Docsity
Docsity

Prepare-se para as provas
Prepare-se para as provas

Estude fácil! Tem muito documento disponível na Docsity


Ganhe pontos para baixar
Ganhe pontos para baixar

Ganhe pontos ajudando outros esrudantes ou compre um plano Premium


Guias e Dicas
Guias e Dicas

introdução a sociologia pedro demo, Notas de estudo de Contabilidade

Introduçao a sociologia - Pedro Demo

Tipologia: Notas de estudo

2012
Em oferta
30 Pontos
Discount

Oferta por tempo limitado


Compartilhado em 20/12/2012

camilla-fernandes-13
camilla-fernandes-13 🇧🇷

4.7

(7)

1 documento

1 / 193

Toggle sidebar

Esta página não é visível na pré-visualização

Não perca as partes importantes!

bg1
pf3
pf4
pf5
pf8
pf9
pfa
pfd
pfe
pff
pf12
pf13
pf14
pf15
pf16
pf17
pf18
pf19
pf1a
pf1b
pf1c
pf1d
pf1e
pf1f
pf20
pf21
pf22
pf23
pf24
pf25
pf26
pf27
pf28
pf29
pf2a
pf2b
pf2c
pf2d
pf2e
pf2f
pf30
pf31
pf32
pf33
pf34
pf35
pf36
pf37
pf38
pf39
pf3a
pf3b
pf3c
pf3d
pf3e
pf3f
pf40
pf41
pf42
pf43
pf44
pf45
pf46
pf47
pf48
pf49
pf4a
pf4b
pf4c
pf4d
pf4e
pf4f
pf50
pf51
pf52
pf53
pf54
pf55
pf56
pf57
pf58
pf59
pf5a
pf5b
pf5c
pf5d
pf5e
pf5f
pf60
pf61
pf62
pf63
pf64
Discount

Em oferta

Pré-visualização parcial do texto

Baixe introdução a sociologia pedro demo e outras Notas de estudo em PDF para Contabilidade, somente na Docsity!

