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PENSAMENTO SANITARISTA NA PRIMEIRA REPÚBLICA: UMA IDEOLOGIA DE CONSTRUÇÃO DA NACIONALIDADE, Manuais, Projetos, Pesquisas de Saúde Pública

Em artigo anterior1, analisei as relações entre Estado e sociedade no Brasil que presidiram à formação do movimento de saúde pública no início do século. Discuti, em particular, o sanitarismo urbano do início do período republicano, e os fatores econômicos, políticos e ideológicos que desaguaram no movimento pela reforma sanitária nas cidades. O presente artigo aborda o sanitarismo rural – a “descoberta dos sertões” – que se seguiu ao sanitarismo urbano.

Tipologia: Manuais, Projetos, Pesquisas

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SANTOS, Luiz Antonio de Castro. O pensamento sanitarista na Primeira
República: Uma ideologia de construção da nacionalidade. Dados. Revista de
Ciências Sociais, Rio de Janeiro, v.28, n.2, p.193-210, 1985.
O PENSAMENTO SANITARISTA NA PRIMEIRA
REPÚBLICA: UMA IDEOLOGIA DE CONSTRUÇÃO
DA NACIONALIDADE*
Luiz A. de Castro Santos
Mais cedo do que se imagina, o governo, diante do clamor cada
vez maior, terá que atender aos reclamos da opinião nacional.
Então veremos que a obra de saneamento iniciada por
Oswaldo Cruz no Rio de Janeiro se dirigirá por todos
os caminhos para o interior do Brasil, em verdadeiro
trabalho de redenção nacional.
Artur Neiva**
Em artigo anterior1, analisei as relações entre Estado e sociedade no
Brasil que presidiram à formação do movimento de saúde pública no início do
século. Discuti, em particular, o sanitarismo urbano do início do período
republicano, e os fatores econômicos, políticos e ideológicos que desaguaram
no movimento pela reforma sanitária nas cidades.
O presente artigo aborda o sanitarismo rural – a “descoberta dos
sertões” – que se seguiu ao sanitarismo urbano. Por volta de 1915, as políticas
públicas na área de saúde ainda se limitavam às capitais e demais centros
urbanos de importância. O interior do país, particularmente o “sertão”,
permanecia esquecido. O texto analisa o movimento nacional em favor da
reforma sanitária naquelas áreas esquecidas do interior do país. Uma
preocupação central deste trabalho é revelar a força simbólica do movimento
pelo saneamento dos sertões, enquanto ideologia de construção nacional.
Outra preocupação é a de discutir as políticas públicas que marcam a
crescente intervenção do Estado na área de saúde durante a Primeira
República.
* Agradeço as críticas e sugestões dos colegas do grupo de trabalho sobre
Pensamento Social no Brasil, da Anpocs, com os quais discuti, em outubro de
1984, uma primeira versão do texto. Agradeço também as sugestões feitas
pelo conselho editorial de Dados. Para a redação de parte deste trabalho contei
com bolsa de pesquisa concedida pelo CNPq.
** Artur Neiva, O saneamento do Sertão: Discursos Pronunciados em 18 de
Novembro de 1916, Rio de Janeiro, 1917.
1 Ver “Estado e Saúde Pública no Brasil, 1889-1930”, Dados, vol. 23, n. 2,
1980, pp.237-250.
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SANTOS, Luiz Antonio de Castro. O pensamento sanitarista na Primeira República: Uma ideologia de construção da nacionalidade. Dados. Revista de Ciências Sociais, Rio de Janeiro, v.28, n.2, p.193-210, 1985.

O PENSAMENTO SANITARISTA NA PRIMEIRA

REPÚBLICA: UMA IDEOLOGIA DE CONSTRUÇÃO

DA NACIONALIDADE*

Luiz A. de Castro Santos

Mais cedo do que se imagina, o governo, diante do clamor cada vez maior, terá que atender aos reclamos da opinião nacional. Então veremos que a obra de saneamento iniciada por Oswaldo Cruz no Rio de Janeiro se dirigirá por todos os caminhos para o interior do Brasil, em verdadeiro trabalho de redenção nacional. Artur Neiva**

Em artigo anterior^1 , analisei as relações entre Estado e sociedade no Brasil que presidiram à formação do movimento de saúde pública no início do século. Discuti, em particular, o sanitarismo urbano do início do período republicano, e os fatores econômicos, políticos e ideológicos que desaguaram no movimento pela reforma sanitária nas cidades.

O presente artigo aborda o sanitarismo rural – a “descoberta dos sertões” – que se seguiu ao sanitarismo urbano. Por volta de 1915, as políticas públicas na área de saúde ainda se limitavam às capitais e demais centros urbanos de importância. O interior do país, particularmente o “sertão”, permanecia esquecido. O texto analisa o movimento nacional em favor da reforma sanitária naquelas áreas esquecidas do interior do país. Uma preocupação central deste trabalho é revelar a força simbólica do movimento pelo saneamento dos sertões, enquanto ideologia de construção nacional. Outra preocupação é a de discutir as políticas públicas que marcam a crescente intervenção do Estado na área de saúde durante a Primeira República.

