuses sob a forma de cavalos e os bois lhes dariam a forma de bois. Essas atitudes eram outrora descritas como “provincianas” - a expectativa ingênua de que as hierarquias políticas e as convenções sociais de uma província obscura se estendessem a um
imenso império composto de muitas tradições e culturas diferentes; de que as aldeias familiares, as nossas aldeias, são o centro do mundo. Os caipiras quase nada sabem da possibilidade de alternativas. Não conseguem compreender a insignificância de sua província nem a diversidade do Império. Com desenvoltura, aplicam seus próprios padrões e costumes ao resto do planeta. Mas despejados em Viena, por exemplo, Hamburgo ou Nova York, reconhecem tristemente o quanto a sua perspectiva é limitada. Tornam-se “desprovincianizados”. A ciência moderna tem sido uma viagem ao desconhecido, com uma lição de humildade em cada parada. Muitos passageiros teriam preferido ficar em casa. CAPÍTULO 3 AS GRANDES HUMILHAÇÕES
fiquei estupefato e desapontado por se haver considerado, em relação aos planetas de outras estrelas, ausência de evidência como evidência de ausência. Hoje temos provas da existência de três planetas girando em torno de uma estrela muito densa, o pulsar B1257+12, sobre o que falarei mais adiante. Descobrimos ainda que mais da metade das estrelas com massa semelhante à do Sol no início da vida eram circundadas por grandes discos de gás e poeira, matéria de que os planetas parecem se formar. Outros sistemas planetários, talvez ate mundos semelhantes a Terra, parecem agora um lugar-comum cósmico. Em poucas décadas devemos poder inventariar ao menos os planetas maiores, se existirem, de centenas de estrelas próximas. Bem, nossa posição no espaço não demonstra nosso papel especial, mas nossa posição no tempo, sim: estamos no Universo desde o Início. Recebemos responsabilidades especiais do Criador. Outrora parecia razoável pensar que o Universo tivesse começado a existir um pouco antes de nossa memória coletiva obscurecida pela passagem do tempo e a ignorância de nossos antepassados. Em termos genéricos, há milhares de anos. As religiões que descrevem a origem do Universo freqüentemente especificam - implícita ou explicitamente - uma data de origem mais ou menos dessa safra, uma data de aniversário para o mundo. Somando as “gerações” do Gênesis, por exemplo, obteremos uma idade para a Terra: cerca de 6 mil anos. O Universo teria exatamente a mesma idade da Terra. Essa é a verdade de judeus, cristãos e fundamentalistas mulçumanos, verdade claramente refletida no calendário judeu. Um Universo tão jovem propõe uma pergunta embaraçosa: como podem existir objetos astronômicos a mais de 6 mil anos-luz de distância? A luz leva um ano para atravessar um ano-luz, 10 mil para cruzar 10 mil anos-luz, e assim por diante. Quando olhamos para o centro da galáxia da Via Láctea, a luz que vemos partiu de sua fonte há 30 mil anos. A mais próxima galáxia espiral semelhante à nossa, a M31, na constelação de Andrômeda, está a 2 milhões de anos luz; nós a vemos, portanto, como era quando sua luz partiu na longa viagem para a Terra - há 2 milhões de anos. E quando observamos quasares distantes, a 5 bilhões de anos-luz, nós os vemos como eram há 5 bilhões de anos, antes de a Terra ser formada. (É quase certo que eles são muito diferentes hoje em dia.) Se, apesar de tudo isso, aceitássemos a verdade literal dos livros sagrados, como conciliar os fatos? A meu ver, a única conclusão plausível é que Deus criou recentemente todos os fótons de luz que chegam à Terra num formato coerente a ponto de induzir gerações de astrônomos ao erro de acreditar na existência de fenômenos como galáxias e quasares, levando-os à conclusão espúria de que o Universo é vasto e antigo. Essa é uma teologia tão malévola que custo a acreditar que alguém possa considerá-la com seriedade. Além disso, a datação radioativa das rochas, a abundância