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Introdução ao estudo do Direito Penal.
Tipologia: Notas de estudo
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Compartilhado em 15/10/2010
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A vida em sociedade é complexa e exige de todos a obediência a um conjunto de regras de comportamento. O homem não é absolutamente livre para fazer o que bem quiser, pois vive sob a égide de normas de conduta, que foram criadas por ele mesmo, por meio do Estado, que ele também instituiu. O conjunto das normas estabelecidas em uma sociedade é o direito positivo.
As normas jurídicas são comandos a serem obedecidos por todos os homens, pois demarcam o que é, e o que não é, lícito fazer, o permitido e o proibido, o certo e o errado.
O estabelecimento de normas de comportamento é exigência da vida em sociedade. Desde o momento em que o homem decidiu agrupar-se, viver em comunidade, tornou-se imprescindível a regulação dessa vida, com a criação de regras de convivência, sem as quais não teria sido possível surgirem e desenvolverem-se tribos, Estados, nações, enfim, o mundo e a realidade de hoje.
Quem vive o agitado dia-a-dia contemporâneo nem se preocupa em verificar o quanto essas normas estão presentes em todos os momentos da vida de cada indivíduo.
A primeira coisa que o homem faz ao acordar, diariamente, é, quase sempre, acender as luzes de seu quarto e, ao fazê-lo, muitas vezes, ele nem se dá conta de que está consumindo uma mercadoria adquirida mediante o pagamento de um preço. O simples gesto de apertar um interruptor está sujeito ao Direito.
Quem adquire um bem deve pagar o preço. Paga-se em dinheiro ou por meio de um documento denominado cheque. A vista ou a prazo. Quem contrata está obrigado e adquire direitos.
2 - Direito Penal – Ney Moura Teles
Nenhum momento da vida está distanciado do direito. As relações e os vínculos entre as pessoas também têm seus reflexos no direito: casamento, filhos, separação e divórcio, guarda, visitas, pensão alimentícia, proteção, vigilância, bens, partilha etc.
As normas jurídicas objetivam à proteção dos bens considerados importantes, pois que, tendo valor, são, comumente, objeto de ataques; por isso, precisam ser protegidos.
A sociedade que preserva a família elabora normas que dizem respeito ao surgimento e à proteção dessa instituição, colocando-a sob o amparo do direito, mediante diversos comandos – ordens a que todos os indivíduos devem obedecer. Nessa mesma linha, há normas que protegem o casamento e a união estável entre homem e mulher.
Igualmente, a propriedade privada sobre os meios de produção encontra um número grande de regras jurídicas que a protegem, regulando sua aquisição, transmissão, conservação etc.
Todos os valores importantes para a sociedade estão sob a tutela do direito, por meio das várias regras jurídicas. Vida, liberdade, integridade física, trabalho, lazer, meio ambiente, família, propriedade, patrimônio, Estado etc. são valores sociais amparados pelo Direito.
Algumas atitudes humanas voltam-se contra esses bens jurídicos, violando a norma jurídica. O comportamento humano que contraria a norma jurídica constitui o ilícito jurídico, o proibido, o que não deve ser.
À violação da norma corresponde a sanção, que é a conseqüência jurídica imposta coativamente pelo Estado ao infrator de sua ordem, visando ao restabelecimento do equilíbrio social.
Violando o marido um dever do matrimônio, nasce, para a mulher, o direito à separação conjugal, podendo ela procurar o Estado, por meio do Poder Judiciário, que decretará a separação do casal, estabelecendo obrigações daí decorrentes, para os dois, entre si e com relação aos filhos por eles porventura havidos.
Se o adquirente não pagar o preço da mercadoria que comprou e recebeu, o vendedor que tiver extraído a nota fiscal poderá emitir uma duplicata e pedir ao juiz que mande executar a dívida. O devedor será chamado para, em 3 dias, pagar o valor do débito, sob pena de lhe serem penhorados – seguros, e até apreendidos, se necessário – tantos bens quantos bastem para satisfazer ao valor devido.
Se alguém, por descuido, destrói um livro, um caderno, uma peça de vestuário,
4 - Direito Penal – Ney Moura Teles
dá-se o nome de Direito Penal.
O Direito Penal era, antigamente, denominado Direito Criminal, expressão talvez mais adequada, por mais ampla e que ainda hoje se encontra incrustada em muitas das instituições atinentes: advogado criminalista, vara criminal, câmara criminal etc.