  • (^) Agradeço as críticas e sugestões dos colegas do grupo de trabalho sobre

Pensamento Social no Brasil, da Anpocs, com os quais discuti, em outubro de 1984, uma primeira versão do texto. Agradeço também as sugestões feitas pelo conselho editorial de Dados. Para a redação de parte deste trabalho contei com bolsa de pesquisa concedida pelo CNPq. ** (^) Artur Neiva, O saneamento do Sertão: Discursos Pronunciados em 18 de

Novembro de 1916, Rio de Janeiro, 1917. (^1) Ver “Estado e Saúde Pública no Brasil, 1889-1930”, Dados, vol. 23, n. 2,

1980, pp.237-250.

A descoberta dos sertões

Uma das questões mais provocantes no estudo da Velha República é compreender como a luta pelo saneamento ganha uma força simbólica tão grande a ponto de conquistar as primeiras páginas dos periódicos nas grandes capitais, o Brasil denunciado como um “vasto hospital”. A análise do movimento das idéias permite desvendar em parte como se deu a politização da questão sanitária durante o primeiro período republicano.

Durante esse período, mais particularmente depois da primeira grande guerra, a produção literária e sociológica tornou-se marcadamente nacionalista, à medida que as esperanças de salvação do Brasil voltaram-se para a tarefa de construção da identidade nacional^2. Havia duas correntes de pensamento nacionalista. Uma sonhava com um Brasil “moderno” e atraía intelectuais que viam no crescimento e progresso das cidades brasileiras os sinais da conquista da civilização. A outra corrente preocupava-se em recuperar no interior do país as raízes da nacionalidade, e buscava integrar o sertanejo ao projeto de construção nacional.

1. O Passado nos Condena O primeiro grupo a que me referi abraçava princípios contraditórios. De um lado, a preocupação nacionalista impunha superar o atraso, modernizar o país. Entretanto, para esta corrente nacionalista, um Brasil moderno significava necessariamente um Brasil europeizado. Só a imigração estrangeira – estritamente branca e européia – poderia limpar os brasileiros da nódoa do passado escravocrata e dos efeitos perniciosos da miscigenação. O sangue novo – “sangue bom” – permitiria ao brasileiro redimir-se e purificar-se da contaminação de raças supostamente inferiores. Tratava-se, em uma palavra, do whitening ideal de que fala Skidmore^3.

O alto número de trabalhadores europeus chegados ao Brasil depois de 1904 e até o início da primeira guerra resultou do enorme impulso dado pelo governo central à política imigratória. Aqui se dá o nexo imigração & questão sanitária: o terror inspirado pela ameaça da febre amarela nos principais portos brasileiros reduziu drasticamente o número de imigrantes. Entre 1890 e 1899, perto de 120 mil imigrantes chegavam ao Brasil por ano. Entre 1900 e 1904, as entradas anuais baixaram para 50 mil. Em 1903, ano em que Rodrigues Alves e Oswaldo Cruz iniciavam a campanha pela erradicação da febre amarela no Rio de Janeiro, o número de imigrantes caiu a 34 mil. Ao sucesso dos esforços de Oswaldo Cruz segue-se nova curva ascendente da corrente imigratória^4.

(^2) Veja-se João Cruz Costa, Contribuição à História das Idéias no Brasil, 2 a. ed.,

Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1967, pp. 401-402. (^3) Thomas E. Skidmore, Black into Write: Race and Nationality in Brazilian

Thought, Nova York, Oxford University Press, 1974, cap. 4. (^4) Assinale-se, surpreendentemente, que os dados relativos à mortalidade por

febre amarela parecem relacionar-se de modo positivo com as variações nos fluxos imigratórios. Por exemplo, os anos de mais alta mortalidade associada à doença (1891-1894) foram anos de alta imigração européia. O que isto parece

branqueamento. Era o caso de Rui Barbosa. Finalmente, havia aqueles que serviam de ponte às duas tradições de pensamento. Era o caso de Oliveira Viana. Com um grupo partilhava o ideal da arianização da população brasileira; com o outro, partilhava o interesse pela integração dos sertões à vida da nação^6.

Assim, vê-se que os contornos de cada grupo eram imprecisos. Notava- se certa ambigüidade, seja na carreira intelectual de muitos nomes do pensamento nacionalista, seja em seu comportamento político.

Passo agora à discussão da segunda corrente nacionalista, que é o tema central deste trabalho.

3. O Passado nos Redime Foi no início do período republicano que o sertão fez “sua aparição dramática no cenário da vida brasileira”^7. Cruz Costa assinala o choque produzido por Os Sertões , de Euclides da Cunha, junto aos círculos intelectuais europeizados das cidades brasileiras. Com Euclides da Cunha iniciava-se a reação contra o “sibaritismo intelectual” daqueles círculos^8. No dizer de Euclides, à medida que as elites brasileiras procuravam tomar uma civilização de empréstimo, fugiam às “exigências da nossa própria nacionalidade”. Mais fundo se tornava “o contraste entre o nosso modo de viver e o daqueles rudes patrícios mais estrangeiros nesta terra do que os imigrantes da Europa”^9. Era o resgate dos sertões e do sertanejo que se impunha como tarefa de construção da nação. É nesse sentido – da busca, no sertão, das raízes da nacionalidade

  • que o passado não nos condenava, mas antes nos redimia.

