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Guias e Dicas
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Marion Woodman - Vício da perfeição (PDF-Livro), Manuais, Projetos, Pesquisas de Enfermagem

Romance Vício da perfeição

Tipologia: Manuais, Projetos, Pesquisas

2012

Compartilhado em 10/04/2012

richard-reis-10
richard-reis-10 🇧🇷

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Marion Woodman
O Vício da Perfeição
Tradução: Silvia Mourão Netto
Summus Editorial
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Marion Woodman

O Vício da Perfeição

Tradução: Silvia Mourão Netto

Summus Editorial

...parecer uma flor inocente,/ Mas por baixo ser a serpente. Shakespeare, Macbeth

“A Mulher com os esqueletos” (Lady Macbeth), 1906

Prefácio

Tu, da quietude, noiva ainda não arrebatada, Tu, filha adotiva do silêncio e do tempo lento, Selvática historiadora que assim consegues expressar o conto florido com mais doçura do que nossa rima: Que lenda orlada de folhas atormenta a tua forma De deidades ou mortais, ou de ambos. No Templo ou nas várzeas da Arcádia? Que homens ou deuses são estes? O que abominam as donzelas? Que louca busca? Que esforço para fugir? Que gaitas e adufes? Que êxtases selvagens?* John Keats, "Ode on a Grecian urn"

Este livro trata da decapitação de uma bruxa malvada. Lady Macbeth, colada no visgo de um insaciável desejo de poder, incapaz de encarar fracassos a ponto de rejeitar a vida, servirá de símbolo da mulher destituída de sua feminilidade em razão de seu empenho na consecução de metas masculinas que, em si mesmas, são uma paródia do que a masculinidade realmente é. E, embora na tragédia de Shakespeare, seja Macbeth a decapitada, a cabeça perdida está fatalmente infectada pela maldição das bruxas. Macbeth e Lady Macbeth são metáforas dos princípios masculino e feminino funcionando numa pessoa ou cultura, e o relacionamento entre ambos, ao se deteriorar, demonstra claramente a dinâmica do mal que se instala quando o princípio masculino perde a posição em sua própria realidade, e o princípio feminino do amor sucumbe a uma ambição intelectualizada e maquinadora. Quando Shakespeare faz seu herói- vilão ser decapitado, ele — no contexto da peça — cura o país. A decapitação tratada aqui integra um livro laboriosamente talhado a partir da rocha bruta de um vício de perfeição. Repetidas vezes lutei com o corvo negro assentado em meu ombro esquerdo a grasnar: "Não está bom o bastante. Você não tem nada de novo a dizer. Você não se expressa bem". Reiteradamente tive de parar de tentar aperfeiçoar uma sentença aqui, um parágrafo ali, enquanto o restante do livro continuava esperando ser escrito. Felizmente, havia prazos a cumprir, ou eu jamais teria conseguido arrancá- lo da rocha em que estava entranhado. E o corvo então grasna: "Menos mal". Atribuo isso ao interesse das platéias às quais boa parte do presente material foi originalmente apresentado, e ao encorajamento de amigos e analisandos que tão generosamente abriram suas almas para tornar possível este livro. Dessa maneira, direcionei meu curso entre Cila e Caribdis, de rígidos métodos acadêmicos, e o rodamoinho de material clínico, e apartei minha criatividade, toscamente esculpida, buscando toda a delicadeza sem cair em meu próprio vício. É da minha natureza o gosto de trabalhar com camafeus. Aprecio o trabalho com detalhes sutis, aperfeiçoando-os até o limite, ou seja, à exaustão, até que outro camafeu surja no caminho. Escrever livros não é um trabalho de camafeu, e apresentar ao mundo uma pedra mal entalhada não é fácil para uma perfeccionista. Ao reler agora o texto, novamente, acho que algumas partes ficaram tediosas, que outras disparam num estilo

  • (^) Thou still unravished bride of quietness, / Thou foster-child of silence and slow time, / Sylvan historian, who canst thus express / A flowery tale more sweetly than our rime: / What leaf-fringed legend haunts about thy shape / Of deities or mortals, or of both, / In Tempe or the dales of Arcady? / What men or gods are these? What maidens loath? / What mad pursuit? What struggle to escape? / What pipes and timbrels? What wild ecstasy?

