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O ensino da geografia em questão e outros temas, Notas de estudo de Geografia

TERRA LIVRE 2 Julho de 1987

Tipologia: Notas de estudo

2010

Compartilhado em 28/04/2010

jose-leonardo-nery-silva-11
jose-leonardo-nery-silva-11 🇧🇷

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O ENSINO DA GEOGRAFIA EM QUESTÃO

E OUTROS TEMAS

TERRA LIVRE 2

Julho de 1987

0 ENSINO DA GEOGRAFIA

EM QUESTÃO

E OUTROS TEMAS

José William Vesentini Carlos Walter P. Gonçalves Vânia R. F. Vlach Tomoko I. Paganelli Nídia Nacib Pontuschka Nelson Rego Pedro Costa Guedes Rossana Boldongi Fowler Vânia Regina S. Zappia Maria Lúcia M. B. Medeiros

Editora Marco Zero Associação dos Geógrafos Brasileiros

Terra Livre 2

TERRA LIVRE é uma publicação semestral da A G B — Associação dos Geógrafos Brasileiros.

Qualquer correspondência pode ser enviada para a A G B — Nacional (a/c Coordenação de Publicação): Avenida Professor Lineu Prestes, 338 — Edifício Geogra- fia e História — Caixa Postal 64.525 — Cidade Universi- tária — C E P : 05497 — São Paulo — SP — Brasil. Telefone: (011) 210-2122 — ramal 637. ISSN 0102-

Editor responsável: José William Vesentini

Conselho editorial: Armen Mamigonian Aziz Nacib Ab'Sáber Ariovaldo Umbelino de Oliveira Beatriz Soares Pontes Carlos Walter P. Gonçalves Horieste Gomes José Pereira de Queiroz Neto Manoel F. G. Seabra Manuel Correia de Andrade Márcia Spyer Resende Maria Lúcia Estrada Milton Santos Nelson Rego Pasquale Petrone Sílvio Bray Samuel do Carmo Lima Tomoko Iyda Paganelli

A P R E S E N T A Ç Ã O

AGB — nacional — mas que expressa um desejo e uma aspiração da imensa maioria dos associados da entidade —, colocamos em circulação o número 2 da Terra Livre: um órgão de divulgação que busca extravasar os muros da "comunidade geográfica" e veicular uma geografia com- prometida com as lutas e demandas voltadas para a cons- trução de uma sociedade mais justa e democrática; um periódico de natureza pluralista no sentido de não se ater somente a uma das linhas da geografia, e do qual não ape- nas geógrafos participam na elaboração de artigos ou ensaios. Apesar de haver dois textos que não versam direta- mente sobre a geografia escolar — sendo um deles o resul- tado sucinto de um levantamento empírico sobre poluição fluvial e o outro uma reflexão teórico-metodológica sobre o discurso geográfico e seu objeto —, este número da re- vista é dedicado ao tema ensino da geografia. Cinco arti- gos abordam, de forma diferenciada, questões como a ideologia nacionalista na geografia tradicional, a percep- ção do espaço da criança numa ótica piagetiana, o signi- ficado de um ensino crítico da geografia, alguns problemas do planejamento escolar da nossa disciplina, etc.

Todos os autores, em que pese as salutares diferen- ças, são nomes representativos frente ao tema, possuindo vários anos de experiências educacionais a nível de 1°, 2° e

com grande satisfação que, mantendo a continuidade de uma revista iniciada com a diretoria anterior da