O isolamento e o atraso do sertanejo revelaram-se também através da obra de escritores como Monteiro Lobato, Vicente Licínio Cardoso e Alberto Torres. Licínio Cardoso e Alberto Torres foram dois dos mais importantes criadores da tradição do pensamento “ruralista” no Brasil. Para eles, a verdadeira vocação do país estava na valorização da agricultura e do homem do campo. Ainda que a proposta de construção nacional de Monteiro Lobato não permita situá-lo entre os ruralistas – ele empenhou-se, de fato, em várias frentes da luta pela industrialização do país -, desde 1910/1915 sua obra revelava a preocupação com as condições de vida das populações rurais.

Monteiro Lobato é em geral conhecido como autor voltado para o interior paulista, o que é em certa medida um julgamento equivocado. É verdade que seus primeiros escritos focalizavam o caboclo paulista do Vale do Paraíba. É quando Lobato, como tantos outros, apontava as deficiências da “raça” como responsáveis por supostas características das populações rurais, como a apatia, indolência, incapacidade para o trabalho, etc. A miscigenação explicava tudo. Éramos um povo fraco.

(^6) Cruz Costa, Contribuição à História ..., op. cit., p. 408.

(^7) Idem, p. 354.

(^8) Idem, p. 355.

(^9) Citação extraída de Idem, p. 354. Ver Euclides da Cunha, Os Sertões, 5 a. ed.,

Rio de Janeiro, Francisco Alves, 1914, p. 205.

Foi o crítico Agripino Grieco quem apontou para outra faceta da obra do escritor paulista^10. Esta faceta é a de um Monteiro Lobato que revê suas antigas posições, por volta de 1918. Já não culpa o trabalhador do campo por sua pobreza, nem o rotula de indolente e inapto para o trabalho, ao contrário, assinala que é dele, mesmo doente, que se extrai grande parcela da riqueza nacional. Lobato não fala mais a linguagem da “incapacidade racial”. O problema brasileiro não estava na raça, mas nas doenças endêmicas. Lobato se entregou à divulgação de suas idéias sobre o saneamento em inúmeros artigos publicados durante 1918, no jornal O Estado de S. Paulo^11. Estes trabalhos revelam ainda outra faceta do escritor: sua preocupação com a questão nacional do saneamento, mais forte, então, do que a preocupação com as condições de saúde do caipira paulista. “sanear é a grande questão. Não há problema nacional que se não entrose nesse”^12. É a melhor fase de Lobato, que a um tempo combate o “determinismo étnico”, assume um lugar na linha de frente da crítica social de seu tempo, e elege o saneamento rural como a questão nacional por excelência.

Vicente Licínio Cardoso foi outro intelectual alinhado na luta pela “redenção dos sertões”. Licínio pensava antes em termos de região do que nas condições de vida da população. Sua preocupação central eram as regiões que hoje conhecemos como o nordeste e o sudeste, particularmente as áreas banhadas pelo São Francisco. Aí estava o elo perdido da civilização brasileira: para Licínio, o rio S. Francisco tinha uma importância geopolítica e cultural. Extensas áreas do Vale do S. Francisco, ocupadas por paulistas e baianos durante a segunda metade do século XVIII, haviam contribuído para a ocupação territorial e a unidade política do país^13. Mas, assinala o autor, a população dessas áreas havia experimentado um crescente isolamento do resto do país. Pedro II promovera algumas poucas missões científicas à região. Licínio assinala que o primeiro esforço das administrações republicanas para a reintegração da região ao resto do país fora a missão médica enviada pelo Instituto Oswaldo Cruz ao interior do nordeste, em 1912^14. Mas o escritor insiste na necessidade de uma atenção governamental contínua àquelas áreas à margem da história do Brasil Republicano.

(^10) Deve-se a Skidmore, Black into White ..., op. cit., p. 271, esta observação

sobre Grieco. Lúcia Lippi Oliveira lembra que “Urupês”, artigo escrito por Monteiro Lobato em 1915, pode ser visto como um marco de uma diferente percepção do Brasil. Ver Lúcia Lippi Oliveira, “As Raízes da Ordem: Os Intelectuais, a Cultura e o Estado”, Seminário sobre a Revolução de 1930, Rio de Janeiro, 22-25 de setembro de 1980, mimeo, p. 7. (^11) Estes artigos, sob o título “Problema Vital”, estão reunidos em suas obras

completas. Ver Monteiro Lobato, Mr. Slang e o Brasil e Problema Vital, 2 a. ed., São Paulo, Brasiliense, 1948, pp. 221-340. (^12) Idem, p. 272.

(^13) Vicente Licínio Cardoso, À Margem da História do Brasil, São Paulo,

Nacional, 1933, pp. 26-27. (^14) Idem, pp. 33-40. Tratarei da missão do Instituto Oswaldo Cruz mais adiante.

O ano de 1916 marca talvez o ponto de inflexão na evolução do movimento de saúde pública brasileira. É o ano de publicação, pelo Instituto Oswaldo Cruz, dos cadernos de viagem dos médicos Artur Neiva e Belisário Pena através de vários estados do nordeste e Goiás^18. A missão do Instituto, realizada em 1912, denunciou as péssimas condições de vida no interior do país.

A partir da publicação do Relatório Neiva-Pena, o movimento sanitarista superou sua fase urbana, com a nova bandeira do “saneamento dos sertões”. Ressalte-se que o Relatório era o resultado de expedição solicitada por um organismo federal a outra instituição também federal, para atuar em municípios em que o coronelismo alcançava sua expressão máxima no país. A missão do Instituto Oswaldo Cruz plantou a semente da ação do poder central nos estados do nordeste^19.