O À SOCIOLOGIA mplexidade, Interdisciplinaridade e Desigualdade Social nterdisciplina- e de análise da sociolo; a introdução à ia realça marcas pós modernas dacomplexidade c ade, conferindo ao texto sentido alternativo em termos de montagem teóric failidade. Entende a sociedade humana sob o olhar biológico da evolução e cultural da história, m especial interesse em entender razões da desigualdade social e possibilidade de sua ges- »mais democrática, nbora pareça impraticável sociedade igual (evolução e hi: a jamais nos presentearam com 1), poderia ser igualitária: marcada pela cidadania coletiva, tendo o bem comum como refe- ncia mais fundamental. Como o ser humano não é apenas sapiens, mas igualmente demens, egra seu modo de ser e de vir a ser, ao lado da po: cooperação, também a violência, do- inação, exclusão. Chegando agora à era da sociedade e economia intensivas de conheci lento, o resultado é, em parte, melancólico: 80% da humanidade são pobres e a natureza está ndo depredada a passos largos. » entanto, a democracia, apesar das críticas eternas, é possível. O ser humano é -rosidade incomparável, sem esquecer que pode desenvolver contexto ético igualitário em ibora mais facilmente aprenda a explorar os outros, pode também ncia do poder se conjugue com a consciência no do bem comum. E render a conviver melhor, desde que a consc bs limites e da solidariedade. iva de analisar facetas da 1. Somos uma das so- texto inclni, soh a denominação de-“sociologia pequena”, a tenta alidade brasileira mais próxima dos incômodos da desigualdade soc atlades mais desiguais do mundo, embora também sejamos conhecidos como alegres e ciáv OTA SOBRE O AUTOR 2DRO DEMO é Ph.D. em Sociologia. Defendeu tese cm 1971, publicada em alemão em 1973. 1 da PUC-RJ, da UFI, do IUPER], entre 1972 e 1974. Desile 1976 é professor da bB;, onde se tornou professor titular a partir de 1981. E autor dos livros Metodologia científica 4 ciências sociais, Introdução à metodologia da ncia, Sociologia: uma introdução c etodologia do contro ientífico e Complexidade e aprendizagem: a dinâmica não linear conhecimento, publicados pela Atlas. bi profess: mento lvro-Lexto para a disciplina INTRODUÇÃO A SOCIOLOGIA ou SOCIOLOGIA do ciclo básico Humanas e Sociais as le Ciência ublicoção atlor ww.atlasnet.com.br oWad I Y OVÍNAONHIN | PEDRO DEMO INTRODUÇÃO À SOCIOLOGIA Complexidade, Interdisciplinaridade e Desigualdade Social VIDOTOIDOS Introdução à Sociologia dog Sulgêncio Sola Chats OAB/MG 74250-B FONE: (0XX31) 9634-2001 Não Faça CÓPIA & 2002 by EDITORA ATLAS S.A, Capa: Leonardo Hermano Composição: Formato Serviços de Editoração S/C Ltda. Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) (Câmara Brasileira do Livro, SB Brasil) Demo, Pedro, 1941- Introdução à sociologia : complexidade, interdisciplinaridade e desigualdade social / Pedro Demo, — — São Paulo : Atlas, 2002. Bibliografia. ISBN 85-224-3312-7 1. Sociologia 1. Título. 02-4993 CDD-301 Índice para catálogo sistemático: 1. Sociologia 301 TODOS OS DIREITOS RESERVADOS - É proibida a reprodução toral ou parcial, de qualquer forma ou por qualquer meio. A vivlação dos direitos de autor (Lei nº 9.610/98) é crime estabelecido pelo artigo 184 do Código Penal. Depósito legal na Riblioteca Nacional conforme Decreto nº 1.825, de 20 de dezembro de 1907. Impresso no Brasil/Printed in Brazil dure Iulgêncio Silo Ôlaes OAB/MG 74250-B FONE: (0XX31) 8534-2001 doe Sulgônco Sia Olaes DABIMG 74250-B FONE: (0XX31) 9634-2001 Para Lúcia e Gisela: O melhor da vida é ser bem cuidado e amado. doa Idgêncio Siba Úlaves OAB/MG 74250-B FONE: (0XX31) 9834-2001 Sumário 1 INTRODUÇÃO, 11 2 OLHAR METODOLÓGICO, 17 3 SOCIOLOGIA DESAFIADA, 35 Mudanças de paradigma metodológico, 38 Mudança de paradigma sociológico, 49 Social complexo (identidade individual), 64 Social complexo (grandes identidades), 69 Biologia e cultura, 79 [E 4 TRAJETÓRIA HUMANA, 91 1 Herança humana evolucionária, 91 2 Marca biossociocultural das sociedades humanas, 96 3 Tipos de sociedades humanas, 102 31 Sociedades pré-industriais, 103 3.1.1 Sociedades de caçadores e coletores, 103 3.1.2 Sociedades de horticultura, 106 3.1.3 Sociedades agrárias, 110 3.1.4 — Atalhos evolucionários, 115 Sociedades industriais, 117 Introdução Não estou reeditando meu livro de introdução à sociologia (Demo, 1985). Estou reescrevendo-o por completo. Os tempos mudaram e também mudei, naturalmente. Mais ou menos 20 anos se passaram, e, como todos sa- bem, a esta altura de