3 o graus, além de leituras, reflexões e pesquisas sobre as- pectos do ensino da geografia. É importante que isso fi- que ressaltado, pois nenhum deles pretendeu falar de cima, de fora do universo árduo da labuta cotidiana do profes- sor de geografia. E nem poderia ser diferente: afinal a intensa e crescente valorização da questão educacional nos Encontros e Congressos geográficos realizados no Brasil nos últimos anos, a par da aguda percepção do ensino como elemento catalizador das preocupações, das dúvidas e dos questionamentos dos geógrafos sensibilizados com a rein- venção da democracia, são fatos inegáveis que derivam de uma maior ligação da geografia com o social e da feliz des- coberta, por parte de uma ampla parcela dos docentes, da possibilidade de também produzir e criar um saber geo- gráfico na atividade pedagógica. A elaboração, sempre per- manente, de um ensino crítico da geografia, como vai fi- cando cristalino, não pode dispensar a pluralidade de op- ções e a constante troca de experiências. Duas novidades marcam a revista Terra Livre a par- tir deste número: a periodicidade semestral e a sua dis- tribuição e venda nas principais livrarias do país. Este número 2, de junho de 1987, corresponde ao primeiro se- mestre do ano; esperamos publicar outro número em de- zembro, correspondente ao segundo semestre de 1987. Com a periodicidade será então possível iniciar um sistema de assinaturas, fundamental para a continuidade da revista. E a co-edição com a editora Marco Zero permitirá uma melhor distribuição e vendagem em livrarias, atingindo assim um público mais amplo que os associados da AGB. Tal fato, acreditamos, operacionalizará de forma mais ple- na os objetivos da Terra Livre como veículo de divulgação e como instrumento de debates, ampliando de certa forma o vínculo da geografia e dos geógrafos com as transforma- ções sociais.

José William Vesentini

que aqui faremos. No entanto, a prática que recusa refletir sobre o seu significado pode ser responsável, em nome de um objetivismo pragmático, por efeitos muitas vezes con- trários às suas pretensões. Neste momento introdutório, é bom lembrar (que a exclusão da filosofia e a introdução dos "Estudos Sociais" em nossas escolas teve por base, exatamente, o privilegiamento do fazer, do agir, no lugar do pensar e refletir. Não se trata, obviamente, de inverter os pólos da questão, mas, fundamentalmente, do reconhe- cer que o agir e o pensar, o fazer e o refletir são dois mo- mentos inerentes à "praxis" humana. Negar qualquer um desses momentos 6 negar o que constitui a natureza do ser humano,

Como já antevemos, a problemática de que nos ocupa- remos é bastante complexa, e, nesse sentido, gostaria que saíssemos daqui com dúvidas estimulantes, mais do que com certezas absolutas.

Por outro lado, é preciso alargar a participação no debate do que se chama Geografia Crítica. Que criticidade é esta que continua sendo um discurso de poucos, muitas vezes hermético, que em vez de ampliar o espaço de re- flexão continua limitado ao restrito espaço da Universida- de? Afinal, até mesmo por força de lei, é nas escolas de 1° e 2° graus que se desenvolve a maior prática social da- queles que são formados em Geografia. Se a proposta de uma nova Geografia for entendida como um mero discurso e não como uma nova forma de pensar e agir no mundo, o debate pode continuar do jeito que está. Acredito que a proposta de uma nova Geografia só terá sentido na me- dida cm que ela possa avançar ao ser apropriada c ser fe- cundada por mais cabeças.

Há várias portas de entrada para a discussão da Geo- grafia. Gostaria de propor duas: em primeiro lugar, é preciso refletir sobre a nossa prática enquanto professo- res, analisar nossa rotina de trabalho, processo esse que parece tão natural por ser o nosso cotidiano. Km segundo

lugar, precisamos refletir sobre os dilemas com que nos defrontamos enquanto professores de Geografia. Devemos estar atentos para o seguinte: a Escola, que parece ser uma instituição muito natural, como fenômeno social de massa é extremamente recente — do final do século XIX. Até então as escolas estavam atreladas às ins- tituições religiosas, à formação de sacerdotes, c passavam um saber extremamente exclusivista c elitista. Só com a Revolução Industrial e com o advento da sociedade capita- lista é que se vai ter a generalização da alfabetização. As- sim, até o século XIX, a humanidade viveu em sua quase totalidade som saber ler e escrever. A Escola, portanto, que encaramos como uma coisa muito natural, nem sem- pre existiu: ela é um produto do século XIX.

Esta escolarização da sociedade faz parte do ideário iluminista, da constituição da sociedade a partir de indi- víduos dotados de razão e, por isso, capazes de estabelecer um contrato social. A escola cumpriria uma função impor- tante ao difundir os conhecimentos necessários à formação do bom cidadão. Não se deve negligenciar, po r outro lado, o papel desempenhado por uma série de associações e en- tidades de trabalhadores que, além de reivindicarem direi- tos relativos à melhoria das condições de vida e trabalho, desenvolviam, autonomamente, cursos de alfabetização c de informação científica. Paulatinamente, as entidades operárias perdem interesse por essas atividades que vão sendo transferidas para o Estado (ver a esse respeito o excelente livro do Harry Braverman, "Trabalho e Capital Monopolista". Zahar Editores, Rio de Janeiro, 1981. 3. a edição).