verdadeiramente compulsivo e que há trechos atolados em detalhes. Eu poderia tê- los eliminado, mas no momento em que os escrevia tinham importância para o processo como um todo, processo esse que demanda infinita paciência, crivado como é de desanimadores contratempos e longos períodos de avanço pontuados por olhadelas no retrovisor. O pensamento linear não me ocorre naturalmente e, sobretudo, acaba com a minha imaginação. Nada acontece. Nenhuma idéia estala de repente. Nenhum momento AQUI-AGORA. Nenhum momento dizendo SIM. Sem esses momentos, não estou viva. Assim, em vez de me impelir na direção de algum objetivo, prefiro o prazer de percorrer uma espiral. E peço ao leitor que também relaxe e desfrute dessa espiral. Se perder alguma coisa na primeira vez, não se preocupe. Pode recuperar na segunda, na terceira, na nona. Não importa. O importante é que você esteja relaxado para ouvir, caso um sininho toque dentro de você, deixando que ecoe em todos os níveis de sua espiral. O mundo do feminino ecoa. A percepção do momento é tudo. Se não ecoar, ou é a espiral errada, ou o momento errado, ou nem há sininho. Muitos dos meus analisandos sofrem de distúrbios alimentares e, por isso, uma boa parte do material ilustrativo, especialmente na primeira metade do livro, refere-se à obesidade e à anorexia nervosa. Essas síndromes, no entanto, são simplesmente sintomas particulares de um mal-estar generalizado na sociedade ocidental. E, embora a angústia de um corpo feminino distorcido coloque em aguda evidência esse problema, a dinâmica psicológica em questão não se aplica tão-só à pessoa obesa ou anoréxica. Conforme o problema do peso corporal vai sendo controlado, começam a irromper em sonhos imagens de vazio, de prisão, de esquifes de vidro etc, as quais assinalam a presença de problemas sexuais e espirituais comuns à maioria das mulheres modernas. Esse material aparece na segunda metade do livro. Posso acrescentar que o lamento da bruxa, oculto na quase totalidade do material, pode ser igualmente reconhecido também pelos homens.

Uma versão grega da temática da bruxa é a Medusa. Antes de haver ofendido a deusa Atena (que havia nascido "completamente armada e com um grito poderoso", da cabeça de Zeus depois de ele ter engolido, ainda grávida, Métis, a mãe de Atena)^1 , Medusa era uma linda mulher. Para se vingar, Atena transforma o cabelo de Medusa em serpentes e torna sua face tão hedionda que todos que a vêem transformam-se em pedra no mesmo instante. Cabe ao herói Perseu a missão de matar Medusa e, para cumpri- la, Hermes dá-lhe uma espada curva e um par de sandálias aladas; Atena, um espelho- escudo e Hades, um capacete que tornaria Perseu invisível. Assim apetrechado, Perseu mata Medusa evitando ser transformado em pedra ao manter o seu olhar fixo no espelho-escudo. Do pescoço de Medusa, então grávida, são libertados Pégaso e Crisaor. Em sua viagem de regresso ao lar, Perseu salva a princesa Andrômeda, até aquele momento cativa de um monstro marinho, soltando-a da rocha à qual havia sido acorrentada em sacrifício. Perseu e Andrômeda posteriormente se casaram. Se olharmos as modernas Atenas, produto da testa de seus pais, o que vemos não são mulheres necessariamente liberadas. Muitas delas provaram acima de qualquer dúvida serem iguais ou melhores que os homens: excelentes médicas, excelentes mecânicas, excelentes consultoras comerciais. E também, em muitos casos, infelizes. "Tenho tudo", dizem. "O trabalho perfeito, a casa perfeita, roupas perfeitas, e daí? A que tudo isso leva? Tem de haver mais que isso. Nasci, morri e nunca vivi." Com freqüência, nos bastidores, são prisioneiras de algum vício: comer, embriagar-se, ter compulsão por limpeza, ser perfeccionista etc. Como já mencione i,

(^1) Robert Graves, The Greek myths, vol. 1, p. 46.

que ela nos transforme. Quando minha donzela interior fraqueja, encorajo-a com um koan zen:

Cavalgue em seu cavalo pelo fio da espada Esconda-se em meio ás labaredas As flores da árvore frutífera desabrocharão no fogo O sol se levanta no poente 3

(^3) Thomas Merton, Zen and the birds of appetite , p. 1.

Introdução

DA Damyata: O bote respondeu Alegremente, à mão hábil com vela e remo O mar estava calmo, seu coração teria respondido Alegremente, quando convidado, batendo obediente Às mãos no comando T. S. Eliot, "What the thunder said", The waste land