VON LISZT definia o Direito Penal como “o conjunto das prescrições emanadas do Estado, que ligam ao crime, como fato, a pena como conseqüência”.1^ E MEZGER o entende como “o conjunto das normas jurídicas que regulam o exercício do poder punitivo do Estado, associando ao delito, como pressuposto, a pena como conseqüência”.
Outras definições muito próximas: “conjunto de normas jurídicas que o Estado estabelece para combater o crime, através das penas e medidas de segurança” (BASILEU GARCIA)3,^ “conjunto de normas jurídicas que regulam o poder punitivo do Estado, tendo em vista os fatos de natureza criminal e as medidas aplicáveis a quem os pratica” (MAGALHÃES NORONHA)4,^ “conjunto das disposições emanadas do Estado que qualificam os crimes e determinam-lhes as respectivas penas” (GALDINO SIQUEIRA)5.
Outros doutrinadores entendem o Direito Penal como o “conjunto de normas e disposições jurídicas que regulam o exercício do poder sancionador e preventivo do Estado, estabelecendo o conceito de crime como pressuposto da ação estatal, assim como a responsabilidade do sujeito ativo, e associando à infração da norma uma pena finalista ou uma medida de segurança” (JIMÉNEZ DE ASUA)6,
ou “aquela parte do ordenamento jurídico que estabelece e define o fato-crime, dispõe sobre quem deva por ele responder e, por fim, fixa as penas e medidas de segurança a serem aplicadas” (FRANCISCO DE ASSIS TOLEDO).
(^1) Tratado de direito penal. Madri: Reus, 1927. (^2) Tratado de derecho penal. Madri: Revista de Derecho Privado, 1955. p. 3.
(^3) Instituições de direito penal. 5. ed. São Paulo: Max Limonad, 1980. p. 9.
(^4) Direito penal. 15. ed. São Paulo: Saraiva, 1954. v. 1, p. 11. (^5) Tratado de direito penal. 2. ed. Rio de Janeiro: J. Konfino, 1950. v. 1, p. 17.
(^6) Tratado de derecho penal. Buenos Aires: Losada, 1950. v. 1, p. 27.
(^7) Princípios básicos de direito penal. São Paulo: Saraiva, 1991. p. 1.
Introdução ao Estudo do Direito Penal - 5
Para outros, é “o complexo de normas positivas que disciplinam a matéria ‘dos crimes e das penas’” (BETTIOL)8,^ ou “o conjunto de normas jurídicas mediante as quais o Estado proíbe determinadas ações ou omissões, sob ameaça de característica sanção penal” (HELENO CLÁUDIO FRAGOSO).
Nesse sentido, o Direito Penal é, efetivamente, a parte do ordenamento jurídico que trata do crime e das penas e das medidas de segurança, mas, uma nota da mais alta importância que exsurge do ordenamento jurídico penal fica esquecida em todas as definições transcritas: a liberdade do indivíduo que pode ser coarctada pela incidência das normas penais, mas que, igualmente, é protegida por elas, à medida que só pode ser suprimida nos estritos limites da lei.
É o Direito Penal que define o crime, mas também é ele que diz quando um fato aparentemente criminoso é, entretanto, permitido, ou quando, mesmo proibido, não ensejará a aplicação da sanção penal.
Melhor, por ser mais completa, a definição de JOSÉ FREDERICO MARQUES, que DAMÁSIO E. DE JESUS abraça: Direito Penal
“é o conjunto de normas que ligam ao crime, como fato, a pena como conseqüência, e disciplinam também as relações jurídicas daí derivadas, para estabelecer a aplicabilidade das medidas de segurança e a tutela do direito de liberdade em face do poder de punir do Estado”.
A expressão DIREITO PENAL é também sinônima de CIÊNCIA PENAL. Esta, no dizer de FRANCISCO DE ASSIS TOLEDO, é o
“conjunto de conhecimentos e princípios, ordenados metodicamente, de modo a tornar possível a elucidação do conteúdo das normas penais e dos institutos em que elas se agrupam, com vistas à sua aplicação aos casos ocorrentes, segundo critérios rigorosos de justiça”. Ciência prática, cultural, não visa ao estudo da realidade social; todavia, segundo
(^8) Direito penal. 2. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1977. v. 1, p. 62.