Entretanto, a sociedade cria instituições para poder se afirmar através delas, isto é, as instituições são criadas para reproduzir a sociedade que as criou e a Escola não foge à regra. Desta forma, o aparelho estatal controla Cada um de nós e sabemos disso, inclusivo pela observação dos currículos escolares: há todo um sistema do controle

estado de coisas agradecem. Já aqueles que sofrem os efei- tos do atual sistema continuam sendo oprimidos e explora- dos apesar (ou por causa) da "neutralidade" que muitos acreditam portar. Por outro lado, somos professores de Geografia e, a partir do que já foi exposto, duas questões se colocam: a primeira é que também acreditamos que ser professor de Geografia é muito lógico e muito natural. A segunda nos remete ao problema de verificar se a Geografia tem algu- ma especificidade enquanto saber escolar e quais as im- plicações deste saber que passamos aos nossos alunos. Vamos por partes: podemos lembrar que, até o século XIX, a Geografia, enquanto saber específico, não existe. Nos séculos X V I e XVII, chamava-se de geógrafo a pessoa que fazia mapas, o que hoje seria o cartógrafo. A Geogra- fia foi ensinada pela primeira vez na Universidade por um filósofo famoso, Emmanuel Kant, que ensinava não apenas Geografia, mas uma série de outras coisas. É a partir do século XIX que se vai ter, através das figuras de Humboldt e Ritter, uma Geografia institucio- nalizada dentro das Universidades. O movimento que ins- titui a Geografia como ciência vai levar, no mesmo pro- cesso social, ao surgimento de uma série de disciplinas es- pecíficas. É um processo que vai constituindo a chamada divisão do trabalho científico e, ao discutirmos a Geogra- fia, devemos tomar isso em conta.

O que é Geografia? Trata-se de uma pergunta tão ve- lha quanto a própria Geografia. Mas é importante perce- ber que, ao nos preocuparmos em levantar o que seja a matéria geográfica, estabelecemos fronteiras com as de- mais ciências e estamos, assim, participando desse proces- so global de fragmentação do conhecimento, de parceliza- ção do saber. Ao fixarmos limites entre Geografia, Socio- logia, Economia, estamos contribuindo para a dicotomiza- ção do saber e perdendo a visão do real. Ao mesmo tempo, achamos que a Geografia é a realidade, isto é, estamos tão imbuídos da concretude do que seja a Geografia que a

confundimos com a realidade. Esta, porém, é muito maior que a Geografia; ela é econômica, é social, é política, é na- tural. Ao tentarmos dar uma explicação geográfica para a realidade, podemos cair naquilo que se chama geografis- mo, como o historiador cai no historicismo, ou o sociólogo no sociologismo e o economista no economicismo, porque cada um acha que tem a verdade última a respeito da rea- lidade. Essa parcelização do saber conduz à perda da visão do todo.

Rousseau, filósofo iluminista do século XVIII, fala, em uma de suas obras, da importância da organização do espaço para a justiça e para a democracia; discute — sem nunca ter sido citado pelos livros de Geografia — como melhor organizar o espaço com vistas a realizar a demo- cracia e a justiça. Aliás, temas que a Geografia dificil- mente discute, pois se considera que democracia e justiça são assuntos que devem ser discutidos por juristas ou cien- tistas políticos, não por geógrafos. Rousseau, preocupado com os problemas da sociedade de seu tempo, fez refle- xões em vários planos e não esqueceu que o geográfico é também u m a dimensão da realidade. O problema é o geó- grafo achar que a Geografia é a dimensão da realidade, ou que a Geografia é o saber que vai resolver todas as questões. Rousseau trabalhava com o geográfico, mas den- tro de um todo; dentro do processo sócio-histórico que es- tava vivendo. A fragmentação do saber que vai se estabelecendo des- de o século XIX, através do processo de divisão do trabalho científico, chega hoje a requintes. O pensador francês Jacques Rancière afirma que quan- do um saber é parcelizado e institucionalizado como ciên- cia particular, geralmente isso acontece para que se torne instrumento de dominação. Nós, geógrafos, ao destacar- mos o geográfico da realidade, estamos efetuando uma abs- tração. O problema está em considerarmos que essa abs- tração é concreta, acabando por fazer geografismo. Se o geógrafo ficar preocupado com os limites da Geografia,