  1. O Relatório Neiva-Pena O trabalho de Belisário Pena e Artur Neiva permitiu às elites urbanas uma visão contundente das condições médico-sanitárias e sociais no grande sertão.

O relatório apresenta um quadro social dos sertões à maneira de Euclides: os autores confrontam os problemas sociais como se estivessem à procura de doenças em um organismo social, estabelecendo causas e observando sintomas. Ao apontar as causas, criticam a visão, difundida pelas oligarquias, de que a pobreza e a doença se explicariam pelo clima adverso do nordeste. Contra a explicação climática, argumentam que as populações dos vilarejos situados às margens do rio São Francisco apresentavam condições de saúde tão precárias quanto as populações das regiões semi-áridas^20. Discutem vários aspectos da organização social dos sertões: a família não existia “legalmente”, por falta de registro civil; os filhos “quase nunca são registrados”;

(^18) Ver Memórias do Instituto Oswaldo Cruz , vol. 8, 1916, pp. 74-224. Foi esta a

expedição científica a que se refere Vicente Licínio Cardoso, citado acima, que entretanto omite o nome de Neiva como um dos chefes da missão. Os dois higienistas percorreram durante vários meses o norte e noroeste da Bahia, o sudoeste de Pernambuco, o sul do Piauí e o norte e sul de Goiás. (^19) Não houve oposição declarada à missão nas áreas de pesquisa. É provável

que os governos estaduais tenham colaborado na seleção das áreas de pesquisa de modo a minimizar os “riscos” para os dois higienistas e equipe. Entretanto, houve etapas em que a missão enfrentou obstáculos, como sugere a seguinte passagem: “(...) vamos atravessar uma região perigosa de barracões de maniçobeiros, gente sem escrúpulo, arrebanhada nos sertões da Bahia, Pernambuco e Alagoas, cangaceiros habituados aos assaltos e morticínios” (Artur Neiva e Belisário Pena, “Viagem Científica pelo Norte da Bahia, Sudoeste de Pernambuco, Sul do Piauí e de Norte a Sul de Goiás”, Memórias do Instituto O. Cruz, 8, 1916, p. 195). (^20) Idem, pp. 179-180.

“os enterramentos realizam-se na ausência de qualquer formalidade legal”; a população rural vive atrelada ao poder do latifundiário; a pequena propriedade é praticamente inexistente^21.

Em vários pontos os autores confundem causas e sintomas, mas prevalece ao longo do trabalho a denúncia das relações sociais injustas no campo. Aponta-se a existência de trabalho forçado em vastas áreas de maniçobais no Piauí e Bahia; devido à escassez de braços, os latifundiários aliciavam mão-de-obra – inclusive crianças – nos vilarejos ao longo do São Francisco, com a promessa de altos salários. A história já é conhecida: cedo, o peão se endividava no armazém da fazenda, pagando preços exorbitantes. Guardas armados impediam a fuga dos peões, proibidos de sair enquanto não saldassem a dívida sempre crescente^22.

Neiva e Belisário Pena posicionam-se de modo ambígüo quanto às medidas necessárias para superar a pobreza e a doença na região. De um lado, o texto fala por si, e sugere a inviabilidade de paliativos, de outro, quando os autores fazem recomendações de políticas estatais, as medidas propostas não colocam em xeque as estruturas de poder vigentes. Uma das recomendações – a colonização por meio da imigração européia – lembra as proposições dos teóricos do “embranquecimento”. Parece-me, entretanto, que Neiva e Pena vêem o imigrantes antes como disseminador de novas técnicas do que como agente de um suposto fortalecimento da raça^23. Dentre as medidas de emergência para a melhoria das condições de saúde, propõem a criação de um serviço médico itinerante para toda a região^24.

A missão científica de Neiva e Pena não provocou mudanças imediatas nas políticas de saúde, até então restritas às mais importantes áreas urbanas do país. Entretanto, a publicação do Relatório atraiu a atenção de setores das elites, e reacendeu no Congresso e no Palácio do Catete o interesse pelos sertões – já esquecidos desde o episódio de Canudos.

2. O Panfleto Político de Belisário Pena Belisário Pena empenhou-se na luta política pelo saneamento dos sertões. Neiva deixou a linha de frente do movimento sanitarista por alguns anos e retornou ao laboratório. Em 1918, Belisário publica Saneamento do Brasil, onde a questão sanitária aparece como um tema mais político do que no trabalho anterior com Neiva.

O Saneamento do Brasil aponta as falhas mais graves das políticas de saúde da época. Pena conclui que, à exceção de São Paulo, e em certa medida Minas Gerais e Rio Grande do Sul, os estados brasileiros só cuidavam

(^21) Idem, ibidem.

(^22) Idem , p. 180.

(^23) Cf. idem , p. 181.

(^24) Idem, p. 182.

inglês e norte-americano, países em que a ampla participação das comunidades locais e a descentralização administrativa eram encorajadas^31. A década de 20 – mais precisamente os anos 1918/28 – preside ao aprofundamento do movimento sanitarista no Brasil. Examino a seguir a disseminação da idéia do saneamento e as políticas de saúde do período.