(^9) Lições de direito penal: parte geral. 13. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1991. p. 3.
(^10) Direito penal: parte geral. 15. ed. São Paulo: Saraiva, 1991. p. 5. (^11) Op. cit. p. 2.
Introdução ao Estudo do Direito Penal - 7
diante de leis que se voltam contra os princípios constitucionais, elaboradas ao sabor de exigências espúrias de manipuladores da opinião pública – olvidar que a lei deve ser interpretada em consonância com a Constituição Federal e não esta ser compreendida em harmonia com aquela.
O Direito não está pronto e acabado, e tampouco é imutável. Decisões hoje adotadas pela Suprema Corte, se consideradas injustas, inconstitucionais, ou contrárias aos princípios maiores, da humanidade e do interesse público, haverão de ser combatidas, até que sejam modificadas. É meta possível, que deve ser perseguida sempre, pois o pensamento dos homens muda com o tempo e pela luta dos que não desanimam, e a composição da Corte Suprema também se altera ao longo dos anos.
A quem faz o Direito – juízes, advogados e promotores de justiça, especialmente
O Direito Penal é positivo: é aquele que o Estado promulgou. Positivo quer dizer posto, colocado, mostrado à sociedade, publicado, dado a conhecer a todos os indivíduos, em vigor, por meio de um conjunto de documentos emanados do Poder Legislativo, as leis, que são obrigatórias.
Dizer que é positivo, contudo, não é o mesmo que afirmar que fora do direito legislado não existiria Direito Penal. A afirmação de sua positividade, como ensina BETTIOL, só tem sentido desde que não se queira fazer dela
“um elemento essencial da noção do direito, dada a existência de um direito natural que nenhuma positividade jamais pôde sufocar, e desde que não se negue a utilidade de um enquadramento das normas penais na perspectiva filosófico- cultural do período histórico no qual o jurista é chamado a atuar”. A positividade do direito não pode impedir a incidência de princípios superiores, como o da humanidade e o da dignidade do homem, e tampouco de causas que excluam a proibição ou que desculpem certos fatos definidos como crime, os quais, muito embora não escritos, devem imperar no momento da aplicação do Direito.
(^13) Op. cit. p. 105.
8 - Direito Penal – Ney Moura Teles
Além disso, não pode fazer impedir a crítica do ordenamento penal, destinada não apenas à obtenção das modificações que se fizerem necessárias, mas, principalmente, à sua aplicação mais justa, que atenda aos interesses da sociedade, que o constrói.
Essa positividade submete-se à interpretação, que haverá de se harmonizar com as outras ciências afins, a criminologia, a política criminal, o direito processual penal, inclusive o das execuções penais, e não pode impedir o conhecimento e a crítica das incongruências, injustiças, violências, deficiências e necessidades do Direito Penal, para que se encontrem caminhos que o tornem mais harmônico com os interesses dos indivíduos.
O Direito Penal tem natureza pública, uma vez que a proteção dos bens jurídicos colocados sob sua tutela interessa a toda a sociedade. Ainda que sejam, muitas vezes, individuais, dada sua importância, a natureza e a gravidade dos ataques proibidos sob a ameaça da pena criminal, a proteção desses bens é indispensável à manutenção e ao desenvolvimento da vida social.
Por essa razão, e para retirar do indivíduo a possibilidade de vingar-se do agressor de seu bem jurídico, o direito de punir o infrator da norma penal é privativo do Estado, que irá, quando necessário, em nome da coletividade, aplicar a sanção penal.
A relação jurídica que nasce com a prática do crime é estabelecida entre o infrator da norma penal e o Estado, e, mesmo nos casos em que a lei reserva ao ofendido a faculdade de iniciar a ação penal, o direito de punir continua nas mãos exclusivas do Estado.
A Lei nº 9.099/95 – que criou os juizados especiais criminais, permitindo a transação (a composição, o acordo) e a suspensão condicional do processo penal – não retirou do Estado a titularidade do ius puniendi, o direito de punir o infrator da norma penal.
Autorizando a composição, com a importante preocupação com a reparação do dano sofrido pela vítima, e evitando a aplicação de penas privativas de liberdade, nem por isso o Estado perdeu o direito de punir o agente do crime.
