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Agostinho e a Teologia dos Anjos e Demônios, Teses (TCC) de Antropologia Social

Este texto discute as obras de agostinho de hipona e sua contribuição para a teologia dos anjos e demônios durante a idade média. Agostinho definiu a natureza angélica como puramente espiritual e livre, e se dedicou à interpretação angelológica dos temas da luz, origem do mal e conhecimento de deus. Ele também enfatizou a correspondência profunda entre anjos e humanos, e a iniciativa divina na reconciliação entre criador e criatura.

Tipologia: Teses (TCC)

2018

Compartilhado em 16/11/2021

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Os demôniOs de santO agOstinhO
the demOns Of saint augustine
gerson Leite de moraes1
ResumO
O presente trabalho tem por finalidade classificar e analisar as definições demonológicas em
Santo Agostinho. Isto implica numa análise tanto filosófica quanto teológica do pensamento
agostiniano sobre a existência dos anjos bons e dos anjos maus, denominados por ele como
demônios. Além disto, pretendeu-se verificar os seus escritos sobre o Mal em seus três níveis:
o metafísico, o moral e o físico. Após o cotejamento dos seus escritos foi possível verificar a
construção de uma teodiceia que foi de suma importância para a cultura medieval, além é claro
da fixação de uma moralidade cristã construída mediante a prática da apologética.
Palavras-chave: Mal; Demônios; Moral; Ortodoxia; Filosofia da História.
1 Professor da Universidade Presbiteriana Mackenzie. Doutor em Filosofia pela UNICAMP.
gelemo@hotmail.com.
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Baixe Agostinho e a Teologia dos Anjos e Demônios e outras Teses (TCC) em PDF para Antropologia Social, somente na Docsity!

Os demôniOs de santO agOstinhO

the demOns Of saint augustine

gerson Leite de moraes^1

ResumO

O presente trabalho tem por finalidade classificar e analisar as definições demonológicas em Santo Agostinho. Isto implica numa análise tanto filosófica quanto teológica do pensamento agostiniano sobre a existência dos anjos bons e dos anjos maus, denominados por ele como demônios. Além disto, pretendeu-se verificar os seus escritos sobre o Mal em seus três níveis: o metafísico, o moral e o físico. Após o cotejamento dos seus escritos foi possível verificar a construção de uma teodiceia que foi de suma importância para a cultura medieval, além é claro da fixação de uma moralidade cristã construída mediante a prática da apologética.

Palavras-chave: Mal; Demônios; Moral; Ortodoxia; Filosofia da História.

(^1) Professor da Universidade Presbiteriana Mackenzie. Doutor em Filosofia pela UNICAMP. gelemo@hotmail.com.

Gerson Leite de Moraes

aBstRaCt

This study aims to classify and analyze the definitions about demons in St. Augustine. This implies a much philosophical analysis and theological thought of Augustine about the existence of the good angels and bad angels, called by him as demons. In addition, it was intended to check his writings about evil in its three levels: the metaphysical, moral and physical. After the comparison of his writings was possible to verify the construction of a theodicy that was very important for medieval culture, and of course the setting of a Christian morality built upon the practice of apologetics.

Keywords: Evil; Demons; Moral; Orthodoxy; Philosophy of History.

intROduçãO

O presente trabalho tem por finalidade classificar e analisar as definições demonológicas em Santo Agostinho, a partir de três obras específicas, a saber, Contra os Acadêmicos, A Doutrina Cristã e A Cidade de Deus. A primeira insere-se na produção literária agostiniana naquilo que os especialistas chamaram de os primeiros escritos, que foram compostos ou iniciados entre a conclusão do ensino de retórica na cidade de Milão em 386 e a ordenação ministerial em 391. Trata-se, portanto, do período filosófico propriamente dito. Já a segunda, começou a ser escrita no início de seu episcopado em 397, mas só veio a ser concluída, com acréscimo de treze capítulos no terceiro livro, bem como a redação completa do quarto livro entre os anos de 426 e 427. Ela foi concluída no mesmo período que A Cidade de Deus , que começou a ser produzida entre 413. As duas obras terminadas neste período são de cunho mais teológico, sendo a Cidade de Deus considerada a obra prima do autor. Nela o autor tenta responder através de uma filosofia da história aos ataques que a fé cristã vinha sofrendo por conta da invasão bárbara realizada por Alarico, rei dos visigodos, em 410. Nas duas obras, Agostinho define os demônios como seres intermediários entre o humano e o