Certa noite, há muitos anos, tivemos uma festa, uma festa memorável. Era a noite de despedida do elenco de uma produção que fora excelente. Todos estavam exuberantes, felizes por ter sido a última apresentação a melhor de todas, felizes por se verem momentaneamente livres da disciplina, mas ainda vivendo um mundo que não existia mais. Os sets tinham sido desmanchados antes de sairmos do teatro. E dançamos, comemos e bebemos naquela terra de ninguém em que ainda não havíamos deixado nossos papéis para trás, onde não havíamos ainda retomado inteiramente aquelas pessoas que sabíamos reconhecer como "nós". Por volta das duas da manhã, em meio à nossa algazarra dionisíaca, um dos protagonistas cruzou a sala para me agradecer a festa. Suas passadas eram deliberadas; seu rosto estava sério. "Mas a festa ainda não terminou", eu disse. "Não há apresentação amanhã." "Grande festa!", ele disse. "Mas agora eu tenho de ir. Tenho uma bebedeira séria pela frente." Disse aquilo em voz baixa e decidida. Dava a impressão de estar a caminho de um encontro com a mulher que amara a vida inteira mas com quem não poderia casar- se. Lembro- me de estar ali, no meio dos dançarinos olhando em seus olhos orgulhosos. Estive a ponto de lhe dizer que havia muita bebida na mesa, mas senti que era irrelevante. Os que se entregam seriamente à bebida são como os que se entregam seriamente à comida ou ao jejum. São como os viciados profissionais. Seu vício exerce sobre eles um fascínio que age como algum segredo poderoso que é a essência mesma de tudo o que fazem. Quem se entrega seriamente a comer escuta os outros falando de dietas, de Vigilantes do Peso, de exercícios. Escuta quando comparam animadamente os quilos perdidos, os quilos adquiridos, quando se encorajam, zombam e consolam uns aos outros. Mas não é um deles. Conhece as dietas melhor que todos e sabe que, no seu caso, Vigilantes do Peso é inútil. Sabe que sua vida está em alguma espécie de Balança Todo-Poderosa na qual deve subir sozinho. Está num tipo de conluio com a comida, conluio que provavelmente não entende mas, não obstante, exerce sobre si um poder mágico e sedutor. Odeia e adora tudo isso; e mantém seu conluio em segredo. Este livro trata das pessoas que se entregam seriamente a comer e beber, daquelas que limpam a casa sem parar, e de todos os outros tipos de compulsão. Como analista, partilho a secreta angústia daqueles homens e mulheres prisioneiros de diversos tipos de compulsão. A maioria dessas pessoas se compõe de profissionais altamente respeitados cientes de que no trabalho não encontram dificuldade, entretanto sabem que sua derrocada interior se repete segundo um padrão cíclico, diário, semanal ou mensal. Sabem que sua mão direita não tem idéia do que a esquerda está fazendo, e sabem que a esquerda está minando na surdina o que parece ser uma vida bem-sucedida. Este livro também se refere àqueles que se entregam seriamente ao trabalho, ou aos viciados em trabalho, que dizem: "Sei que vou conseguir a promoção. Dou perfeitamente conta do

reste em torno de seus pobres ossos. Acabam indo para terapia porque sabem que "isso é loucura". Seu "eu" está possuído por algum demônio sobre o qual não têm o menor controle. Esse demônio que, de dia, enverga a máscara da respeitabilidade mostra a verdadeira cara à noite. Exige perfeição — eficiência perfeita, mundo perfeito, limpeza perfeita, corpo perfeito, ossos perfeitos, mas como as pessoas são humanas e não anúncios de TV em horário nobre elas descambam no caos perfeito e na morte perfeita. O demônio as destrói e, estando destruídas, finalmente caem no sono. O que falta é o equilíbrio que lhes devolveria qualidade à sua vida. O princípio masculino perfeccionista, racional, orientado para a consecução de metas, tem de ser equilibrado pelo princípio feminino. Esses dois termos, masculino e feminino, estão a tal ponto comprometidos atualmente que eu gostaria de esclarecer seu significado psicológico descrevendo um incidente simples. No último verão, meu amigo To ny e eu, de pés descalços e cabelos ao vento, velejávamos em nossa pequena embarcação pelas águas encapeladas de Georgian Bay, deslizando à tona d'água, adernando, soltando mais os cabos, ao sabor das traiçoeiras correntes e do caprichoso vento da baía. Não sou marinheira mas adoro servir de tripulante para meu amigo velejador. Ele facilmente assume o comando do barco e, observando-o excitado e contido, cada músculo de seu corpo tensionado no esforço de manter o barco no rumo, dou- me conta, de repente, de que ele é uma metáfora para o equilíbrio entre masculino e feminino. Vejo o corpo forte e a mente atenta fundidos em perfeita harmonia, ao mesmo tempo concentrados e descontraídos, sensíveis às implacáveis energias em meio às quais velejamos. Sua mão direita controla os cabos com firmeza, seus dedos sensíveis às variações na energia do vento. Sua mão esquerda segura o leme com o mesmo nível de tensão, que não é absolutamente retesamento mas, antes, uma entrega consciente às energias da água. Sabemos que dependemos do vento e das ondas para ir adiante, mas dependemos igualmente de sua experiência de velejador. Uma falha de julgamento de sua parte, um momento de indecisão, e estaríamos sendo arremessados contra a baía, de cabeça e tudo. Com todas as velas içadas, nosso pequenino barco cruza as águas, como se o fizesse sobre o fio da navalha. Firmamo-nos com os dedos dos pés e nos inclinamos para trás, aproximando- nos o mais possível da água para manter o equilíbrio. As mãos dele ficam o tempo todo respondendo às mensagens que leme e cabos transmitem a cada instante. Ao ancorarmos em segurança, piso no píer com pés ensangüentados de tanta força feita e com as coxas trêmulas, queimando. Tony arria as velas calado, enrola os cabos e sorri, sabedor. O que sabe transpira de suas passadas enquanto sobe a escarpa, confiante, ereto, lépido. Ele conhece sua própria força; confia em seu corpo animal. É capaz de entregar sua força pessoal a outra, infinitamente maior que a sua. O eterno soprou nele porque ele se colocou na exata sintonia necessária para recebê- lo. Bem, não estou absolutamente sugerindo que eu, frágil fêmea, me coloquei de propósito numa situação para depender de um grande homem forte. Quanto a isso, fico igualmente feliz de servir de tripulante para minha amiga Mary, que é uma velejadora tão experiente quanto Tony. E essa é exatamente a questão. Masculinidade e feminilidade nada têm a ver com reserva de propriedade de um corpo masculino ou feminino. Se somos biologicamente mulheres, o ego é feminino e, dentro de nós, carregamos nossa própria masculinidade, que Jung chama de animus. Se somos biologicamente homens, o ego é masculino e carregamos em nosso interior nossa própria feminilidade, a anima. Masculinidade e feminilidade não são uma questão de gênero, embora, historicamente, em nossa cultura ocidental sua antiga identificação com o gênero ainda nos dificulte vê- las dessa maneira "liberada". É com base nessa visão liberada da masculinidade e da feminilidade que trabalharei neste livro. É mais uma