“Nem mesmo quando se sujeita a ação de determinados delitos à iniciativa discricionária das partes, ou quando se criam institutos, como o
10 - Direito Penal – Ney Moura Teles
Direito Penal é predominantemente sancionador e excepcionalmente constitutivo’”.^16
Na verdade, ainda que muitas vezes o preceito civil e o preceito penal cuidem dos mesmos bens jurídicos, não se pode olvidar que o primeiro visa à proteção de um interesse privado, ao passo que o segundo objetiva à tutela do interesse social. “Ainda quando pareça que um interesse privado é amparado pela norma penal, isso ocorre (...) apenas por via indireta, pois é sempre e apenas um interesse estatal a ser garantido.”^17
A sanção penal não é acessória, nem secundária, mas estabelecida não só pela verificação da insuficiência ou ineficácia das outras sanções – civis, administrativas, tributárias, previdenciárias, trabalhistas etc. –, o que não quer dizer venha incidir a posteriori, em segundo plano, num outro momento, ou alternativamente, mas, principalmente, em razão da importância do bem jurídico e da gravidade do ataque a ele dirigido, que se quer evitar. Até porque a definição de crime independe da prévia existência de um ilícito civil, tributário ou administrativo, que nem precisa ser construído, quando se verificar previamente a sua ineficácia.
A construção das figuras de crimes atende, precipuamente, ao interesse coletivo de preservar de determinados ataques – os mais graves – os bens jurídicos mais importantes, mediante a imposição de uma sanção mais severa.
Assim, não só em razão da natureza da sanção, mas, principalmente, do conteúdo de seus preceitos, o Direito Penal não é meramente sancionador, mas autônomo, original e constitutivo.
O Direito Penal tem caráter valorativo, porquanto proíbe os comportamentos humanos que se voltam contra os mais importantes valores ético-sociais, selecionados pela sociedade, dos ataques mais graves. Ao fazê-lo, pretende, é certo, que os homens se conduzam em consonância com as exigências da vida social. Além do fundo ético que o inspira, o Direito Penal revela a indispensável necessidade de aquilatar, pesar e medir todos os valores da coletividade, de modo a, selecionando-os, escolher apenas os mais importantes e buscar colocá-los a salvo dos ataques mais graves, visando impedir sejam objeto dessa modalidade de agressão, venha de onde vier.
(^16) Idem. p. 25. (^17) BETTIOL. Op. cit. p. 112.
Introdução ao Estudo do Direito Penal - 11
De qualquer modo, todos os comportamentos humanos são valorados pelo Direito Penal, sejam os proibidos – aos quais corresponderá a sanção penal, como resposta do Estado –, sejam os demais, que, por serem permitidos, são, igualmente, objeto da valoração. Como diz Bettiol, “apenas não é possível a valoração jurídica quando falte a ação humana”.
Direito Penal objetivo é o conjunto das normas jurídicas que definem os crimes, cominam as penas, bem assim as demais normas de natureza penal, que tratam dos institutos e das questões penais. São as normas contidas no Código Penal e nas demais leis penais, ou, no dizer de DAMÁSIO E. DE JESUS, “é o próprio ordenamento jurídico- penal, correspondendo à sua definição”.^19
Direito Penal subjetivo é o ius puniendi, o direito de punir o infrator da norma penal, aquele que vier a ser condenado. É o direito estatal de punir. Seu único titular é o Estado, ainda quando a lei exigir a intervenção do ofendido como condição para a formação do processo destinado a apurar a verdade e conferir ao Estado o título indispensável para a execução da pena.
Para DAMÁSIO E. DE JESUS, é comum o Direito Penal que se aplica a todos os cidadãos, e especial aquele que se aplica a uma classe deles, pois o critério diferenciador entre o direito comum e o especial “está no órgão encarregado de aplicar o direito objetivo”.20^ Assim, o Código Penal Militar é especial; todavia, o Direito Penal Eleitoral não, pois a quase totalidade da justiça eleitoral é exercida por juízes da justiça comum.
Já MIRABETE, lembrando que tal distinção não encontra apoio na legislação, afirma que
“pode-se falar em legislação penal comum em relação ao Código Penal, e em legislação penal especial como sendo as normas penais que não se encontram
(^18) Op. cit. p. 118. (^19) Op. cit. p. 7. (^20) Op. cit. p. 8.