A Ideologia do Saneamento. A rápida disseminação do pensamento sanitarista foi discutida por Monteiro Lobato:

“Idéias há que ferem fundo e se propagam com tal rapidez, coligem tal número de adeptos, empolgam de tal forma o espírito, explicam com tal lucidez tantos fenômenos desnorteadores que, ainda em meios de opinião rarefeita como o nosso, passam rapidamente da fase estática para a dinâmica. Fazem-se força, e levam de roldão todos os obstáculos. A idéia do saneamento é uma”^32. Que função desempenhou a ideologia sanitarista durante os anos vinte? À primeira vista foi uma ideologia de mobilização política, se se tem em conta a atuação de um Belisário Pena. Confronte-se a descrição de Pedro Nava:

“Não se sabia onde acabava o apóstolo e começava o charlatão; onde terminava o higienista e principiava o caixeiro- viajante do vermífugo, naquela bolinha humana (...) que percorreu o Brasil como uma espécie de pregador, de mestre, de camelô, de messias, de orador popular, de empresário e redentor (...) – falando a crianças, a adultos, a velhos; discursando nos grupos escolares, nos ginásios, nas faculdades, nas ruas, nos cinemas (como assisti em Belo Horizonte, aí pelos vinte, no Odeon, onde ele urrava: ‘Dizem que sou caixeiro-viajante! Sou! Sou o caixeiro-viajante da higiene! Caixeiro-viajante da saúde! Sou e sou!’); orando a analfabetos e a homens cultos; ao povo e aos políticos; a governados e governantes; nas fazendas, nas cidades; no Norte e no sul – ensinando seu Evangelho (...)”^33. Entretanto, o movimento sanitarista não dispunha de muitos Belisários. Era fundamentalmente um movimento de elite. É verdade que dava “uma vista de olhos para a população”^34 , mas pouco fez além da distribuição de exemplares da história do Jecatatuzinho^35 , num país que contava, em 1920,

(^31) Sobre o movimento sanitário na Inglaterra e nos Estados Unidos, ver George

Rosen, A History of Public Health, Nova York, MD Publications, 1958, pp. 192- 250, esp. pp. 218, 222, 239-240, 249-250. (^32) Monteiro Lobato, Mr. Slang ..., op. cit., p. 297.

(^33) Pedro Nava, Baú de Ossos, 6 a. ed., Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1983, p.

(^34) Cf. expressão de Nicolau Sevcenko em entrevista à Veja , 25 de janeiro de

1984, p. 6. (^35) Ver o artigo de Monteiro Lobato, “Problema Vital”, op. cit., pp. 329-340.

70% de analfabetos. Belisário foi um caso isolado de sanitarista e reformador social decidido a empolgar a opinião pública. Os limites de sua atuação eram dados pelo regime oligárquico, desinteressado da mobilização popular^36.

Se a proposta de saneamento dos sertões era elitista, persiste a questão do formidável impulso que tomou o movimento, atraindo setores das classes médias, formando correntes favoráveis às teses sanitaristas dentro do Congresso, agitando a imprensa. De onde vinha a força política do movimento?

Parece-me que o movimento sanitário representou um canal dos mais importantes na República Velha para o projeto ideológico de construção da nacionalidade^37. A ligação saúde pública & nacionalidade é talvez o traço mais distintivo do movimento sanitário brasileiro em relação ao europeu e norte- americano. Como se estabelece a relação mencionada? Cabe aqui retomar alguns pontos sugeridos anteriormente. Viu-se que até por volta de 1915, a suposta incapacidade racial do brasileiro era considerada uma pedra no caminho da modernização. A vinda de sangue novo com o imigrante europeu representava o mais importante trunfo das elites para a desejada salvação nacional. Ora, a queda da imigração européia durante a primeira guerra mundial abriu caminho para propostas alternativas. Ademais, mesmo nos anos de forte imigração, só os estados meridionais se beneficiavam da entrada de europeus. Os sanitaristas acenavam com uma proposta que atraia não só as elites do sul como as do norte. Nosso atraso, diziam, se devia à doença, não ao determinismo biológico. A construção da nacionalidade exigia que as elites desviassem os olhos sempre postos na Europa para o interior do Brasil, para as grandes endemias dos sertões. A (re)integração dos sertões à civilização do litoral representava o grande desafio para o fortalecimento da nacionalidade, pois população doente = raça fraca = nação sem futuro^38.

Importa ressaltar que a relevância política do movimento sanitário esteve justamente em seus aspectos ideológicos – na idéia-força avassaladora a que se refere Lobato -, não em suas realizações práticas, que não lograram a erradicação das endemias rurais. Mas, ainda que de pouco alcance e reduzida eficácia, a legislação e as políticas de saúde do período lançaram as bases para campanhas subseqüentes e romperam, aqui e ali, a inércia ou a resistência das oligarquias rurais^39.