questão de diferenciação psíquica que biológica. O I Ching, ou O Livro das Mutações chinês, reconhece as contínuas modificações que ocorrem dentro da pessoa. A energia yang, o masculino criativo, avança com persistência e deliberação rumo a seus objetivos até se tornar muito intenso e então quebrar; nesse momento, o yin, o feminino receptivo, entra em cena vindo de baixo e aos poucos ascende até o alto. A vida é uma tentativa contínua de equilibrar essas duas forças. Conforme vai amadurecendo, a pessoa se torna capaz de evitar os extremos de ambas as polaridades, de ta! sorte que o pêndulo não se excita demais em seu movimento para a direita nem ricocheteia depois com estrépito para a esquerda, num ciclo incessante de ação e reação, de inflação e depressão. Em vez disso, a pessoa reconhece que esses pólos são domínio dos deuses, são extremos de preto-e-branco. Identificar-se com um ou outro só pode levar a um mergulho no oposto. A proporção entre esses pólos é de uma exatidão cruel. Quanto mais me empenho na radiosidade branca, de um lado, mais negra é a energia que inconscientemente se constela às minhas costas: quanto mais força eu faço para aperfeiçoar minha auto-imagem ideal, mais transbordamentos de conteúdos de minha privada aparecerão nos sonhos. O homem que se identifica com seu próprio ideal se torna como o amante enamorado de Swift ao se lamentar:

Não admira que tenha perdido o Juízo; Oh! Célia, Célia, Célia defeca!^2

Ele não consegue aceitar que a alva radiância de sua bem-amada possa ser maculada pela humanidade de suas funções excretoras. Como criaturas humanas, e não como deuses, devemos perseguir a consistente linha cinzenta que traça seu percurso serpenteando só ligeiramente à esquerda e à direita a posição intermediária entre pólos opostos. Esse é o ego diferenciado, quer masculino, quer feminino, traçando seu caminho entre vento e água. A energia masculina positiva se orienta por metas e tem a força de vontade de avançar para realizá- las. Exerce sobre si mesma a disciplina necessária a fazer seus dotes — físicos, intelectuais, espirituais — render o máximo possível, empenhando-se para conseguir harmonizá- los. Chega, às vezes, a reconhecer sua própria individualidade e, paradoxalmente, quanto mais forte, menos rígida e mais flexível se torna. Não tem de depender de padrões obsoletos de comportamento, de velhos hábitos, de antigas tradições. Com confiança cada vez maior, experimenta a excitação de novos modos de se conduzir e o contínuo surgimento de novas energias. Aprende a sustentar uma tensão perfeit a entre um ponto de vista firme e a entrega às forças femininas criativas interiores. Seu poder de pene tração insemina e libera a criatividade do feminino. O feminino é um vasto oceano de eterno Ser. Foi, é, será. Contém animalidade primordial, "rubra nos dentes e nas garras", assim como as sementes potenciais de vida. Conhece as leis da natureza e coloca-as em prática com implacável justiça; vive no agora eterno. Tem seus ritmos próprios, mais lentos que os da energia masculina, deslocando-se em meandros, em movimentos espirais, aparentemente voltando-se sobre si mesmo, mas sendo inevitavelmente atraído para a luz. O feminino encontra o que lhe é significativo e brinca. Pode trabalhar com afinco mas sua atitude é sempre lúdica, pois ama a vida. Ama, e se esse amor for penetrado pelo masculino positivo suas energias são liberadas para que fluam com a vida, num constante fluxo de novas esperanças, fé e dimensões do amor. O feminino espiritual, contudo, sempre está enraizado nos instintos

(^2) Jonathan Swift, "A beautiful Young nymph going to bed". ("Célia" é um trocadilho com o termo "caecum", que significa "ceco; a primeira parte do intestino grosso, que se prolonga no fundo-de-saco".)