tratar de questões do econômico. E nós devemos pergun- tar: a quem interessa esse tipo de fragmentação do saber? Em relação à Geografia, também caímos em dilemas muito semelhantes. Por exemplo: uma fábrica é um fenô- meno geográfico? Podemos responder que não; que é um lugar de produção. Ao mesmo tempo, contudo, a fábrica está ocupando um lugar no espaço; dentro dela há uma estrutura de classes: o patrão, os gerentes, os trabalhado- res, numa relação tal que a produção não é determinada nem distribuída igualmente por e para todos. Assim, den- tro da fábrica se coloca a questão da desigualdade de clas- ses, onde o patrão e os técnicos controlam os trabalhado- res e estes, por outro lado, sabem perfeitamente que o que estão produzindo não lhes pertence. Portanto, uma fábri- ca é um fenômeno geográfico, mas é também um fenôme- no econômico, sociológico e político. É um lugar de con- flito, de lutas. Se tomarmos o exemplo de uma fazenda, também chegaremos a essa conclusão: é um fenômeno geo- gráfico, é econômico, possui uma determinada estrutura de classes e determinada forma de relação social. Os exem- plos são inúmeros.

E nós, professores, ficamos preocupados em delimitar a Geografia, da História, da Sociologia, etc. Cada um ten- tando garantir seu território e, nessa fragmentação do real, a criança vai se desinteressando cada vez mais pela Escola e pela Geografia. Assim, a discussão da Geografia e a discussão da Escola enquanto instituição devem ca- minhar paralelas e o professor tem uma grande responsa- bilidade nesse sentido. Para nós, professores de Geogra- fia, interessa refletir sobre o seguinte: passamos para os nossos alunos uma visão dicotomizada da realidade e isso não interessa a eles, pois a realidade é muito mais com- plexa. Dessa forma, enquanto estivermos estritamente preocupados em definir a Geografia, em isolá-la das outras ciências, estamos contribuindo para o processo da domi- nação e de fragmentação da realidade.

Pode-se argumentar que hoje em dia é difícil reviver a situação que foi vivenciada até mais ou menos o século X V I I I , quando se tinha uma concepção mais global dos problemas. Isto é verdade, mas não porque os problemas daquela ó poca fossem menos complexos. Não. Trata-se, ha verdade, de uma complexidade diferente da que vivemos hoje. Neste sentido, evocar o tipo de concepção que se tinha àquela época não tem por finalidade copiá-la, até porque os filósofos daquela época não podiam pensar a nossa com- plexidade. Pelo contrário, tem, antes de mais nada, a fina- lidade de pôr em debate a atual divisão do trabalho — diga-se de passagem não só científica — que nada tem de natural, sendo apenas resultado de uma determinada for- ma de conceber o mundo. Por outro lado, conceber a rea- lidade como totalidade não é ter a concepção ingênua de que vamos falar de todas as coisas. A totalidade não é a loma de todas as coisas, como uma certa visão da Geogra- fia, por exemplo, acredita. O saber geográfico dominante fala de clima, vegetação, relevo, hidrografia, população, principais atividades econômicas, etc. Na verdade, preten- de falar de todas as coisas e, no fundo, acaba por produ- zir uma visão caótica do mundo, não analisando como essas coisas se formam, se produzem, se estruturam, se consti- tuem como totalidade. Quando me refiro a esta concepção de totalidade quero dizer, enquanto geógrafo, que o espaço geográfico é algu- ma coisa produzida pela sociedade. Que qualquer socieda- de organiza seu espaço através do. processo de trabalho, apropriando-se socialmente da natureza. Que os homens serialmente produzem a sua Geografia para se reproduzi- rem enquanto seres humanos, num contexto de relações sociais determinadas. Afinal de contas, os homens que exis- tem no espaço geográfico não são apenas um número (den- sidade, distribuição da população), mas seres dotados tam- bém de vontade, aspirações, desejos, enfim de subjetivida- des que são formadas no contexto das relações sociais sob as (quais estão vivendo. Se essas relações são contraditó-