nossos tempos velozes (Gleick, 1999), eles valem por um século, pelo menos. Em vez de retocar/atualizar o texto anterior, prefiro recons- truí-lo, esperando oferecer proposta mais consentânea com as mudanças pro- fundas pelas quais nossa sociedade está passando e com as disputas atuais so- bre paradigmas científicos. Busco também fazer justiça a alunos e leitores em geral, que certamente desejam manusear texto ao mesmo tempo mais atuali- zado e adequado à compreensão da problemática social contemporânea. Man- tenho tom crítico, pois imagino fazer parte dessa tradição sociológica, desde meu doutoramento na Alemanha em 1971, e também porque acredito que o soció- logo precisa saber olhar para frente, não apenas para trás.' Segundo Boaventura dos Santos (2002a:25), “a afirmação fundamental do pensamento crítico consis- te na usserção de que a realidade não se reduz ao que existe”. Todavia, mudam- se paradigmas, mormente dentro da tradição crítica. “Mudar paradigma” já se 1 Antes que alguém sugira “piadinha de mau gosto”, não estou pedindo que “esqueçam o que disse”, como teria feito Fernando Henrique Cardoso, ao ser criticado de neoliberalismo no início de seu primeiro mandato. Muito pelo contrário, traço continuidades e rupturas dentro da evolução natural dos tempos. Há conrinuidades, como a pegada crítica, o compromisso ético de fundo com uma sociedade mais igualitária, a repulsa ao capitalismo liberal, bem como há ruptu- ras, como o tom pós-moderno do discurso científico, a junção entre fundamentos biológicos e his- tórico-sociais, a introdução de temáticas emergentes, sobrerudo o olhar da complexidade. 11 tornou algo vulgar e não é istu que gostaria de alegar aqui (Demo, 2001). Bus- cu reconhecer que o moco de fazer sociologia e ciências humanas em geral está sofrendo acirrados debates desconstrutivos, colocando em xeque noções e re- ferências teóricas e práticas antes consideradas fundamentais ou mesmo intocáveis. Tenho participado intensamente dessa discussão, por meio de pu- blicações na esfera da metodologia científica, o que tem auxiliado a entender melhor o que se chama de maneira quase sempre muito pouco específica e cui- dadosa de “pós-modernidade” (Demo, 2000; 2000a; 20014; 2001b; 2002). Não estou preocupado em escrever texto que devesse ser qualificado de “pós-mo- derno”, pois neste espaço de alhos e bugalhos (Sokal e Abricmont, 1999) inte- ressa-me evitar más companhias. Mas, havendo também boas companhias, pre- tendo aproveitar lances fundamentais da pós-modernidade, sobretudo sua preocupação autocrítica e com a complexidade da realidade: o co- nhecimento é intento sempre limitado, visão parcial e proposta naturalmente provisória. Sendo parte da natureza, não podemos imaginar que damos conta do todo ou de tudo. Não vemos a natureza de cima ou de fora, mas como parte dela, o que nos impõe naturalmente visão parcial, além de localizada no espa- ço e no tempo, Disto retiro a conclusão de que não estou escrevendo a última introdu- são à sociologia, mas apenas a próxima, dentro da expectativa de que em pou- cos anos deverá ser revista, talvez mesmo abandonada. Ainda, esta introdução não dispensa e muito menos desqualifica outras de outros autores e posturas.? 2 Arrolo algumas introduções, a título de simples exemplo: ÁVILA, E B. Introdução à sociologia. Rio de Janciro: Agir, 1964; AZEVEDO, E Princípios de sociologia. São Paulo: Duas Ci- dades, 1973; BAUMAN, Z. etal. Sociologiu. Rio de Janeiro: FGV, 1976; BINS, M. ct al. Introdução à sociologia. Porto Alegre: Feplan, 1980; BOTTOMORE, T. B. Introdução à sociologia. Rio de Ja- neiro: Zahar, 1973; CASTRO, A. M.; DIAS, E. E Introdução ao pensamento sociológico: Durkheim? Weber/Mars/Parsons. Rio de Janciro: Eldorado, 1974; CASTRO, C. A. P Sociologia geral. São Paulo: Atlas, 2000; CHARON, J. M. Sociologia, São Paulo: Saraiva, 1999; COHN, G. Sociologia: para ler os clássicos. São Paulo: Livros Técnicos e Científicos, 1977; CORCUFE P As novas sociologias: cons truções da realidade social. Bauru: Edusc, 2001; COSTA, M. C. Sociologia: introdução à ciência da sociedade. São Paulo: Moderna, 1997; COULSON, M. A.; RIDDELL. Introdução crítica à socio logia. Rio de Janeiro: Zahar, 1972; CUVILLIER, A. Introdução à sociologia. São Paulo: Nacional, 1979; DAHRENDORE R. Homo sociologivus. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1969; FERGUSON, 8. J. Mapping the social lundscape: readings in sociology. Califórnia: Mayfield Publishing Company, 1999; FERRARI, A. T. Fundamentos de sociologia. São Paulo: McGraw-Hill, 1983; FERREIRA, J. M. et al. Sociologia, São Paulo: McGraw-Hill, 1995; FERREIRA, L. C. (Org.). A sociologia no hori- sonte do século XXI. São Paulo: Boitempo, 1999; MCHTFR, J. E. Sociologia. São Paulo: Tlerder 1960, FORACCHL, M. A.; MARTINS, J. $. Sociologia e sociedade: leituras de introdução à sociolo- gia. São Paulo: Livros Técnicos e Científicos, 1977; GALLIANO, A. G. Introdução à sociologia. São Paulo: Harbra, 1981; GIDDENS, A. Sociology. Londres: Polity Press, 1997; GIDDFINS, A.; DUNEIER, M. Introduction to sociology. New York: WW. Norton & Company, 1999: GOLDMANN, L. Que éa sociologia? São Paulo: Difel, 1974; GOLDTIIORPE, J. E. Sociologia e untropologia social: uma in- trodução. Rio de Janeiro: Zahar, 1977; HENSLIN, J. M. Essentials of sociology: a down-to-earth approach. Boston: Allyn and Bacon, 2002; JOTINSON, A. G. The forest and the trees: sociology as 12 Pretende ser complementar e talvez alternativa. Por coerência, todo convite à discussão crítica deve ser autocrítico. Fomenta o questionamento. Não o pode vbstaculizar ou evitar. Conhecimento dito científico é principalmente dinâmi- ca desconstrutiva, o que o leva a propor reconstruções provisórias. Pratico aqui o critério de cientificidade apregoado em outros lugares da discutibilidade formal e política - só pode ser científico o texto que se mantiver discutível, no plano formal (logicamente bem-feito, sistemático, cuidadosamente argumen- tado) e no plano político (capaz de consenso intersubjetivo aberto) (Demo, 1995; 20002). Como se sabe, esse critério não resolve tudo em ciência, pela razão simples de que tal pretensão é descabida (ciência final é a própria con- tradição de ciência), mas ilumina cuidados metodológicos das aproximações intermináveis c abertas. Na assim dita “modernidade”, a crítica era geralmente feroz só para fora - a tudo derrubou: religião, filosofia, mitos, crenças e mo- rais. Esse gesto crítico, entretanto, não era correspondido com o autocrítico. Antes, era evitado e muitas vezes reprimido (Rescher, 1987; Shattuck, 1996). O argumento de autoridade predominava sobre a autoridade do argumento. Com isso, o conhecimento científico resvalou para o que mais pretendia superar: tornou-se religião, mito, moralismo, filosofia barata, à proporção que se fez a medida das coisas (Harding, 1998). Deixou de perceber que o conhecimento de estilo ocidental não pode pretender a universalidade indiscutível de suas análises, que o colonialismo - destruição das outras culturas e do meio ambiente — foi sua marca mais ostensiva, que se fazia contraditório ao extremo quando, vendendo-se como plataforma de mudança, fugia de expor-se à mudança (San- tos, 1995; 2000). Pretendo construir introdução à sociologia que, além de crítica e sobre- tudo autocrítica, possa acolher a dinâmica das discussões atuais em torno do assunto, em particular busca de interdisciplinaridade, manuseio das diná- micas não lineares complexas, junção de história e evolução biológica da sociedade, desafio do desenvolvimento humano sustentável, dimensões da sub- jetividade e da cotidianidade. Considero hoje fundamental que a sociedade não life, practice, and promise. Philadelphia: temple University Press, 1997: JOHNSON, H. M. Sociology: a systematic introduction. Londres: Routledge & Degan, 1961; LAKATOS, E. M. Socia- logia geral. São Paulo: Atlas, 1981; LAZARSFELD, E Asociologia. Lisboa: Bertrand, 197! ENS; C.; LENSKI, J. Human societies: an introduction to macrosacialogy. New York: MeGraw-Hil 1987; MARTINS, €. B. O que é sociologia. São Paulo: Brasiliense, 1988; MORIN, F. Sociologia: a socio logia do microssocial ao macroplanetário. Portugal: Publicações Europa-Anérica, 1998; OLIVBIRA, RS. Introdução à sociologia. São Paulo: Ática, 1989; OLIVEIRA, R. c.s. (Org). Sociologia: on sensos & conflitos. Ponta Grossa: UEPG, 2001: REX, J. Problemas fundamentais da teoria sacioló- gica. Rio de Janeiro: Zahar, 1973; SANTOS, J. V; GUGLIANO, A. A. (Org). A sociologia para o século XXT. Pelotas: Educat, 1999; SCOTSON, J. Introdução à sociedade. Rio de Janeiro: Zahar, 1976: TELES, M. L. S. Curso básico de sociologia geral, Petrópolis: Vozes, 1986; TIMASHEFE o S. Teoria sociológica. Rio de Janeiro: Zahar, 1971; TOMAZI, N. D. (Coord). Iniciação à suciolo- gia. São Paulo: Atual, 1993; VILA NOVA, S. Introdução à sociologia. São Paulo: Atlas, 1981. 