de crateras de impacto em muitos mundos, a evolução das estrelas e a expansão do Universo são evidencias independentes e indiscutíveis de que nosso Universo tem muitos bilhões de anos, apesar das afirmativas de teólogos respeitados, de que um mundo tão antigo contradiz a palavra de Deus e de que as informações sobre a Antigüidade do mundo só não acessíveis a fé. Esses indícios também teriam de ser criados por uma divindade enganadora, a menos que o mundo seja mais antigo que os literalistas da religião judaico-cristã-islâmica supõem. Claro, esse problema não existe para muitos fiéis que tratam a Bíblia e o Alcorão como guias históricos e morais e como grande literatura, sem deixar de reconhecer que suas noções sobre o mundo natural refletem a ciência rudimentar da época em que foram escritas. Muitas eras se passaram até a Terra começar a existir. Outras seguirão seu curso antes de sua destruição. Devemos distinguir entre a idade da Terra (uns 4,5 bilhões de anos) e a idade do Universo (uns 15 bilhões de anos a partir do Big Bang). Dois terços do imenso intervalo de tempo entre a origem do Universo e nossa época já se haviam passado quando a Terra veio a existir. Há estrelas e sistemas planetários bilhões de anos mais jovens e bilhões de anos mais antigos, mas no Gênesis, capítulo 1, versículo 1, o Universo e a Terra são criados no mesmo dia. A religião hinduísta-budista-jainista tende a não confundir os dois acontecimentos. Nós humanos, somos retardatários. Aparecemos no último instante do espaço cósmico. Haviam transcorrido 99,998% da história do Universo até o presente quando nossa espécie entrou
na cena. No vasto circuito de eras, não temos responsabilidades especial por nosso planeta ou pela vida. Não estávamos presentes. Bem, se não temos nada especial quanto a nossa posição ou nossa época, vejamos nosso movimento. Newton e os outros grandes físicos clássicos afirmavam que a velocidade da Terra no espaço era um “sistema de referencia privilegiado”. Albert Einstein, um crítico agudo do preconceito e do privilégio, considerava essa física “absoluta” resíduo de um chauvinismo terrestre cada vez mais desacreditado. Achava que as leis da natureza deveriam ser as mesmas, fosse qual fosse a velocidade ou o sistema de referência do observador. Com essa noção como ponto de partida, desenvolveu a Teoria Especial da Relatividade. As conseqüências dessa teoria são bizarras, contrárias à intuição, a contrários ao bom senso, mas só em velocidades muito elevadas. Observações cuidadosas e repetidas mostram que essa célebre teoria é uma descrição acurada da constituição do mundo. Nossas intuições podem estar erradas. Nossas preferências não contam. Não vivemos num sistema de referência privilegiado. Uma conseqüência da relatividade especial é a dilatação do tempo, isto é, seu retardamento à medida que o observador se aproxima da velocidade da luz. Ainda se encontram afirmações de que a dilatação se aplica a relógios e partículas elementares e, presumivelmente, ao ritmo circadiano e outros em plantas, animais e micróbios, não se aplica, todavia, ao relógio biológico humano. Sugere-se que nossa espécie teria uma imunidade especial às leis da natureza - capaz, portanto, de discernir conjuntos de matéria com ou sem esse privilégio. (Na verdade, a prova de Einstein para a relatividade especial não admite tais distinções.) Ver os seres humanos como exceções à relatividade parece outra forma da noção da criação especial. Bem, mesmo que nossa posição, nossa época, nosso movimento e nosso mundo não sejam únicos, talvez nós sejamos. Somos diferentes dos outros animais. Fomos especialmente criados. O zelo particular do Criador do Universo é evidente em nós. Essa crença foi apaixonadamente defendida por razões religiosas e outras. Na metade do século XIX, entretanto, Charles Darwin mostrou que uma espécie pode evoluir para outra espécie mediante processos