deve estar entre as nossas preocupações: como fazer Geo- grafia sem perder de vista a totalidade social? Para tanto, há que se mexer exatamente com as defi- nições cristalizadas de Geografia e ter uma proposta teó- rica capaz de encarar o real como uma totalidade, isto é, como ser, ao mesmo tempo, geógrafo e fazer uma análise Que transcenda a Geografía? Ou seja, ser geógrafo nao- geografo. O mesmo pode ser dito do economista: entendo que o papel do bom economista é ser um economista não- economista, superando a Economia. Assim, a crítica feita não se refere à Geografia, pois ao criticar esta, pode-se pensar que se trata de uma ciência inferior e que nós, geó- grafos, somos os menos preparados do mundo. Proponho, portanto, discutir o seguinte: como mexer com a insatisfação concreta de um saber parcelizado, que fragmenta o real? Isto significa avançar na reflexão sobre o seguinte ponto: se a Geografia é um saber específico, só se pode perceber sua especificidade em relação as ou- tras ciências, pois ninguém é específico em relação a si próprio. Na medida cm que confundimos a Geografia com a realidade "tout court", na verdade, perdemos a dimensão do que é o não-geográfico; perdemos a diferença, o outro, porque tudo é Geografia, confundindo-a com a realidade. Está nos faltando, portanto, uma proposta teórica capaz de englobar esse problema.

Nesse sentido, gostaria de adiantar alguns problemas, mais do que, agora, sugerir soluções. Foi levantado, de maneira pertinente, que, infelizmen- te, se perdeu uma tradição muito importante da Geogra- fia. Quando fui estudar os iluministas do século XVIII, percebi que pessoas como Humboldt e Ritter, considerados os fundadores da ciência geográfica, estavam extrema- mente alentos diante das questões gerais da época. Por exemplo, eles estabeleceram relações com Scheling, com hengel, com Kant. Estavam envolvidos em uma discussão ampla, na qual acabaram constituindo a Geografia como

ciência, ao mesmo tempo em que participavam dos deba- tes filosóficos do seu tempo. Gostaria, pois, de levantar a questão: estamos nós acompanhando o debate filosófico do nosso tempo? Na ver- dade, ficamos defasados neste debate. Daí surge a neces- sidade de resgatar a história da Geografia, o que significa discutir com o restante das ciências e com o restante do pensamento, envolver-se com a problemática mais ampla. Faço esta proposta para que saiamos da Geografia pela Geografia, que só olha para o próprio umbigo, atitude que nos empobreceu muito.

Este fato remete a uma nova colocação: o que se vai saber da nossa especialidade, da nossa particularidade, se não se está acompanhando a evolução do conhecimento como um todo. Há que se fazer um esforço nesse sentido. Estou ciente das dificuldades e partilho das preocupações aqui levantadas, mas é problemático também continuar da forma como vimos procedendo. Gostaria também de que exercitássemos essa reflexão daqui por diante, pois esta questão não vai ser resolvida hoje, mas é uma dis- cussão para a qual se deve sempre estar atento.

Por tudo isso é que frisei até agora o fato de que a divisão do trabalho científico na nossa sociedade acompa- nha a divisão do trabalho social. O processo de desenvolvi- mento cia sociedade em que vivemos dividiu extremamente o trabalho, parcelizou-o de tal forma que tornou necessá- ria, ao mesmo tempo, no plano teórico, uma divisão. Ê im- portante perceber que esta divisão do trabalho científico foi produzida nesta sociedade e não é a única divisão do trabalho científico possível para a humanidade. Às vezes se aceita: já que é dada, parece que é eterna; parece que, por estar aí, é a mais lógica. Ora, é a mais lógica no inte- rior da nossa sociedade. Ao mesmo tempo sofremos com as contradições dessa divisão, donde surgem nossas dificulda- des.

A próxima tentativa será a de avançar todas essas re- flexões, e sei que, no decorrer, vão aparecer questões po-