13 Mas, como esses mesmos autores professam, a sociologia precisa continuar muito mais ligada à ars inveniendi (arte de inventar) do que à ars probandi (arte de provar), seja para não sucumbir aos formalismos metodológicos de cariz positivista, seja para continuar acenando na teoria e na prática para alternati- vas da sociedade. Neste texto farei esforço específico de emprestar à sociolo- gia tom mais prático, apelando principalmente para modos de estudá-la por meio da pesquisa e elaboração própria em contextos cotidianos de nossa vida. Preci- sa fazer parte do “mundo da vida”, não apenas de teorias altissonantes c com- plicadas. Tendo perdido seu charme das décadas de 60 e 70, sobretudo seu ímpeto “revolucionário”, a sociologia pode ser vista como curso fundamental para oferecer bases propedêuticas, metodológicas e sobretudo práticas de como contribuir para a formação de sociedades mais igualitárias, permitindo ao soció- logo profissionalizar-se de maneira pós-moderna, ou seja, interdisciplinar e fle- xível, não só na condição de analista especializado, mas sobretudo de cidadão comprometido. Nesse sentido, a sociologia continua herdeira privilegiada da teoria crítica, embora não possa apenas ser crítica. Por autocrítica, é mister garantir também espaços profissionais práticos (Giddens, 2001). 4 O descrédito sobre o sociólogo exacerbou-se com a ascensão de Fernando Henrique Cardoso à Presidência da República, de um lado, porque teria dito que deveríamos esquecer o que havia cscrito, e, de outro, porque fomentou, nos oito anos de mandato, política social das mais pífias, literalmente subordinada à econômica, indicando ostensivo desleixo pela questão social (Gentili c Frigotto, 2001; Fiori, 1997). 16 Olhar Metodológico Como ciência é “questão de método”, é recomendável declarar como pretendo trabalhar meu objeto de pesquisa, que é a sociologia. Mantenho a no- ção de dialética histórico-estrutural, embora em contexto pós-moderno. Dentro da concepção de dinâmica complexa não linear, ambígua e ambivalente, já não se podem colocar em um lado estruturas mais ou menos perenes, e no outro dinâmicas apenas históricas. Depois da polêmica gerada por Prigogine (1996; Prigogine e Stengers, 1997) de que a natureza toda seria dialética, as estruturas também são dinâmicas, por mais que resistam mais ao tempo do que os fluxos históricos mais velozes. Conquanto as estruturas representem coagu- lações que conferem aos fluxos alguma consistência e condições de insti- tucionalização, igualmente estão submetidas à “Ilecha do tempo”, embora o ritmo temporal varie muito. Para o ser humano, 80 anos são uma vida toda, enquanto para a natureza, sobretudo em sua face física, material, esse lapso de tempo seria absolutamente irrisório, A idade do mundo conhecido estaria por volta de quatro bilhões e meio de anos, o que dá ademais a noção do quanto o ser humano é criatura fugaz, além de recente. Essa maneira de ver permitiu a De Landa (1997) analisar os últimos “mil anos de história não linear” à luz da complexidade dinâmica, usando categorias da geologia: os sedimentos geoló- gicos parecem imóveis, mas são dialéticos como qualquer cidade ou corpo hu- mano. Este é composto em grande parte de água, mas, se fosse isso apenas, não ficaria de pé. Precisa de ossos, como a cidade precisa de muros, construções, ruas, praças. Isso resiste mais ao tempo, tanto assim que a arqueologia toma- os como os remanescentes que permitem interpretar a dinâmica histórica que 17 um dia sustentaram. Para surpresa de muitos, De Landa aplica a fenômenos históricos, como a formação das cidades, categorias geológicas que, tradicio- nalmente, não seriam tomadas como dialéticas. O conceito de estrutura permanece importante, porque toda dinâmi- ca, para acontecer, precisa estruturar-se de algum modo ou constituir “ossatura” que faculte sua institucionalização e sobrevida recorrentes. Os ossos também se dissolvem no tempo, porque nada escapa à ação do tempo; a realidade é menos modo de ser do que modo de vir a ser, Por isso, o conceito de his- tória parece mais fundamental, seja no sentido da história evolucionária, seja da história cultural. Ao contrário do que pensavam visões positivistas, como o estruturalismo de Lévi-Strauss, não existem na natureza propriamente “inva- riantes”, já que, estando tudo submetido à dinâmica do tempo, tudo muda, mesmo que em ritmo extremamente lento para olhos humanos. Não podemos, assim mesmo, disperisar o conceito de estrutura, pelo menos em três sentidos: () para conotar que