inteiramente naturais, que se reduzem a função impiedosa da natureza de salvar as hereditariedades que funcionam e rejeitar as que não funcionam e rejeitar as que não funcionam. “O homem na sua arrogância se considera uma grande obra, digna da intervenção de uma divindade”, anotou Darwin em seu caderno de notas. “É mais humilde e penso, mais verdadeiro considerar que foi criado a partir de animais”. No final do século XX as conexões profundas e íntimas dos seres humanos com as outras formas de vida sobre a Terra têm sido indiscutivelmente demonstradas pela nova ciência da biologia molecular. Em cada época, os chauvinismos que afirmam nossa superioridade são desafiados em nova arena do debate cientifico - neste século, nas tentativas de compreender a natureza da sexualidade humana, a existência da mente inconsciente e o fato de muitas doenças psiquiátricas e “defeitos” de caráter terem origem molecular. Bem, ainda que sejamos intimamente relacionados com alguns dos outros animais, somos diferentes - em grau e espécie - no que realmente importa: raciocínio, autoconsciência, manufatura de ferramentas, ética, altruísmo, religião, linguagem, nobreza e caráter. Os seres humanos, como todos os animais, têm características que os diferenciam - senão, como poderíamos distinguir uma espécie da outra? - o caráter único do ser humano tem sido exagerado, às vezes grosseiramente. Os chimpanzés raciocinam, tem autoconsciência, fazem ferramentas, demonstram afeto etc. os chimpanzés e os seres humanos têm 99,6% de seus genes ativos em comum. (Ann Druyan e eu apresentamos um resumo dessas evidencias em nosso livro Shadows of forgotten ancestors). Na cultura popular, adota-se a posição oposta, também induzida pelo chauvinismo humano (e pela falta de imaginação): as histórias infantis e os desenhos animados fazem os animais vestir roupa, morar em casas, usar garfo e faca, e falar. Os três ursos dormem em camas. A coruja e o gatinho vão à praia num belo barco verde-amarelo. As mães dinossauras acariciam os filhotes. Os pelicanos entregam cartas. Os animais de estimação têm nomes humanos. Bonecas, quebra-nozes, xícaras e pires dançam e têm opiniões. Na série Thomas the tank engine, vemos até locomotivas e vagões antropomórficos, representados com muito encanto. Seja qual for o objetivo de nosso pensamento, animado ou inanimado, tendemos a lhe atribuir traços humanos. Não podemos evitar.
newtoniana ou a constante da mecânica quântica de Planck - tivessem sido diferentes, o curso dos acontecimentos que deram origem aos seres humanos nunca teria ocorrido. Sob outras leis e constantes, os átomos não se manteriam coesos, as estrelas evoluiriam depressa demais para que a vida tivesse tempo de evoluir em planetas próximos, os elementos químicos que compõem a vida nunca teriam sido gerados etc. Leis diferentes, nada de seres humanos. Não há controvérsia sobre o Princípio Antropico Fraco. Alteradas as leis e as constantes da natureza, se isso fosse possível, talvez surgisse um Universo muito diferente; em muitos casos, um Universo incompatível com a vida. O simples fato de existirmos implica (mas não impõe) restrições às leis da natureza. Já os Princípios Antrópicos “Fontes” vão bem mais longe; alguns de seus defensores chegam quase a deduzir que as leis da natureza e os valores das constantes físicas foram estabelecidos (não perguntem como, nem por Quem) para que os seres humanos viessem a existir. Quase todos os outros universos possíveis, dizem eles, são inóspitos. Dessa forma, ressuscita-se a antiga ilusão de que o Universo foi criado para nós. Em tudo isso escuto ecos do dr. Pangloss, do Cândido de Voltarie, que achava que este mundo, com todas as suas imperfeições, é o melhor possível. É como jogar minha primeira mão de bridge e ganhar, sabendo que existem 54 bilhões de bilhões de bilhões de outras mãos possíveis que eu teria igual probabilidade de ter