"ser". Conseqüentemente, essa criança vive uma difusa sensação de culpa, a personificação do desapontamento de sua mãe não tanto com seu filho mas, sim, consigo mesma. Essa criança cresce tentando justificar o próprio fato de existir já que sua existência, como realidade psíquica, nunca obteve reconhecimento. A mãe que não se sente à vontade em seu próprio corpo não consegue interagir com alegria com o filho que leva no ventre, assim como não sente como triunfo esse parto. Não consegue alimentá- lo com as ternas carícias que deveriam acompanhar as longas horas de amamentação. Em seu Magical child, Joseph Chilton Pearce tece uma veemente argumentação a respeito das matrizes pelas quais passamos. Sobre a primeira, o útero, ele diz:

Se o corpo da mãe produzir quantidades maciças de esteróides adrenais durante a gestação, como decorrência de uma ansiedade crônica, de maus-tratos, ou de medo, o bebe dentro do útero automaticamente partilha esses hormônios do estresse, pois eles atravessam diretamente pela placenta. Esse bebê está nas garras de uma ansiedade difusa, de uma espécie de estresse corporal permanente... Preso nessa tensão, o bebê in útero não tem condições de se desenvolver intelectualmente nem de estabelecer com a mãe o vínculo preparatório para o parto.^4

E mais adiante o autor assinala:

Se a primeira matriz de formação for incompleta ou insuficiente, a matriz de formação seguinte será duplamente difícil. A jovem vida sofre cada vez mais danos, porque a substituição das matrizes deve ocorrer automaticamente.^5

Pearce desfecha um ataque arrasador contra os procedimentos tecnológicos da sala de parto. Segundo sua descrição do que se passa no momento do nascimento, é notável que o bebê enfim consiga sobreviver. Resta a indagação de quais partes serão destruídas em caráter permanente mediante o trauma tão distorcido pelas modernas técnicas da medicina. É certo que os acontecimentos da primeira passagem de um mundo para o outro deixem marcas indeléveis na psique infant il. Pearce afirma:

[...] funciona como uma bomba-relógio, e nenhum dos cúmplices do crime jamais terá de pagar por isso pois é uma explosão que acontece lentamente, numa fusão que ocupa anos e cria um tipo tão difundido e diversificado de caos que poucos se darão ao trabalho de refazer o percurso até o princípio e descobrir quem acionou o mecanismo em primeiro lugar.^6

O bebê sai lentamente de dentro de sua mãe, mas

só pode fazer essa transição de forma plena e satisfatória na mesma medida em que sua mãe for seu porto seguro absoluto e inquestionável, ao qual ele sempre poderá instantaneamente regressar e ser nutrido. Somente quando o bebê sabe que a matriz mãe não o abandonará é que consegue ingressar na infância e na meninice com confiança e força... A mãe física permanece como a matriz primária mesmo quando nos separamos dela, entrando em matrizes mais amplas... Por mais que ampliemos nossas abstrações até o raciocínio puro e a realidade fabricada, a mente obtém energia do cérebro, que obtém energia da matriz corporal que obtém energia da matriz da terra... No fundo, temos somente duas matrizes: a física, que começa no útero e inclui a mãe, a terra e o corpo físico, e a matriz abstraía do pensamento que progride nos relacionamentos, na capacidade para o interagir.^7

E claro, no sistema de Pearce, que a maioria não tem, ou só tem em parte, as matrizes capazes de nos oferecer fé em nós mesmos e em nossa vida. A forma extrema a que pode levar o feminino não realizado, assumindo ideais masculinos estranhos à sua

(^4) Joseph Chilton Pearce, Magical child, p. 22. (^5) Idem, ibidem. (^6) Idem ibidem, p. 46. (^7) Idem ibidem, pp. 24-5.

natureza, talvez encontre seu mais claro exemplo no Macbeth de Shakespeare. No primeiro ato, Macbeth reconhece o poder de sua própria imaginação. Ele enxerga nitidamente a adaga que pode induzi- lo à sua autodestruição. Cuidadosamente, ele avalia os valo res morais envolvidos em matar seu rei e destruir a própria alma, caso persista nesse intento. Ele decide "seguir adiante com sua proposta". Mas Lady Macbeth tem outras idéias. Ela é prisioneira de um ideal de reinado. Para atingir essa meta, ela trai sua natureza feminina "até as últimas conseqüências" e, num dos solilóquios mais sombrios jamais escritos por Shakespeare, ela entrega sua alma "aos espíritos que vigiam as trevas mortais". Desse modo, em lugar de cumprir seu papel feminino em relação a seu ho mem — vale dizer, em vez de ajudá-lo a manter contato com seus valores afetivos —, ela zomba do ego masculino dele e aponta- lhe um caminho que o aliena de si mesmo, dela e, enfim, de toda a estrutura cósmica. Encapsulados em seus ideais e suas projeções, ambos perdem o contato com o elo íntimo que os mantém humanos. Macbeth e Lady Macbeth surgem a princípio com tratamentos ternos, chamando-se de "meu querido", "meu amor". Ao se envolverem mais e mais com seus ideais de reinado, perdem um ao outro. No momento crucial da decisão, ela desafia a virilidade do marido: "Mas enfiando tua coragem no buraco certo não fracassaremos". Se nesse momento sua função sentimento estivesse ativada, ela estaria em sintonia com seu coração e, em vez disso, teria tomado o rosto dele em suas mãos para virá-lo para si e dizer-lhe: "Por que estás com medo?". O desfecho da cena teria sido muito diverso. Nossa derradeira imagem de Lady Macbeth é a de uma mulher de camisola, em transe, encaminhando-se para o quarto que antes haviam compartilhado, encontrando só o espaço vazio e não mais a mão que antes amara, a voz em lamento levando-a "para a cama, para a cama, para a cama". Seus olhos estão abertos mas nada vêem. A vela bem poderia estar apagada. Ela criou uma imagem errada. Poderia ter feito um grande rei para a Escócia, mas não teve imaginação para reconhecer que seu marido não era capaz disso. A sua masculinidade incinerou sua feminilidade: erro fatal para qualquer mulher. Quando isso acontece, a vida inevitavelmente se torna [...] um conto Narrado por um idiota, muito barulhento e furioso, Significando nada.^8