(^36) Assinale-se ainda que a campanha pelo saneamento rural não atraía todos

os principais grupos de higienistas da época. Por exemplo: a Sociedade Brasileira de Higiene, que atuou de 1923 a 1930, voltava-se para os problemas do saneamento urbano no país. Ver, a respeito, Madel Therezinha Luz et alii, “ O Modelo Médico de Saúde Pública no Brasil: Papel dos Institutos de Pesquisa e das Escolas Médicas de Saúde Pública nas Políticas de Saúde Brasileiras”, Relatório de Pesquisa, mimeo, 1980, pp. 195-205. (^37) Skidmore (Black into White ... op. cit., 167-170) tece algumas considerações

na mesma linha, em capítulo dedicado ao “novo nacionalismo”. (^38) Para Monteiro Lobato ( Mr. Slang ..., op. cit., p. 303), a campanha do

saneamento “era o derradeiro cartucho na defesa da nacionalidade vacilante”. (^39) Para o exame do relativo sucesso das políticas de saúde no meio rural

paulista, ver Luiz A. de Castro Santos, “Estado e Saúde Pública no Brasil,

chefia do serviço sanitário estadual em 1924, medida que refletia a intervenção federal crescente nos estados^44.

O saneamento rural recebeu menor atenção durante a presidência Washington Luis. Alguns postos de profilaxia rural no nordeste chegaram a ser fechados, em decorrência de cortes nos gastos públicos. Entretanto, as atividades que visavam o despertar da consciência sanitária do povo – para usar expressão corrente na época – prosseguiram durante os últimos anos da República Velha. Belisário Pena, então inspetor federal de educação sanitária, deu prosseguimento à sua cruzada de muitos anos, percorrendo, de 1927 a 1930, o interior de Minas Gerais, Rio Grande do Sul e vários estados do nordeste^45. Essas atividades revelavam que o movimento sanitário não perdera ainda seu vigor enquanto ideologia, enquanto “idéia-força”.

As forças políticas e institucionais pró-saneamento. Os médicos e intelectuais que se batiam pela causa do saneamento contaram com importantes forças de sustentação política e institucional. De um lado, o movimento sanitarista contava com o apoio de alguns setores de ponta do aparelho de Estado. Um aliado importante foi a Inspetoria de Obras contra a Seca, criada em 1909 por Francisco Sá, ministro da Viação e Obras Públicas de Nilo Peçanha^46. A direção do organismo federal foi entregue a Miguel Arrojado Lisboa, ex-aluno da Escola de Minas de Ouro Preto e geólogo de renome^47. Os ventos do positivismo ilustrado^48 mantinham alta a cotação das ciências naturais e do conhecimento técnico. Arrojado Lisboa imediatamente

(^44) Ver Góes Calmon, Mensagens do Governador à Assembléia Legislativa da

Bahia, 1926, p. 180; 1927, p. 212. Ver ainda O Imparcial, 29 de março de 1928, pp. 5-6. (^45) Cf. o jornal baiano O Imparcial , 17 de fevereiro de 1928, p.3. Sobre a política

financeira de Washington Luís, ver Bello, História ..., op. cit., pp. 258-261. Sobre as atividades de educação sanitária no governo W. Luís, consultar Fernando de Azevedo, A Cultura Brasileira, Brasília, Ed. Universidade de Brasília, 1963, pp. 301-302. Os estados do Nordeste percorridos por Belisário Pena foram Alagoas, Pernambuco, Paraíba e Rio Grande do Norte. (^46) Para uma análise das políticas públicas no Nordeste durante o início do

século, ver Albert O. Hirschman, Journeys Toward Progress: Studies of economic Policy-Making in Latin America, Nova York, W. W. Norton, 1973, pp. 11-50. (^47) Ver Simon Schwartzman (com a colaboração de Antônio Paim et alii),

Formação da Comunidade Científica Brasileira, São Paulo, Finep/Cia. Editora Nacional, 1979, pp. 98-99; Carlos Seidl, discurso em louvor de Artur Neiva, em Artur Neiva, O Saneamento do Sertão ..., op. cit., p. 16. (^48) Sobre o positivismo ilustrado no primeiro período republicano e as

características distintas do movimento chefiado no Rio por Miguel Lemos e outros, ver Antônio Paim, org., Plataforma Política do Positivismo Ilustrado , Brasília, Editora Universidade de Brasília, 1981. Para uma análise da preocupação “cartesiana” com as ciências na Escola de Minas de Ouro Preto, ver José Murilo de Carvalho, A Escola de Minas de Ouro Preto: O Peso da Glória , São Paulo, Finep/Ed. Nacional, 1978, esp. p. 76.

lança a Inspetoria em um programa de estudos sobre a região nordestina. No que dizia respeito às condições de vida, saúde e saneamento, Lisboa solicitou a Oswaldo Cruz a organização de uma missão científica na região. Daí resultou a missão Neiva-Pena.

Em segundo lugar, o movimento sanitário conseguiu adesões importantes no Congresso Nacional. O deputado Azevedo Sodré, da bancada do Rio de Janeiro e nilista , foi o mais destacado propagandista do movimento de saúde pública na Câmara Federal. As correntes políticas pró-saneamento representavam os ideais reformistas das classes médias das grandes cidades, ou aliavam à defesa de tais ideais o espírito regionalista^49 dos estados mais duramente atingidos pelas endemias rurais, e sem recursos para combatê-las.

Duas outras forças políticas e institucionais concorreram para o crescimento do movimento sanitarista.

A primeira delas foi o tenentismo. Mais precisamente, os revolucionários da Coluna Prestes. Entre 1924 e 1927, a marcha da Coluna pelo interior do país contribuiu para a difusão da idéia de reforma social e política defendida pelos propagandistas do saneamento. Paradoxalmente, o movimento manifestamente contrário ao governo federal favoreceu uma causa que encontrava amplo respaldo do aparelho de Estado. Isto se explica em parte pelo fato dos rebeldes e dos sanitaristas terem compartilhado ideais reformistas. De outra parte, assinale-se que os rebeldes deram ao poder central uma justificativa para abafar as vozes dissidentes dentro de suas próprias fileiras, e acelerar o processo de intervenção no campo da saúde pública^50.