recebido... e depois concluir que existe um deus do bridge que me favorece, um deus que arranjou e embaralhou as cartas com a minha vitória predeterminada desde O início. Não sabemos quantas outras mãos vencedoras existem no baralho cósmico, quantos outros tipos de universo, quantas leis da natureza e constantes físicas também poderiam ter dado origem à vida e à inteligência e até ilusões de importância. Não sabemos quase nada sobre como o Universo foi criado, nem mesmo se foi criado, por isso é difícil desenvolver essa linha de raciocínio. Voltaire perguntava: “Por que existe o mundo”?. A formulação de Einstein era se Deus teve a opção de criar o Universo. Ora, se o Universo é infinitamente antigo - se o Big Bang de uns 15 bilhões de anos atrás não passa de ápice mais recente de uma série infinita de contrações e expansões cósmicas - , então ele nunca foi criado e fica sem sentido perguntar a razão de ele ser como é. Por outro lado, se o Universo tem uma idade finita, por que é como é? Por que não lhe foi dado um caráter muito diferente? Que leis da natureza combinam com que outras leis? Existem metaleis especificando as conexões? Seria possível descobri-las? De todas as leis concebíveis da gravidade, quais podem coexistir, e com que leis concebíveis da gravidade, quais podem coexistir, e com que leis concebíveis da física quântica que determinam a própria existência de matéria macroscópica? Serão possíveis todas as leis que podemos imaginar, ou existe apenas um número restrito que pode, de alguma maneira, ser criado? Não há dúvida de que nem sequer vislumbramos como determinar as leis da natureza “possíveis” e as que não o são. Não temos mais que uma noção muito rudimentar das correlações de leis naturais “permitidas”. A lei de Newton da gravitação universal, por exemplo, especifica que a força gravitacional mútua que faz com que dois corpos se atraiam é inversamente proporcional ao quadrado da distância entre eles. Se você se afastar para um pouco duas vezes mais distante do centro da Terra, passará a ter um quaro de seu peso habitual; se for dez vezes mais longe, terá apenas um centésimo dele etc. É essa lei do inverso do quadrado que determina as estranhas órbitas circulares e elípticas dos planetas ao redor do Sol e das luas ao redor dos planetas, assim como as trajetórias precisas de nossas naves espaciais, dizemos que a força gravitacional varia com 1/r elevado ao quadrado. Mas se esse expoente fosse outro, se a lei da gravidade fosse 1/r elevado à quarta potência, digamos, em vez de 1/r elevado ao quadrado, as órbitas não fechariam; depois de bilhões de revoluções, os planetas se aproximariam do Sol em espiral fechada e seriam consumidos nas suas profundezas abrasadoras, ou dele se afastariam em espiral aberta e se perderiam no espaço interestelar. Se o Universo fosse construído com uma lei do inverso da quarta potência, e não com uma lei do inverso do quadrado, em pouco tempo não haveria planetas que os seres vivos pudessem habitar. Assim, de todas as possíveis leis gravitacionais, por que temos a sorte de viver num universo onde há uma lei compatível com a vida? Em primeiro lugar, é claro que temos essa “sorte” porque, se não a tivéssemos, não estaríamos aqui para fazer a pergunta: afinal, seres indagadores
que evoluem em planetas só podem ser encontrados em universos que admitem planetas. Em segundo lugar, a lei do inverso do quadrado não é a única compatível com uma estabilidade de mais de bilhões de anos. Qualquer lei com potência menos elevada que 1/r elevado ao cubo manterá um planeta nas proximidades de uma órbita circular, mesmo que receba um empurrão. Tendemos a desconsiderar a possibilidade de outras leis concebíveis de natureza podem ser compatíveis com a vida. Não há outro ponto: não é arbitrário termos uma lei da gravitacional no inverso do quadrado. Quando a teoria de Newton é compreendida em termos da teoria