Introdução ao Estudo do Direito Penal - 13
As coisas importantes, materiais ou espirituais, podem ser chamadas de valores ou de bens, porque valem. E, exatamente porque são importantes e têm valor, podem ser atacadas e, por isso, devem ser protegidas.
Entre os vários bens que existem na vida, um número grande deles é selecionado e colocado sob a proteção do direito.
São eles os chamados bens jurídicos, na definição de ASSIS TOLEDO, “valores ético-sociais, que o direito seleciona, com o objetivo de assegurar a paz social, e coloca sob a sua proteção para que não sejam expostos a perigo de ataque ou a lesões efetivas”. São bens jurídicos a vida, a liberdade, a propriedade, o casamento, a família, a honra, a saúde, enfim, todos os valores importantes para a sociedade.
Entre os bens jurídicos, alguns, os mais importantes, são colocados sob a proteção do Direito Penal, que seleciona algumas formas de ataques ou de perigo de lesões – as mais graves –, proibindo-as sob a ameaça da pena criminal.
Definindo o crime e impondo, como conseqüência, a pena, diz-se comumente que a tarefa do Direito Penal é a luta contra o crime, como se fosse esse seu objetivo.
Enganam-se os que assim pensam. O crime não pode ser combatido eficazmente pelo Direito Penal, que, aliás, se volta para as conseqüências e não para suas causas.
Qualquer fenômeno social indesejável há de ser combatido por meio de ações sociais que ataquem suas causas, e não com aquelas que apenas se voltem contra seus efeitos. É lição de vida elementar, velha, a de que não se cura a doença com medicamentos que alcançam apenas a dor, ou que façam tão-somente ceder a febre, sem que se combata a causa da moléstia.
Querer combater a criminalidade com o Direito Penal é querer eliminar a infecção com analgésico. O crime há de ser combatido com educação, saúde, habitação, trabalho para todos, lazer, transportes, enfim, com condições de vida digna para todos os cidadãos. É, portanto, tarefa para toda a sociedade, para o Estado, para os organismos vivos da sociedade civil, e não para o Direito Penal.
Além disso, não é o Direito Penal instrumento para a transformação dos homens em seres perfeitos.
(^22) Op. cit. p. 16.
14 - Direito Penal – Ney Moura Teles
“A tarefa imediata do Direito Penal é, portanto, de natureza eminentemente jurídica e, como tal, resume-se à proteção de bens jurídicos. Nisso, aliás, está empenhado todo o ordenamento jurídico. E aqui entremostra-se o caráter subsidiário do ordenamento penal: onde a proteção de outros ramos do direito possa estar ausente, falhar ou revelar-se insuficiente, se a lesão ou exposição a perigo do bem jurídico tutelado apresentar certa gravidade, até aí deve estender-se o manto da proteção penal, como ultima ratio regum. Não além disso.” É óbvio que, ao proteger os bens jurídicos, o Direito Penal, por extensão, empresta uma contribuição importante para o combate à criminalidade, como conseqüência natural de sua atuação. Mas não mais que isso.
A observação é importante, para que não se procure buscar a resolução dos problemas da criminalidade com leis penais mais severas, com restrições à liberdade, com a criação de novos crimes, enfim, com o endurecimento do Direito Penal.
É dever do estudioso e de seu operador demonstrar, no seio da sociedade, fora de seu ambiente de trabalho, sempre, enfim, a limitação do Direito Penal, seu caráter fragmentário e, principalmente, sua tarefa de proteção jurídica dos bens mais importantes das lesões mais graves, para que sobre ele não se lancem as injustas acusações de ineficiência e inoperância, nem que lhe continuem a chamar para tudo salvar, ou tudo resolver.
Conformado a sua missão jurídica, o Direito Penal tem muito a oferecer à sociedade que o constrói, desde que, evidentemente, sejam respeitados seus princípios fundamentais, especialmente os que o informam como de intervenção mínima, democrática e, essencialmente, tutelar.
Não pode intervir a todo momento, nem onde não seja indispensável, e só pode atuar para proteger o bem jurídico.
A sanção do Direito Penal é de uma severidade enorme: priva, em regra, o infrator da norma de sua liberdade, por certo tempo, mantendo-o num lugar diferente do seu, longe de seus entes queridos, suas coisas, sua profissão, sua vida, junto de outros, que nem conhecia, sob a égide de um conjunto de regras antes jamais vistas, numa inominável violência contra o ser humano, pois atinge o bem mais sagrado que ele tem.