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sustém e no qual intervém. Agostinho insistiu igualmente sobre a correspondência profunda que une o anjo e o homem: as duas criaturas são inteligentes e criadas à imagem de Deus, embora uma seja espiritual, a outra corporal. (FAURE, 2006, pp.70-71)

Se a sistematização dos estudos angelológicos começou no Cristianismo Ocidental com Agostinho de Hipona, pode-se dizer de igual modo, que o estudo sistemático sobre os demônios também se iniciou com ele.

As superstições ou a idolatria, recorrentes na literatura cristã do período, referem-se tanto ao culto de diversos deuses, romanos ou não, quanto às mais variadas práticas religiosas, englobando inclusive a magia e a adivinhação. De caráter generalizante, assim com os termos idolatria e augúrios, superstição era uma palavra usada como oposição à religião ou aos costumes religiosos, e não era exclusiva do cristianismo. Com Agostinho de Hipona passou a ser relacionada à demonologia, o que lhe imprimiu uma conotação negativa que se perpetuou, servindo também para caracterizar tais ações ou rituais como improfícuos. (XAVIER, 2012, p. 03)

No livro Contra os Acadêmicos , Agostinho registra por meio de um estenógrafo, o debate entre dois de seus discípulos, Licêncio e Trigécio, ambos conterrâneos do filósofo. Numa relação entre discípulos e mestre, o diálogo transcorre sobre o modo de ser feliz na procura da verdade, sobre a definição de sabedoria e sobre o verdadeiro significado da ciência e das coisas humanas e divinas. E é exatamente neste último aspecto que aparece a magia e a superstição como exemplos das coisas humanas, portanto, passíveis de erro por estarem presas à categoria do humano e vinculadas a seres intermediários entre o humano e o divino, ou seja, os demônios,

Os Demônios de Santo Agostinho

definidos como, “certos animais desprezíveis espalhados no ar, chamados demônios, que concedo, podem superar-nos pela agudez e sutileza dos sentidos, mas não pela razão. Ignoro de que modo misterioso e ocultíssimo aos nossos sentidos isso ocorre”. ( Contra os Acadêmicos , Livro VII, Cap. 20) A magia e a superstição então são colocadas sob a influência dos demônios e com forte apelo para os sentidos, ficando a razão à disposição dos homens para chegar às coisas divinas, que não estão submetidas ao erro. É evidente na obra agostiniana que a ação inicial da reaproximação entre Criador e criatura, pertence à esfera divinal, pois como os seres humanos estão desligados do projeto divino pela desobediência de Adão, cabe a iniciativa de religar as partes ora rompidas, ao Criador, ou seja, o ministério da reconciliação é um ato de iniciativa divina, cabendo ao ser humano responder no tempo e no espaço de sua existência a este chamado gracioso, e este processo todo ocorre no plano da revelação especial de Deus aos seres humanos, que exercem um papel passivo neste processo. Isto significa em última instância que todo esforço dos homens para reconciliarem-se com Deus é vão, pois, os méritos humanos não satisfazem a justiça divina, contudo, Agostinho faz uma pequena concessão à razão, quando diz que o Deus verdadeiro pode eventualmente ser alcançado pela inteligência - que não resolve a situação humana, pois só a graça é capaz de pacificar e restaurar as partes, na visão de Agostinho -, mas jamais pelos sentidos. Depreende-se, portanto, que para Agostinho a razão, a inteligência, o raciocínio são elementos que vinculam-se às coisas divinas, já as emoções, os sentidos, são áreas perigosas devendo- se desconfiar delas, pois constantemente estão associadas à esfera da magia e da superstição, configurando-se em armas constantemente usadas pelos demônios, pois aplicam-se à ignorância, às ilusões e à falsidade.