toda dinâmica tem seu “modo” de ser, ou seja, como se costuma dizer, é “caos estruturado”; não é apenas caos ou pura dinâmica, mas dinâmica que manifesta também relevos estruturais relativamente recorrentes; (ii) para conotar o que está dado nas estruturas da natureza ou da sociedade e serve como equipamento original ou ponto de partida para qualquer processo; por exemplo, fazem parte da estrutura de um país sua população, história já percorrida, bem como geografia e solo, recursos naturais, representações so- ciais e culturais, ideologias dominantes; (iii) para conotar, sobretudo em sua face fenomenal, os traços lineares que permitem estabilizações lineares, impres- cindíveis para a relativa permanência de processos históricos. Podemos aplicar essa idéia ao fenômeno da linguagem, para observar sua face estrutural e his- tórica. À sintaxe indica sua consistência estrutural, no sentido de que sedimenta códigos gramaticais recorrentes, modos constantes de signos e modulações per- ceptíveis em toda e qualquer língua concreta. Já a semântica sinaliza sua histó- tia particular, os sentidos culturalmente plantados e ambíguos, a hermenêutica interpretativa própria. Mesmo usando sempre a mesma gramática, cada fala é, em sentido hermenêutico, absolutamente particular e irrepetível. A gramática, que seria a parte “sólida” da linguagem, também muda. Por isso, temos portu- guês medieval, ou línguas “latinas”, cujas gramáticas, embora semelhantes, possuem processos históricos de evolução também particulares. Com isto, ano- tamos certa tessitura dialética da realidade, composta de processos estruturais e históricos, o que a torna “processual” não somente no horizonte chamado de histórico, mas também naquele chamado de estrutural. Toda história tem sua “solidez”, pois não acontece por mero acaso ou ao léu, há antecedentes e con- segientes, para muitos é gerativa, não só mera passagem insossa, delineia para nosso olhar fases, épocas, os anos passam dentro de seu ritmo implacável, bem como toda estrutura tem sua “liquidez”, porque seus limites são também por- tas abertas. Nada termina de todo e nada começa de todo. Estrutura é apenas 18 o suporte mais sólido da dinâmica, que precisa dele para constituir-se e fluir, assim como o rio precisa de leito. no Podemos responder apenas por traços estruturais da história c da evo- lução conhecida, mas, a rigor, não é viável prever como seriam estrutura e his- tória no futuro. Os próprios biólogos, pelo menos aqueles mais abertos a esse tipo de entendimento da natureza, já aceitam que a evolução, se começasse de novo, não teria qualquer chance de ser a mesma, como se seguisse caminho li- near matemático, absolutamente previsível (Sterelny, 2001; Tattersall, 2002). Submetida à “flecha do tempo” e composta de “estruturas dissipativas”, a na- tureza percorre caminho irreversível, não linear, no qual as estruturas, em vez de impedirem, facultam processos dinâmicos. Qlhando para trás, vemos que todas as sociedades conhecidas foram “desiguais”, o que insinua ser a desigual- dade social componente “estrutural” de toda sociedade. Dizendo assim, não estamos, porém, garantindo que o processo evolucionário e histórico não po- deria mudar esta composição, desde que tenha o devido tempo. Assim como a bactéria evoluiu, em bilhões de anos, para seres complexos como é o ser hu- mano, também seria perfeitamente cabível aceitar que, em outros bilhões de anos, supondo que pudéssemos sobreviver até lá na espécie, esta dificilmente se pareceria com a nossa de hoje, a não ser em traços muito largos, tal qual seria nossa semelhança com uma bactéria, Entretanto, tomando a sério evolução e história conhecidas, contamos com esta estrutura da desigualdade social, e é assim que organizamos as sociedades e nos fazemos expectativas de sua possi- vel democratização. A democracia não promete acabar com a desigualdade, mas democratizá-la, ou seja, administrá-la de tal modo que o bem comum possa prevalecer sobre privilégios de poucos. Assim como temos de contar com as estruturas da desigualdade, também podemos contar com a possibilidade de as democratizar, dependendo isso sobretudo da competência política da respecti- va sociedade. A estas alturas, é preciso colocar em seu devido lugar o trajeto evolucionário e o trajeto histórico, porque um não substitui o outro, nem co pia. Processos evolucionários tendem a ser mais lentos e subterrâneos, inten- samente não lineares, como foi a passagem estupefaciente