(^23) TOLEDO, Francisco de Assis. Op. cit. p. 14.
16 - Direito Penal – Ney Moura Teles
ela será fixada “conforme seja necessário e suficiente para reprovação e prevenção do crime”.
A pena como exclusiva retribuição não pode ser aceita porque está absolutamente divorciada da missão do Direito Penal, que é a proteção dos bens jurídicos.
Para esta teoria, o fim da pena é prevenir novos delitos do infrator da norma penal. Enquanto preso, não cometeria novos crimes. Se o condenado fosse corrigível, seria corrigido. Se apenas intimidável, ficaria intimidado e, se nem corrigível, nem intimidável, restaria, pelo menos, neutralizado, durante o cumprimento da pena.
ROXIN faz objeções. Essa teoria, tanto quanto a da retribuição, não permite delimitação do conteúdo do poder punitivo do Estado, seja na criação dos crimes, seja na quantificação das penas. Além disso, para ser coerente, teria que manter o corrigível preso até que se lhe desse a correção – mesmo que precisasse permanecer preso indefinidamente –, o que seria um absurdo.
Por outro lado, se a idéia é prevenir novos crimes do infrator da norma penal, não haveria necessidade da pena quando se verificasse a inexistência de perigo de repetição da infração.
Criminosos eventuais, por fatos que muito provavelmente não mais se repetiriam, não deveriam ser punidos, pois não haveria nenhum perigo de voltarem a delinqüir. Exemplo: homicidas dos campos de concentração, que vivem, hoje, plenamente integrados na sociedade, sem necessidade de ressocialização. Inúmeros são os casos de indivíduos que cometem crimes – mormente passionais – e que nunca mais voltam a cometer qualquer ato ilícito. Tais pessoas não precisariam ser ressocializadas; no entanto, devem sofrer a pena. A que título e com que fim? A teoria não responde.^25
Se eles, apesar de terem cometido um crime, não representam nenhum perigo, porque não têm personalidade voltada para o crime, porque o crime cometido fora, em verdade, um acidente, por que mantê-los encarcerados, se não é necessária qualquer prevenção especial?
Esta teoria só consegue justificar a pena para aqueles que, tendo cometido um crime, voltariam, necessariamente, a cometer outros, mas como descobrir quem é esse
(^25) ROXIN, Claus. Op. cit. p. 21-22.
Introdução ao Estudo do Direito Penal - 17
que, obrigatoriamente, vai reincidir?
Impossível tal descoberta, pelo menos enquanto Deus não vier a operar o direito dos homens.
A razão de ser da pena criminal estaria nos efeitos intimidatórios sobre a generalidade das pessoas, que, diante da ameaça abstrata e concreta da pena, ficariam motivadas a não transgredir a norma penal.
Tanto quanto as duas teorias anteriores, também esta não delimita o campo do que pode ser definido como crime, deixando ao Estado plena liberdade para criar novas figuras criminosas e estabelecer toda a espécie de penas, em qualidade e quantidade. Daí o grande perigo de, com o objetivo de intimidar e prevenir novos crimes, exacerbar, em demasia, as quantidades das penas e criar novos delitos. É o que vem ocorrendo no Brasil nos últimos anos, infelizmente.
Com relação à criminalidade organizada, sofisticada, então, esta função intimidatória é absolutamente nula. Exemplo brilhante são as extorsões mediante seqüestros no Brasil. Elevadas à categoria de crimes hediondos – apenadas com reprimendas bem mais severas e contempladas com diversas restrições às garantias processuais e constitucionais –, seu número tem aumentado, vertiginosamente, após a vigência da lei que procurou intimidá-las. De nada valeram, portanto, penas mais severas.
A mais importante crítica a essa teoria vem, novamente, de ROXIN:
“Como pode justificar-se que se castigue um indivíduo não em consideração a ele próprio, mas em consideração a outros? Mesmo quando seja eficaz a intimidação, é difícil compreender que possa ser justo que se imponha um mal a alguém para que outros omitam cometer um mal. Já KANT o criticou por atentar contra a dignidade humana, tendo afirmado que o indivíduo não pode ‘nunca ser utilizado como meio para as intenções de outrem, nem misturado com os objetos do direito das coisas, contra o que o protege a sua personalidade natural’.” Apesar de tudo, não se pode negar que a pena exerce, na prática, essa função, já que muitas são as pessoas que deixam de cometer crimes exatamente pelo medo de
(^26) Op. cit. p. 24.