Os Demônios de Santo Agostinho

interpretação dos sonhos ( oniromancia ) e no transe mediúnico ( vaticínio ). Todas estas práticas são vistas como mágicas e supersticiosas.

A Igreja não deixou jamais de enfatizar a superioridade das fórmulas e dos representantes cristãos em relação às práticas e aos agentes mágicos, que ela buscou, continuadamente, associar ao paganismo. Aos clérigos e aos santos, ela atribuía o poder de alterar o curso da história, de intervir sobre os fenômenos naturais, de modificar, inclusive, a natureza das coisas, mas as operações por eles realizadas pressupunham a concessão ou a intervenção direta de Deus. Quanto às práticas de magia, argumentava-se, para a sua realização contava-se tão somente com o auxílio do(s) demônio(s). Pois eram Deus e o Diabo as únicas fontes possíveis da intervenção sobrenatural. (PEREIRA, 2011, p.05)

A postura eclesiástica assumida por Agostinho e posteriormente desenvolvida por outros teólogos da Igreja, insere-se na construção ortodoxa e apologética da fé cristã.

Uma primeira divergência diz respeito à realidade dos fenômenos relacionados à magia. Entre os escritores dos primeiros séculos do cristianismo é evidente uma generalizada crença nos atos mágicos. Entretanto, já na Alta Idade Média, começa a transparecer, nos textos eclesiásticos, uma atitude de dúvida - tendendo para a negação - em relação à eficácia desses atos. Esta tendência ao ceticismo encontra-se já em Santo Agostinho. Para o bispo de Hipona, não há que se crer nestas ‘coisas falsas e extraordinárias’, representações de imagens, transformações aparentes, ocorridas durante os sonhos sob influência direta do demônio. A partir de Agostinho, os teólogos vão desenvolver dois princípios essenciais, claramente refletidos nos cânones, penitenciais, concílios e decretais: um primeiro, o princípio da

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irrealidade dos atos mágicos, relega os poderes dos magos e o resultado de suas ações à categoria de miragens ou ilusões; o segundo, afirma a presença demoníaca nas ações dos magos. Os fenômenos mágicos não passariam de ilusões e prestígios diabólicos e Satã, onipotente e irresistível, na sua luta incessante contra o poder divino, figura como protagonista de toda magia. (PEREIRA, 2011, p.06)

Em outras obras, tais como De Civitate Dei e Divinatione Daemonium , Santo Agostinho, atuando de forma contundente e polêmica contra os gnósticos, discute a distinção gnóstica entre duas formas de invocar os espíritos e de os dominar através da sabedoria prática.

Estas duas formas são, em grego, a teurgia (‘arte de atuar com os deuses’) e a goeteia (‘arte de atuar com as coisas da terra, da matéria’). Atuando em teurgia , diziam os gnósticos, referimo- nos apenas a espíritos bons, puros, superiores, com cerimônias puras e em situações sempre boas; atuando em goeteia (o que permanecia, ao nível teórico, coisa vergonhosa e perigosa, pois proibida), entramos em contato com espíritos maus, inquietos, infelizes, que buscam sacrifícios impuros para manifestarem-se e sempre gozam com o sangue e outras coisas sujas. Com esses espíritos só se atua quando se quer fazer o mal. A resposta de Santo Agostinho aos gnósticos sobre esse ponto coincide com a fundação da demonologia cristã. Esclarecendo que a goeteia é, sem dúvida, ciência diabólica, Agostinho demonstra que a teurgia também o é, porque os únicos espíritos que querem entrar em contato com os homens, sem a ordem de Deus, são espíritos maus. (CARDINI, 1996, p.10)

Ainda na obra A Cidade de Deus , Agostinho trata dos demônios em dois livros (VIII e IX). Segundo ele, os demônios são:

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possível, junto de quem lhes é possível, as honras divinas e a homenagem de dependência devidas ao verdadeiro Deus. ( A Cidade de Deus , IX, Cap. 20)