Divorciado do feminino e dotado de vida própria, autônoma, o masculino produz uma falsa noção de reinado: o poder pelo poder. Com isso, o reinado se vê reduzido a uma demoníaca paródia do verdadeiro reinado. Dessa maneira, quando a masculinidade de Lady Macbeth usurpa sua feminilidade, Macbeth não a trata mais de "meu querido amor", mas como uma bruxa tricéfala que se apodera dele. Esse tema da destruição do verdadeiro reinado é explorado várias vezes por Shakespeare, sempre para mostrar a mulher negando sua verdadeira natureza quando simula valores masculinos num braço-de-ferro que é alheio à sua identidade feminina. Embora seja evidente a crescente proporção de Ladies Macbeth entre as mulheres supostamente emancipadas, uma reação já se encontra em andamento. Muitas mulheres agora se recusam a ser como Lady Macbeth. Elas se negam a ser envolvidas pelos "mais acres vapores do inferno", a se dedicar a um reinado que só arremete para a loucura. Recusam-se a impelir seus maridos nessa direção e a ser pessoalmente arrastadas para lá. Conscientemente ou não, sabem que todos os perfumes da Arábia não suavizarão a mãozinha que cometeu suicídio. A morte perpetrada foi, com efeito, o assassinato da Grande Mãe, compreendida

(^8). Shakespeare, Macbeth, ato 5, cena 5, linhas 26-8.

sejam verdadeiras mas, de certo ponto de vista, a razão para tanto é clara. Elas não têm a menor noção de braços sempre disponíveis a acolhê-las durante as crises da vida; a matriz original da mãe não existe. Essa privação as impele a tentativas violentas de sobreviver; momentaneamente, podem consegui- lo, mas depois afundam de novo na letargia da inexistência. Sua existência é, na melhor das hipóteses, precária porque não tem nenhuma noção de um continuum de cotidiano. Essas moças buscam maridos que lhes dêem demonstrações diárias de bem-querer e, com isso, podem no casamento prender-se de novo à mãe de quem tentaram se afastar. A obesa e a anoréxica estão lutando para se conscientizar mediante o alimento aceitando-o ou o rejeitando. Em nossa cultura, o alimento é um catalisador para praticamente qualquer emoção — uma maneira positiva de expressar amor, alegria, aceitação; ou, negativamente, culpa, suborno, medo de rejeição. O alimento e a qualidade do alimento estão no centro de todas as comemorações. Partilhar de um alimento é fazer parte da festa; rejeitá- lo é ser deixado de fora da vida.

O belo é feio e o feio é belo;/ Atravessa o nevoeiro e o ar fétido. * Shakespeare, Macbeth Limite do Círculo IV, 1960. M.C. Escher (© Herdeiros de Escher, 1982, a/c Beeldrecht Amsterdam; Coleção Haags Gemeentemuseum, Haia)

Cada vez mais, entendo o complexo alimentar como uma neurose que está forçando as mulheres inteligentes a se tornarem conscientes. Isso é ver positivamente o complexo alimentar, em termos de sua finalidade. O outro lado é que tal

  • (^) Fair is foul an foul is fair;/ Hover through the fog and fílthy air. (N.T.)