Introdução ao Estudo do Direito Penal - 19
alguma coisa, se não houver um interesse ético, superior, de proporcionar ao que agrediu um bem da sociedade, condições para aprender a respeitar os valores ético- sociais.
Só faz sentido a pena que tiver como finalidade educar o homem que delinqüiu, para mostrar-lhe a importância e as vantagens do respeito aos bens alheios, de modo que, apreendendo novos conceitos, possa voltar a viver em liberdade.
Em síntese: “uma teoria unificadora dialética, como a que aqui se defende, pretende evitar os exageros unilaterais e dirigir os diversos fins da pena para vias socialmente construtivas, conseguindo o equilíbrio de todos os princípios, mediante restrições recíprocas”. A “idéia de prevenção geral vê-se reduzida à sua justa medida pelos princípios da subsidiariedade e da culpa, assim como pela exigência de prevenção especial que atende e desenvolve a personalidade”. A teoria que justifica a pena, assim, é, dialeticamente, a composição do que há de aceitável em cada uma das particularmente inaceitáveis teorias. Como dizia HEGEL, a quantidade pode transformar-se em qualidade. Aqui, partes aceitáveis de três todos inaceitáveis, agregadas, podem constituir-se num único razoável ou, pelo menos, qualitativamente melhor.
Infelizmente, a pena privativa de liberdade é uma violência ainda necessária, mas apenas para alguns – muito poucos – agentes de fatos considerados crimes, os mais graves, praticados contra os bens mais importantes. Uma minoria de delinqüentes.
A maior parte dos que violam as normas penais não pode sofrer penas severas, que, longe de trazerem qualquer benefício a quem as sofre, proporcionam, ao contrário, males irreparáveis, que se transmitem a todos os familiares do condenado.
A realidade indica que a pena privativa de liberdade é um instituto falido. Pode- se concluir, com facilidade, que ela não alcança, a contento, seus fins de prevenção geral, nem especial, muito menos o fim ressocializador ou socializador.
O crime é um fenônemo social que muito provavelmente não será extirpado da
(^27) ROXIN, Claus, Op. cit. p. 44.
20 - Direito Penal – Ney Moura Teles
face da Terra. O Direito Penal, enquanto protetor dos bens jurídicos mais importantes, das lesões mais graves, deve, nesse sentido, encontrar outras modalidades de penas, para responder aos delitos praticados.
A privação da liberdade não intimida e, o que é mais grave, não só não recupera o condenado, como também o transforma negativamente. Não podia ser diferente, pois não se ensina a viver em liberdade, respeitando os valores sociais, suprimindo a liberdade do educando.
É como desejar ensinar um bebê a caminhar atando-lhe as pernas. Ele jamais vai conseguir.
O caminho é o da limitação, cada vez maior, da presença do Direito Penal na vida das pessoas. Somente quando a lesão ao bem jurídico mais importante for muito grave é que o Direito Penal deve ser chamado.
E, enquanto não se encontram as alternativas, somente para a criminalidade violenta é que se responderá com penas privativas de liberdade. Aos crimes de menor gravidade devem corresponder penas não privativas de liberdade – de prestação de serviços à comunidade e de restrições de direitos, e outras formas que devem ser criadas, inventadas, emanadas da consciência da sociedade.
Importante passo nesse sentido deu o legislador brasileiro com a Lei nº 9.099/95, que criou os juizados especiais criminais, permitindo a transação em Direito Penal – o acordo com a vítima do crime, mediante a reparação do dano e aplicação de penas não privativas de liberdade – e, mais importante, a suspensão condicional do processo, com a imposição de condições para o processado, que, durante certo tempo, se submeterá a um chamado período de prova, em que será observado seu comportamento, e, no fim, sendo merecedor, extinguir-se-á o processo, sem julgamento, sem condenação nem absolvição, esquecendo-se o que aconteceu. Outro passo maior foi o dado pelo legislador de 1998, com a Lei nº 9.714, que criou novas penas restritivas de direito, ampliando o âmbito de sua incidência, alcançando condenados a penas de até quatro anos de privação de liberdade.
O caminho a continuar trilhando é esse, e não o da exasperação das penas e do endurecimento do Direito Penal.