Como se pode perceber, Agostinho não só reconhece a existência dos demônios, como também reconhece seus poderes e seus campos de atuação, associando-os às práticas não ortodoxas, portanto, pagãs. Se existe o bem, a verdade e a justiça e estes elementos estão associados a Deus e à Igreja, existe por sua vez também, o mal, a mentira e a injustiça, e estes vinculam-se aos demônios, mas estes nada seriam se não tivessem, num determinado momento de suas existências, se desviado da vontade perfeita de Deus. De uma forma ou de outra, ao tratar dos demônios, Agostinho tem que tocar na temática do Mal, da personificação do Mal e das consequências deste na vida dos seres humanos. Para Agostinho, o problema do Mal aparece em três níveis: a) metafísico-ontológico; b) moral; c) físico. Mais tarde, Leibniz desenvolveu sua Teodiceia influenciado pelas análises agostinianas e pela estruturação do Mal nos três níveis desenvolvidos por Santo Agostinho. O Mal no nível metafísico está relacionado aos graus inferiores do ser em relação a Deus, graus esses que dependem da finitude do ser criado e dos diferentes níveis dessa finitude. Mas mesmo aquilo que, numa consideração superficial, parece defeito (e, portanto, poderia parecer mal), na realidade, na ótica do universo, visto em seu conjunto, desaparece. As coisas, as mais ínfimas, revelam-se momentos articulados de um grande conjunto harmônico. O Mal não tem ontologia em Agostinho. Mas se o Mal não possui Ontologia como explicá-lo na ordem da criação perfeita da divindade? Como explicar na história vivida por Agostinho, a queda do Império Romano e assim promover uma defesa eficaz do cristianismo

Os Demônios de Santo Agostinho

contra os hereges que atribuíam essa desgraça ao afastamento dos romanos dos seus antigos deuses? Como explicar as terríveis consequências do Mal no mundo se este não é nada? Visando dar uma resposta satisfatória aos seus inquiridores, Agostinho escreve sua obra máxima, A Cidade de Deus. Segundo Agostinho, o Mal é tão devastador que afetou toda ordem criada, pois os homens começaram a carregar a mancha do pecado consigo, transmitindo-a de geração em geração, e além disto, os anjos também foram afetados de tal forma que passaram por uma divisão que permite distingui-los entre os anjos bons e os anjos caídos. Mas quando o Mal entrou no Mundo? Para Agostinho foi no começo da criação, pois pode-se ler no livro de Gênesis que Deus separou a Luz das Trevas, e isto não se refere somente à sucessão de dias e noites, mas também à separação dos anjos bons e dos anjos maus. Poder-se-ia pensar num mundo angelical que existiu antes da criação do Cosmos, já que Deus é atemporal, e onde se pode detectar o ponto de partida de todo pecado, pois ali, Satanás teria se reunido com os seus asseclas para promover uma rebelião contra o Altíssimo, mas seguindo está visão estaríamos mais propensos a aceitar uma visão literária de John Milton do que a explicação teológica de Agostinho. Segundo a explicação de Agostinho, quando Deus fez a Luz, foram criados todos os anjos, bons e perfeitos em essência, pois eles são como luz personificada, radiantes pela iluminação da verdade, mas alguma coisa aconteceu que fez com que os anjos caíssem e se afastassem dessa Luz ( aversi a luce ), tornando-se assim, por escolha livre, o oposto da luz, ou seja, a treva que se separou da luz. Ao criar a Luz, diz o texto bíblico, que Deus viu que ela era boa, mas não diz o mesmo sobre as trevas angélicas, pois

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desde o princípio , devemos entendê-las assim: Não peca desde o princípio de sua criação, mas desde o princípio do pecado, que começou a ser pecado com sua soberba. E o que está escrito no livro de Jó quando fala do demônio: Este é o princípio da obra de Deus, feito para escárnio de seus anjos , com o que parece concordar o Salmo que diz: Este dragão que formaste para que o escarneçam , não deve ser entendido de maneira que pensemos haver sido criado desde o princípio para que os anjos o escarnecessem e sim que, depois do pecado, se lhe cominou semelhante pena. Seu princípio é ser criatura do Senhor. ( A Cidade de Deus , XI, Cap. 15)