da matéria para a vida, enquanto processos históricos tendem a ser mais rápidos, por vezes pre- cipitados, por vezes epidérmicos, mas não menos intensos ao fundo. Assim, se pudéssemos, em passe de mágica, mudar nosso equipamento biológico social fortemente plantado em hierarquias excludentes, seria talvez mais fácil fundar democracias mais participativas. Para inventar líderes que favoreçam o contro- le popular não hasta apenas a engenharia histórica. Será mister também enge- nharia biológica, que possa mudar, entre outras coisas, processos cercbrais modulados na evolução geral e da espécie. Enquanto isto não ocurre ou ocorre em ritmo desesperadoramente lento, é melhor contar com a desigualdade cial como estrutura dada em qualquer história e apostar em sociedades ig tárias, não propriamente iguais. o 19 sobretudo de viver. O resultado histórico e evolucionário atual da sociedade em que vivemos, marcada ostensivamente por marginalização massiva e pela des- truição galopante do meio ambiente, não pode ser tomado como “normal” e muito menos inevitável, mas como desafio ético de superação, dentro da no- ção de perfectibilidade ético-histórica: a sociedade não será igual, mas terá que ser pelo menos mais igualitária. Como aponta Dejours (2001), a sociedade humana é capaz de “banalizar a injustiça social”, à medida que o sofrimento de outrem é tomado como parte inevitável ou naturalmente perversa das relações sucials. . As questões teleológicas têm sempre irritado os positivistas, já que, logicamente falando, de fato não segue valor e vice-versa: do fato de que nossa sociedade é muito injusta não segue que assim deva ser, bem como do reconhe- cimento ético de que todos têm direito à educação não : segue que tenham de fato. Irritam hoje também os pós-modernos, porque por trás delas pairam sem- pre visões teóricas fechadas, facilmente fundamentalistas. É próprio de ditado- res prometer sociedades perfeitas, cuja perfeição maior seria evitar a contesta- ção. Para os pós-modernos, a rejeição das teleologias tem como razão princi- pal a linearidade artificial de promessas pretensamente eternas/perfeitas, que obscurecem a processualidade das dinâmicas complexas naturais e sociais. Faz parte das ambivalências da sociedade e da própria natureza não se bastar com referências materiais, lógicas, formais, mas transbordar para dimensões alter- nativas que impliquem fenômenos como espiritualidade, ética, religiões, com- promissos. Se fato logicamente se distingue de valor, não cabe ver aí, porém, qualquer dicotomia: é inviável marcar onde exatamente acaba o fato e começa o valor e vice-versa. Por exemplo, na discussão sobre (neo)liberalismo, enquanto seus adeptos nos querem fazer ver que se trata de fato irrecusável e acima de nós, Os críticos preferem ver aí a transformação abusiva de fatos em valores, precisamente para que não ousemos contestá-los (Gentili e Frigotto, 2001). Assumindo que lidamos, não com a realidade diretamente, mas com prospecções reconstrutivas dela (Demo, 2002), para o “ponto de vista do ob- vadori não Rá a 7 EO ma serv ador” não há fatos sem sujeitos que assim os interpretem. Não significa isso aceitar que a realidade dependa de mim para existir, mas depende de mim para existit para mim. Não captamos a realidade assim como ela é — é impossível saber em última instância o que é a realidade —, mas assim como a conseguimos con- ceber, duplamente condicionados: pelo trajeto evolucionário que nos legou tipo de cérebro que pode muito, mas não tudo; e pela inserção cultural, que nos torna intérpretes subjetivos do que imaginamos captar. Maturana (2001) exacerbou essa percepção, ao considerar todo ser vivo como “estruturalmente determina- do”: o que entra nele entra por dentro, na condição de observador. A realidade externa não se impõe e dela nunca teríamos representação fielmente repro- duzida. Antes, captamo-la de modo reconstrutivo, seletivo, contextuado (Berger, 1973). A proposta de Maturana oferece argumentação imponente em defesa da 22 aprendizagem emancipatória, pois contesta O instrucionismo - postura domes- ticadora autoritária e externa —, mas tende a ser linear, porque estabelece dicotomias desnecessárias entre pressões de fora e habilidades de dentro (Demo, 2000b). Como apontou o próprio Popper (1959), em ciência fatos não vêm primeiro, porque só conseguimos delinear fatos dentro de trama teórica e metodológica subjacente e prévia. E dá como exemplo o júri popular em pro- cessos