Um segundo fator, este de natureza institucional, foi a vinda da missão Rockefeller ao Brasil. A missão teve um papel importante na evolução do movimento sanitarista. Em 1917 iniciavam-se as atividades da Fundação no Brasil, com a criação de alguns postos de saúde. Carlos Chagas e Vital Brasil participam de uma comissão consultiva escolhida pela Rockefeller^51. As atividades ganharam impulso no Distrito Federal e no interior dos estados do Rio de Janeiro e São Paulo, onde a Fundação juntou-se ao poder federal e governos estaduais no combate à ancilostomíase e à malária. Em pouco tempo

(^49) Cf. observação de Francisco Iglésias, em Schwartzman, Bases do

Autoritarismo ..., op. cit., p. 92. (^50) Em 1926, último ano do governo Bernardes, a Coluna penetrou em território

nordestino. O movimento das tropas federais e de seus aliados, bem como dos revolucionários, prejudicou a operação dos serviços de saúde no interior. Vários postos de profilaxia foram requisitados pelas tropas federais e estaduais para o tratamento exclusivo dos soldados. Ver A Tarde, 28 de junho de 1926, p. 1; 13 de julho de 1926, p. 1; 20 de agosto de 1926, p. 1; Góes Calmon, Mensagem do Governador à Assembléia Legislativa da Bahia, 1927, pp. 113- 127, 178-208, passim. Um testemunho recente sobre a Coluna Prestes está em Aspásia Camargo e Walder de Góes, Meio Século de Combate: Diálogo com Cordeiro de Farias, Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1981, pp. 71-153. (^51) Fundação Rockefeller, Annual Reports, 1916, pp. 71-72; 1918, pp. 92, 97-98,

150-151.

teve que se ajustar, a meu ver, àquelas tradições que precedem sua vinda ao Brasil.

Um movimento interrompido

Os anos vinte constituíram a fase de maior politização do movimento sanitário no Brasil. As políticas de saúde – que refletem esta fase de agitação política em torno da questão do saneamento -, se em nenhum momento concretizaram os objetivos de um Belisário Pena ou de um Monteiro Lobato, representaram, não obstante, os primeiros passos naquela direção. Aparentemente, a ideologia da “redenção dos sertões” pegara. Entretanto, no período pós-30 o movimento perdeu progressivamente o vigor dos últimos dez a quinze anos da República Velha. As campanhas sanitárias de caráter localizado, como a realizada no Ceará, entre 1930 e 1945, para combater uma epidemia devastadora de malária, reforçam meu argumento^55. Assinale-se que se tratavam de surtos epidêmicos; não se combatiam as doenças, como a malária, que grassavam em caráter endêmico em extensas áreas do interior do país.

O período varguista adotou um critério econômico de combate às endemias. Por exemplo: o desenvolvimento da mineração no vale do Rio doce exigia o saneamento da área a ser explorada. Vargas determina então que um Serviço Especial de Saúde Pública realize o saneamento da região, em 1942. No mesmo ano, o SESP desenvolve atividades de saneamento em áreas de importância estratégica na Amazônia, dado “o interesse momentâneo que a guerra criara pela borracha”^56.

Entretanto, ao observador de hoje pareceria que a Revolução de 30 e o Estado Novo traziam em seu bojo as melhores condições para o avanço do movimento sanitarista e para a concretização da meta de redenção dos sertões. As antigas bases de sustentação do movimento sanitário durante a Primeira República haviam permanecido depois da Revolução de Outubro. É verdade que ocorrera uma perda para o movimento com a supressão do debate político nacional a partir de 1937. Mas se os sanitaristas perdem por

e suas realizações importantes no campo da medicina preventiva, gostaríamos de iniciar esses estudos naquele país” (6 de outubro de 1915. Arquivos da Fundação Rockefeller, grifo meu). (^55) O perigoso transmissor Anopheles gambiae penetrou no Brasil em 1930 e do

Rio Grande do Norte chegou ao vale do Jaguaribe, no Ceará, onde em 1938 provocou 100 mil casos de malária e 14 mil mortes. A eliminação do gambiae , em 1945, envolveu a ação conjunta do governo federal, da missão Rockefeller e do Serviço Especial de Grandes Endemias, uma entidade privada. Ver Simon Schwartzman, Formação da Comunidade ..., op. cit., pp. 239, 246, 249; Raymond B. Fostick, The Story of the Rockefeller Foundation, Nova York, Harper, 1952, pp. 72-79; Fundação Rockefeller, Relatório Anual, 1931 (edição em francês), p. 65. (^56) Mario Wagner Vieira da Cunha. O Sistema Administrativo Brasileiro, 1930-

1950, Rio de Janeiro, CBPE/INEP, MEC, 1963, pp. 96-98.

este lado, poderiam ter ganho por outro; o aparelho estatal, já desde a República Velha um forte aliado, experimenta ainda maior concentração de poder político durante o período varguista^57.