conscientização pode não ser suportável. Ela começa com o que problema de peso: quando o conflito ainda não se encontra no plano da consciência, assume uma forma psicossomática. Em nossa cultura, gordura é tabu; assim, a neurose ataca onde dói mais: no próprio cerne do ego feminino. A menina gorda não acompanha o que as colegas fazem; ela não pode comer todas as bobagens, não é convidada para as festas de adolescentes, não pode usar calça jeans, não é sexualmente atraente. Em resumo, em nossa sociedade, ela não é fêmea, e ninguém sabe disso melhor que ela. O isolamento a obriga a mergulhar em seu próprio mundo interior em que as fantasias compensam a vida não vivida e as imagens da ficção vão aos poucos assumindo uma força numinosa. O proibido se torna, ao mesmo tempo, objeto desejado e perigoso, Enquanto o impulso inconsciente por trás do alimento, que envolve o relacionamento da menina com sua mãe, não for compreendido, será posto em prática em atuações destrutivas. Se for entendido, existe alguma chance de ser elaborado criativamente. O que a consciência exige é o reconhecimento da diferença entre aparência e realidade, que define os sentimentos ambivalentes da menina pela mãe. Por um lado, ela admite tudo o que a mãe deu; por outro, sente a negatividade implícita nos presentes, especialmente a rejeição de si mesma como pessoa. As mulheres com quem tenho trabalhado e as que tenho em mente neste livro são conscientes o bastante para efetuar a distinção entre aparência e realidade. Depois de um intervalo de um a três anos em análise, estão empenhadas em lidar com seus sentimentos ambivalentes. No mundo elas funcionam com eficiência e muitas ocupam posições profissionais de. alta responsabilidade. Compreendem até certo ponto a dinâmica matriarcal que subjaz ao complexo alimentar. Lutam para resolver o falso sistema de valores de Lady Macbeth, em que sua própria feminilidade é contaminada por valores masculinos que o inconsciente se recusa legitimamente a aceitar, da mesma forma como seu corpo se recusa a assimilar o alimento. Quanto mais tempo forem vítimas desse falso sistema de valores, mais tomam consciência de que, apesar de todas as demonstrações exteriores de sucesso, sua vida cada vez mais "está barulhenta e furiosa, [e] não significa nada". Enquanto as mulheres jovens em geral iniciam análise apenas para perder peso, as mais maduras reconhecem que devem ir em busca das causas subjacentes de seu excesso de peso e ajustar seus valores e suas atitudes conscientes segundo esse conhecimento. Como mulheres, encontram-se atadas a uma falsa visão de um remado inerente à mulher possuída por um impulso alheio à sua natureza. A sua tarefa é resgatarem-se das garras desse impulso que as está destruindo. A comida encarna os falsos valores que seu corpo se recusa a assimilar; quero dizer com isso que tais corpos se tornam edemaciados, intumescidos, alérgicos, ou recorrem a vomitar aquilo que os envenena. O corpo inconsciente, e certamente o corpo consciente, não tolera a mãe negativa. Quero enfatizar aqui que este livro não é uma condenação das mães — nem dos pais. Ele trata de reconhecer o inimigo e de lhe dar um nome, para ser possível lidar criativamente com ele. É claro que as crianças têm de reconhecer, a respeito de seus pais, tanto os sentimentos positivos como os negativos, mas quase todos nós, em algum momento da análise, nos damos conta de que nossos pais viveram uma situação pior que a nossa. Muitos deles sabiam que estavam aprisionados, mas não tinham meios de encontrar saída. Os pecados de uma geração são visitados na seguinte; essa é a situação humana, e os filhos sofrem na exata medida em que seus pais são inconscientes. A tarefa das pessoas maduras consiste em diferenciar as imagos infantis dos pais de carne e osso, distinguir o que foi íntegro e sadio de seu legado do que foi destrutivo. É perdoar.

1 – Ritual: sagrado e demoníaco

Todas as eras antes de nós acreditaram em deuses de um tipo ou outro. Somente um empobrecimento sem precedentes do simbolismo poderia levar-nos à redescoberta dos deuses como fatores psíquicos, isto é, como arquétipos do inconsciente.

C. G. Jung, Archetypes of the unconscious

Se nos perguntarmos por que os vícios orais invadiram nossa cultura ocidental nesta época específica, poderemos não só abrir os olhos e enxergar a nossa própria vaca sagrada como ver também o anjo negro com quem estamos sendo forçados a lutar. Segundo estatísticas recentes, cerca de 30 por cento dos homens americanos estão acima do peso, 4-0 por cento das mulheres americanas estão dez ou mais quilos além do peso,^1 e 7 por cento das mulheres canadenses em idade universitária provocam o vômito para controlar seu peso.^2 A população anoréxica varia radicalmente em termos de idade, sexo e grupo social, mas segundo rigorosos critérios diagnósticos estima-se que 7 por cento das estudantes de modelagem sofrem de anorexia nervosa.^3 Por que essa lacuna tão grande no centro de nosso ser?

Numa recente entrevista para a TV, Leonard Bernstein, ao comentar sobre o fato de a música de Mahler ter tanta popularidade entre os jovens atualmente, disse não considerar esse fato extraordinário porque tudo está em cada nota de Mahler. Os jovens podem lidar com isso, ele sugeriu, porque são tão constantemente confrontados com o fim do mundo que conseguem entregar-se por inteiro àquelas notas majestosas. Essa sensação de término é, em parte, o motivo pelo qual as compulsões, especialmente as ligadas ao corpo, estão se constelando com tanta força em nossa cultura. Em cada noticiário somos levados diante da destruição: guerras, desastres aéreos, estupros, assassinatos. Livros, filmes, peças de teatro — somos bombardeados de todos os lados com a possibilidade do extermínio iminente. Ao mesmo tempo, as estruturas que antes nos davam suporte estão desmoronando: a família nuclear, a comunidade, a Igreja. Os rituais que antigamente eram o arremate da existência agora são vazios; os rosários são usados como orna mentos. Aliada a esse terror da extinção está a natural propensão dos compulsivos a viver no futuro. Em geral intuitivos por natureza, não apreendem a realidade aqui-agora com a qual não conseguem lidar; pelo contrário, sonham com o que poderiam ser, deveriam ser, enfim, seriam no futuro. A distância entre sonho e realidade é normalmente preenchida pelas obsessões. Além disso, a era tecnológica nos está forçando a ir para um espaço muito distanciado de nossos instintos. Esquecemo- nos de como ouvir nosso corpo; engolimos pílulas para tudo o que acontece de errado conosco; podemos implantar um marca-passo intestinal ou grampear o estômago. Podemos recorrer à medicina sem sequer questionar o que o corpo está tentando nos dizer. Para o nosso próprio risco, presumimos que o corpo não tem sua sabedoria natural, e queremos corrigir nossos males físicos sem efetuar as necessárias retificações psíquicas. Podemos temporariamente ter sucesso mas o corpo, cedo ou tarde, fará com que surjam sintomas. A finalidade destes é chamar nossa atenção para algum problema básico. Se ignorarmos os sintomas menores, depois