Em outro momento, com o mesmo propósito explicativo, Agostinho diz:

Mas, dir-se-á, talvez, a palavra do Senhor no Evangelho: O diabo era homicida desde o princípio e não se manteve na verdade não deve limitar-lhe o crime ao começo do gênero humano, ao instante em que o homem criado se tornou vítima de seu engano; não, é ele que desde seu princípio, infiel à verdade, expulso da bem-aventurada sociedade dos santos anjos, obstinado em sua revolta contra o Criador, se mostra soberbo, orgulhoso do poder particular e próprio que o engana, sedutor desabusado, porque não poderia fugir à mão do Onipotente. E, como não quis permanecer, por piedosa submissão, o que na verdade é, aspira, na cegueira de seu orgulho, a passar pelo que não é. Assim se entenderiam também as palavras do Apóstolo São João. O diabo peca desde o princípio , quer dizer, desde que foi criado rejeitou a justiça, que não pode possuir sem vontade piedosa e submissa a Deus. ( A Cidade de Deus , XI, Cap. 13)

Pode-se perceber que mesmo fazendo um esforço gigantesco, Agostinho não explicou a origem do Mal, mas sim sua operação inicial. Por que Satanás tornou-se soberbo? Esta resposta não foi dada.

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Já num outro nível, pode-se falar no Mal Moral, e este para Agostinho, associa-se ao pecado propriamente dito. Em Agostinho, o Mal como pecado depende da má vontade dos homens, sendo que esta não possui “causa eficiente”, mas “causa deficiente”. Como existem muitos bens, o homem peca na medida em que escolhe incorretamente entre os bens existentes. O Mal moral é “ aversio a Deo ” e “ conversio ad creaturam ”. A fonte do Mal moral está no abuso da liberdade. É neste contexto que Agostinho vai definir sua antropologia através de um debate intenso com um monge chamado Pelágio (360-420). O homem tanto em Agostinho, como em Pelágio, escolhe fazer o mal através do livre-arbítrio; o que separa esses dois pensadores é a transmissão e os efeitos do pecado. Enquanto que para Agostinho o Mal é genético, sendo transmitido a todos os homens pela transgressão de Adão, em Pelágio, o Mal é estrutural, social, sendo transmitido aos homens pelo mau exemplo. No entanto, na medida em que o homem escolhe desobedecer a Deus no Éden, há um rompimento dessa relação harmoniosa entre criatura e Criador. “ A natureza do homem foi criada no princípio sem culpa e sem vício ”. ( A Natureza e a Graça , Cap. III, 3). Deus é desobedecido pelo homem, e essa desobediência teria maculado todas as gerações humanas seguintes, tornando todos os seres humanos culpáveis.

Mas a atual natureza, com a qual todos vêm ao mundo como descendentes de Adão, tem agora necessidade de médico devido a não gozar de saúde. O sumo Deus é o criador e autor de todos os bens que ela possui em sua constituição: vida, sentidos e inteligência. O vício, no entanto, que cobre de trevas e enfraquece os bens naturais, a ponto de necessitar de iluminação e de cura, não foi perpetrado pelo seu Criador, ao qual não cabe culpa. Sua fonte é o pecado original que foi

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ele tinha consciência de ter sido condenado. Mas aconteceu que a punição infligida ao homem foi destinada a corrigi-lo, mais do que a dar ao mesmo homem a morte. ( O Livre-arbítrio , III, cap. 76)