Por que, então, o esfacelamento do movimento sanitarista? Já sugeri anteriormente que a relevância política do movimento esteve não nas políticas de saúde da década de 20, mas na força ideológica de suas bandeiras. Este aspecto, como se verá, fornece a chave para a compreensão do esvaziamento do movimento sanitário a partir de 30.

Primeiramente, a burocratização teve um efeito paralisante sobre o movimento. A criação do Ministério da Educação e Saúde Pública, em 1930, retira da bandeira da reforma sanitária sua força ideológica e transforma-a – para usar expressão corrente nos dias de hoje – em projeto governamental. A idéia-força de que falava Monteiro Lobato se rotiniza, os propagandistas do saneamento do interior do país abandonam a atividade quase “missionária” dos primeiros passos do movimento, para amoldarem-se ao role model de burocratas no Ministério recém-criado. Reduzida a força simbólica de construção da nacionalidade que empolgará o movimento sanitário durante a Primeira República, ele se despolitiza, e seu potencial de transformação social no campo permanecerá, desde então, inaproveitado.

Atente-se para um aparente paradoxo. A criação de um Ministério da Saúde Pública era antiga aspiração dos higienistas – o deputado Azevedo Sodré bateu-se por sua criação durante longos anos. O ministério criado por Vargas era de saúde e educação, mas não era esse o obstáculo para o progresso do movimento sanitário. Na verdade, os sanitaristas não atentavam para o que hoje parece trivial: o movimento não precisava de ministério. Demandava a mobilização política da população do interior em torno da bandeira do saneamento. Esta mobilização exigia que Vargas estivesse determinado a enfrentar as oligarquias agrárias e promover a elevação dos padrões de saúde e saneamento dentro das fazendas e nas sedes dos municípios. Estas eram as condições – que não se verificaram durante a era de Vargas – para a erradicação das “grandes endemias dos campos”.

O período varguista desloca o projeto de construção da nacionalidade dos sertões para a fronteira , em manobra que poupa o novo regime do enfrentamento com as oligarquias do grande sertão. A “invenção da fronteira durante a época de Vargas foi o segundo fator responsável pelo fim do movimento sanitarista.

Este ponto deve ser visto com cuidado. A literatura sobre o primeiro período varguista (1930/45) salienta a adoção, pelo regime, de um projeto de interiorização através da Marcha para o Oeste^58_._ Com este título, o ensaio de

(^57) Ver a respeito da “nova centralização” ou da “ordem estatal centralizada”,

Schwartzman, Bases do Autoritarismo ..., op. cit., pp. 109-113; Raimundo Faoro, Os Donos do Poder: Formação do Patronato Político Brasileiro, 4 a. ed., Porto Alegre, Globo, 1977, pp. 708-725. (^58) Veja-se Manoel Maurício de Albuquerque, Pequena História da Formação

Social Brasileira, Rio Graal, 1981, p. 588; E. Belford Burns, A History of Brazil, Nova York, Columbia University Press, 1970, p. 353. Para uma análise

da Primeira República – a contestação política do operariado urbano, a inexistência de movimentos reivindicatórios no campo – contribuiu para o esvaziamento definitivo da ideologia de redenção dos sertões.

Em resumo: da ideologia à política pública, o centro nervoso da construção nacional durante o pós-trinta deslocou-se dos sertões para a fronteira, a oeste, e para as grandes cidades, a leste e sul do país. Os novos rumos do processo de nation-building prenunciaram o esvaziamento político do movimento sanitarista. Finalmente, o movimento sanitarista inviabilizou-se sob o peso crescente da burocratização das atividades de saúde durante a vigência do “Estado Administrativo” de Vargas.

( Recebido para publicação em outubro de 1984)

ABSTRACT

Sanitarian Thought in the First Republic: An Ideology for the Construction of Nationality

The author discusses the articulation of sanitarian ideas (1910-1930) with Brazilian social thought from the same period. Propagandists for the public health movement labored to wage campaigns of almost missionary fervor against endemic disease in the backlands. As the same time, a stream well- known to the national social imagination encountered the very ballast of nationality in the hinterlands and backwoods regions of Brazil. These two systems of ideas contributed to the formation of a reformist current in the National Congress and also to the formulation of a public health policy on the part of the State machinery during the First Republic.

The author examines the social, political and institutional bases for sanitarian thinking and suggests hypotheses to account for the political deflation of the sanitarian movement in the period after the revolution of 1930.

RÉSUMÉ

La Pensée Sanitariste sous la Première République: Une Idéologie de construction de La Nationalité

Ce travail a trait à l’articulation entre la pensée sanitariste et la pensée sociale brésilienne de l’époque entre 1910 et 1930. Ceux qui vantaient les mérites du mouvement de santé publique luttaient en faveur de la réalisation de campagnes quasiment missionaires de combat contre les endémies dans les sertões. Par ailleurs, un courant assez connu de l’imagination sociale brésilienne voyait dans la campagne et les campagnards la base même de la nationalité. Ces deux systèmes d’idées contribuèrent à la formation d’un courant reformiste au sein du Congrès National et à la formulation par l’appareil

d’Etat d’une politique de santé publique au cours de la Première Republique. Cet article aborde aussi les bases sociales, politiques et institucionnelles de la pensée sanitariste et présente des hypothèses visant à expliquer la perte de contenu politique du mouvement sanitariste lors de la période qui suivit la Révolution de 1930.