mais abrangente da relatividade geral, vemos que o expoente da lei da gravidade é 2, porque o número de dimensões físicas em que vivemos é 3. Nem todas as leis da gravidade estão à disposição, à escolha de um criador. Mesmo que considerasse um número infinito de universos tridimensionais para algum deus brincar, a lei da gravidade teria de ser sempre a lei do inverso do quadrado. A gravitação newtoniana não é uma faceta contingente do nosso Universo, mas uma faceta necessária. Na relatividade geral, a gravidade é devida à dimensionalidade e à curvatura do espaço. Quando falamos em gravidade, falamos em pequenos encurvamentos locais no espaço-tempo. Isso não é nada evidente, e até contraria o bom senso. Quando examinadas em profundidade, as idéias de gravidade e massa não são questões separadas, mas ramificações de geometria subjacente ao espaço-tempo. Pergunto-me se algo parecido não se aplica a todas as hipóteses antropicas. As leis ou constantes físicas de que nossa vida depende revelam-se membros de uma classe, talvez de uma imensa classe, de outras leis e outras constantes físicas, algumas também compatíveis com alguém tido de vida. Às vezes não examinamos (ou não podemos examinar) tudo o que esse outros universos permitem. Além disso, nem toda escolha arbitrária de uma lei da natureza ou constante física é possível, mesmo para um criador de universos. Nossa compreensão das leis da natureza e das constantes físicas à disposição é, na melhor das hipóteses, fragmentária. Além do mais, não temos acesso a nenhum suposto universo alternativo. Não dispomos de método experimental pra testar as hipóteses antrópicas. Mesmo que a existência desses universos fosse uma sólida conseqüência de teorias bem estabelecidas - da mecânica quântica ou da gravitação, por exemplo - não poderíamos estar seguros de que não há teorias melhores que não prevêem universos alternativos. Até chegar essa hora, se é que vai chegar, acho prematuro depositar esperanças no Princípio Antrópico enquanto argumento a favor de caráter central ou único de ser humano. Finalmente, mesmo que o Universo fosse intencionalmente criado para admitir o surgimento da vida e da inteligência, podem existir outros seres em inúmeros mundos. Nesse caso, seria um triste consolo para os adeptos do antropocentrismo sabe que habitamos um dos poucos universos que permitem vida e inteligência. Há algo de excepcionalmente limitado na formação do Principio Antrópico: apenas certas leis e constantes de natureza são compatíveis com o nosso tipo de vida. Mas, essencialmente, as mesmas leis e constantes são necessárias para criar uma rocha. Então por que não falar num Universo projetado para que as rochas pudessem um dia vir a ser, e em Princípios Líticos fortes e fracos? Se as pedras pudessem filosofar, imagino que os Princípios Líticos estariam entre o que há de mais avançado intelectualmente. Atualmente formunlam-se modelos cosmológicos em que até o Universo inteiro nada tem de especial. Andrei Linde, ex-membro do Instituto Físico Lebedev, em Moscou, e atualmente na Universidade de Stanford, combinou a compreensão atual da física quântica e das forças nucleares fortes e fracas para criar um novo modelo cosmológico. Linde imagina um vasto cosmo, muito maior que nosso Universo - estendendo-se, talvez, até o infinito no espaço e no tempo - em lugar dos insignificantes 15 bilhões de anos de idade e cerca de 15 bilhões de anos-luz de raio da noção habitual. Como em nosso Universo, existe nesse cosmo uma espécie de felpa quântica em que estruturas minúsculas muito menores que um elétron formam-se, transformam-se e dissipam-se por toda a parte; no qual, como em nosso Universo, flutuações no espaço totalmente vazio criam pares de partículas elementares - um elétron e um pósitron, por exemplo. Na espuma das bolhas quânticas, a imensa maioria permanece submicroscópica, mas uma fração minúscula se dilata,