(^1) Paul B. Beeson e Walsh McDermott, Textbook of medicine, p. 1375. (^2) Toronto Star, 10 de agosto de 1981 (citando pesquisa feita no Clarke Institute of Psychiatry, em Toronto). (^3) David M. Garner e Paul E. Garfinkel, "Socio-cultural factors in the developmentof anorexia nervosa", Psychological Medicine, vol. 10,1980, p. 652.

de algum tempo o corpo se vingará. Como cultura, não estamos em contato com as nossas raízes instintivas. Os pais tendem a tratar seus filhos como se eles também fossem máquinas em vez de seres humanos com sentimentos e temores. Se a criança é tratada dessa forma, consciente ou inconscientemente, ela por sua vez passa a se tratar assim. O mal-estar se agrava a cada geração até que dentro da família alguém se torna consciente o bastante para interromper o processo. Se, por exemplo, a mãe se olha no espelho e vê seu corpo não como si mesma mas como uma matéria bruta que pode ser manipulada artisticamente da forma como ela o desejar, então se desenvolve em sua filha uma atitude "espelho, espelho meu". O corpo da filha pode se tornar um objeto de arte, a tal ponto que ela não possa mais reconhecer-se nele como ser humano. Ela não habita esse corpo. Desenvolve-se dessa maneira uma dicotomia terrível: ela parece uma menina, doce, cordata, passiva, com uma voz pueril, mas o que sai de sua boca é letal. Em sua "inocência", ela ignora o matador à solta em seu íntimo. A declaração seguinte é típica de uma mulher anoréxica de 20 anos de idade:

Quando é que poderei sair desta caixa? Arrasto meu corpo de um lado para outro como se fosse um enorme objeto estranho. Tenho muito medo de câncer, de guerra, da escola e do que as pessoas acham. Agora estou tão transtornada que a minha cabeça está a ponto de explodir. Estou tão assustada de ficar imensa e de o mundo acabar e eu não estar em lugar nenhum. Não estou aqui e certamente não estou lá. O que estou fazendo? Fico o tempo todo arrumando padrões para mim mesma e simplesmente não consigo. Não consigo fazer nada. NADA. NADA. Feia, nojenta, vaca gorda!

Sua reação ao mundo afluente em que está vivendo é a fuga. Odeia tudo o que é supérfluo. Seu sistema patriarcal de valores baseado no Reinado da Beleza., da Pureza e da Luz força-a a uma inimizade com seu "corpo nojento", que gostaria de reduzir a uma peça de arte "mínima" ou até mesmo "conceitual", em que o objeto não existe mais. A sociedade também não pode oferecer uma imagem da Grande Mãe a ser buscada, de uma mãe que pudesse ajudá- la a superar a distância entre si mesma e sua feminilidade. Esse arquétipo ainda não está constelado. Sem essa matriz maternal, ela vai de lá para cá no cenário de seu terror pessoal, fugindo do caos de uma vida nova e paralisada pelos sonhos da antiga. Para ela, a vida não é a questão. Seu único propósito é moldar o objeto no espelho até que se torne um objeto de arte, totalmente aceitável, por mais irônico que isso seja, ao sistema coletivo de valores que ela despreza. O isolamento é um componente crucial tanto das síndromes compulsivas quanto da sociedade moderna. Os verdadeiros compulsivos realizam seus rituais quando estão sozinhos. Veja a seguinte citação de um diário de outra moça anoréxica:

Entro em vários estágios de perfeição. Quando minha vida está organizada, está perfeitamente organizada. Assim, se alguma coisa dá errado, não consigo apenas fazer o melhor para consertar aquilo: eu simplesmente desmorono. Tudo se perde. É preciso haver uma razão lógica para tudo o que faço, inclusive para o que eu como. "Quanto mais magra, melhor" é a minha filosofia. Não é só atraente: demonstra disciplina e controle. Mas tudo o que eu faço está centrado em torno de comer e da preocupação com o que as pessoas me obrigarão a comer. Antes, dizer isso me teria parecido muito estranho. Por isso é que não adianta eu tentar me explicar às pessoas que não são anoréxicas. Elas estão em outro plano de pensamento. Não compreendem que quando sou arrastada pela compulsão poderia ficar sem comida para sempre.

A mesma sensação de orbitar sozinha é expressa por outra moça obesa:

Evoluí de comer só porcaria para comer biscoitinhos de granola. Perdi cinco quilos. Senti-me ótima, até olhar no espelho: foi a morte. Posso sentir o sangue sendo chupado para fora de minhas veias. Ouço as risadinhas de gozação ecoando até o fundo de minha barriga. Não acredito mais. Não acredito que posso eleger a vida. Pego um biscoitinho para interromper aquela risada terrível. E então vem a