O Mal físico afeta a integridade natural do ser composto de corpo e alma, apontado para sua finitude, mas engana-se quem pensa que este tipo de Mal atinge tão somente a parte material dos seres, pois os efeitos do Mal moral são tão grandes que, os males do espírito (desonras, dúvidas, decepções) também podem ser aqui contabilizados. Além disto, percebe- se ainda, que toda obra criada sofre os efeitos nocivos do Mal moral e do Mal físico. Contudo, diferentemente dos demais animais, os seres humanos são capazes de refletir sobre o Mal que os aflige e buscam constantemente explicações e soluções para estas desgraças. Se toda “Verdade em qualquer parte onde se encontre, é propriedade do Senhor” ( A Doutrina Cristã , II, Cap.17), ou em outras palavras, se toda Verdade é verdade de Deus – princípio este que guiará os Pais da Igreja no período medieval – o erro encontra-se com aqueles que ousaram desafiar a Deus, configurando-se em inimigos de Deus e consequentemente do povo de Deus, ou seja, Satanás e todos os anjos caídos. As superstições, os enganos, as fórmulas mágicas, são bons exemplos das estratégias usadas pelos demônios, segundo Agostinho, para enganar os homens desesperados e afetados pelo Mal físico.

A superstição é tudo o que os homens instituíram em vista da fabricação e do culto de ídolos. Compreende duas coisas: de um lado, tudo o que compreende o culto de qualquer criatura como se fosse o próprio Deus. Por outro lado, tudo o que leva a consultar e fazer pactos e aliança com os demônios, por meio de sinais combinados e adotados, tais como os encontrados em

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fórmulas mágicas. Essas alianças, os poetas, de fato, costumam mais evocar do que ensinar. A essa categoria pertencem os livros dos arúspices e agoureiros, cheios de desenfreada vacuidade. A tal categoria pertencem também todos os amuletos e pretensos remédios condenados pela ciência médica e que consistem seja em encantamentos, seja em tatuagens chamadas caracteres; seja na maneira de suspender alguns objetos, de os prender e até de os fazer saltar. ( A Doutrina Cristã , II, Cap. 21)

Agostinho entende que os seres humanos, ao serem atingidos pelo Mal físico e não querendo ou não podendo buscar a Verdade, ancoram-se no erro e nas superstições, tornando-se presas fáceis dos demônios, pois tentam curar toda sorte de males, desde dor de cabeça a soluços apelando para as artes mágicas e não contentes com isso, tentam driblar os maus presságios através de sinais ensinados pelos demônios aos seus ministros, os sacerdotes praticantes da magia.

Eis ainda outras manifestações supersticiosas: pisar o umbral da casa quando se passa diante da própria residência; voltar para a cama se espirrou ao se calçar; regressar para a casa se tropeçou ao sair; sentir tremor, mais pelo pressentimento de um mal futuro ( monstrum ) do que se aborrecer pelo dano presente ao constar, por exemplo, que os ratos roeram suas roupas. Daí procede o dito jocoso de Catão que, tendo sido consultado por certo homem que desejava conhecer o significado de terem os ratos roído suas polainas, responde-lhe: Não é esse um mau augúrio, sê-lo-ia se, ao invés, os ratos tivessem sido roídos pelas polainas. ( A Doutrina Cristã , II, Cap. 21)

Para Agostinho, quando os seres humanos buscam as soluções para o Mal físico na magia e na superstição, estão automaticamente fazendo pactos e alianças com os demônios, pois toda forma de superstição que não se

Os Demônios de Santo Agostinho

claramente reconhecido como cristão e o que deveria ser rejeitado, pois se enquadrava na categoria do paganismo. Além disto, pode-se depreender daí também que Agostinho foi fundamental para a definição da moralidade cristã medieval, pois ao tratar dos usos e costumes que deveriam ser abandonados, por estarem vinculados aos demônios, ele auxiliou decisivamente na construção dos valores, ditos corretos e que deveriam ser praticados. Com seus estudos sobre o Mal e sobre os agentes espirituais do Mal, os demônios, é fato que Agostinho deixou o seu legado para a cultura ocidental, pois como asseverou Nietzsche na sua obra, A Gaia Ciência, “...ocasionalmente o raro espécime da humanidade, que o povo reverencia como santo e sábio; desses homens procedem os monstros da moral que fazem barulho, que fazem história – Santo Agostinho é um deles” (2012, p.234).

BiBLiOgRafia

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CARDINI, Franco. “Magia e bruxaria na Idade Média e no Renascimento”. Psicologia USP , Brasil, v. 7, n. 1-2, p. 9-16, jan. 1996. ISSN 1678-

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