judiciais. Como nunca é possível ter certeza final de como ocorreram os fatos e só poderíamos condenar pela via dos fatos, apela-se para júri ad hoc, cuja missão é literalmente “decidir” os fatos, razão pela qual tal “decisão” sempre pode ser revista. No fundo, não poderíamos ter certeza final nem se tivéssemos estado presentes, porque algo se torna fato apenas depois de percebido, ou seja, interpretado, e aí podemos equivocar-nos. Vendo que alguém dispara um tiro em alguém, pareceria óbvio que se trata de assassinato, mas, como mostram bem advogados matreiros, tudo pode ser contestado: o tiro poderia provir de outro lado, a vitima poderia estar simulando ou já estava morta, o atirador poderia ter agido sob compulsão ou sofrer de doença mental incontrolável. Nada é óbvio, nem o óbvio. Embora a realidade exista objetivamente fora de nós, sua percepção é inevitavelmente subjetiva. Dessa maneira de ver decorrem inúmeras conse- quências metodológicas; a primeira, é a implicação do pesquisador no objeto de pesquisa, em particular nas ciências sociais. Au estudarmos a sociedade, somos, ao mesmo tempo, objeto e sujeito. A segunda decorrência refere-se ao signifi- cado da dimensão metodológica como tal: não tem como função estabelecer a objetividade — algo impossível e abusivamente deturpante —, mas cuidar que o discurso científico possa ser int jetivamente co! ado. Não havendo pro- priamente “evidências empíricas”, mas níveis diferenciados de interpretação analítica, esta é tanto mais aceitável, quanto mais for construída por métodos transparentes e discutíveis. Como à subjetividade não é controlável de todo, nem pelo sujeito que produz conhecimento, trata-se de procedimentos aproximati- vos, cuja plausibilidade só pode ser reconhecida pela discussão aberta e acurada. Ciência é jogo aberto de argumentação e contra-argumenta ão, “saber pensar”, não de paradigmas inconcussos, evidentes, finais” A terceira decorrência apon- ta para a necessária autocrítica da crítica: nã iticar e rejeitar ser cri- tiçado, porque negaria a sy bjetividade do outro. Por isso, dizemos que o crité- rio da crítica é a autocrítica, para que prevaleça a autoridade do argumento, . não o argumento de autoridade. A quarta decorrência sinaliza o caráter inde- vassável da semântica da linguagem, por ser altamente complexa e não linear. Como os significados semânticos também são subjetivos, perdem-se nos porões obscuros do inconsciente, dos encaixes culturais e da trajetória biológica. A ri- gor, sequer o sujeito consegue ter controle pleno do que diz: como sugere a psicologia profunda, pode ocorrer que, ao dizer isto, queria dizer aquilo, ou falar para nada dizer, ou silenciar para dizer, ou cometer “ato falho”. As condições 23 de entendimento recíproco são apenas relativas e arriscadas. A quinta decor- rência desvela que a cientificidade não escapa da politicidade: para que algo valha em sociedade, não basta que seja lógico. O fenômeno do consenso, tão fundamental para a convivência, não é algo apenas racional, formado de elos lógicos segienciais, um levando ao outro como se fosse algoritmo, mas trama complexa cuja força é também sua fragilidade: consensos extremos apagam a subjetividade; consensos tênues não atingem objetividade. A compreensão de sociedade aqui escuda-se na dialética histórico-estru- tural. Significa dizer que vemos a sociedade como dinâmica não linear, complexa, ambígua e ambivalente. A realidade é campo de forças, no sentido de que é intrinsecamente dinâmica. Não precisa de impulso externo para mover-se. Move-se por impulso próprio, e dentro de forças contrárias. A unida- de de contrários é especificada pela não-linearidade: tratando-se de “caos estruturado”, apresenta faces lineares, mas sua tessitura é profundamente não linear. A face lincar pode facilmente ser percebida em relevos lógicos, recor- rentes, sequenciais, ao estilo causa/efeito, como é o caso de nossas tecnologias. As tecnologias, de modo geral, são intervenções lineares em realidades não li- neares e possuem sua confiabilidade no fato de funcionarem de modo recor- Tente e reversível. O avião é exemplo pertinente: trata-se de máquina bem com- Plicada, composta de inúmeras partes, todas com sua lógica própria e compos- tas num todo, mas funciona de modo reversível constante, até porque, se as- sim não fosse, ninguém voaria. Pode ser desmontado em suas partes e remon- tado, resultando no mesmo avião. Nenhum avião é, no fundo, idêntico ao ou- tro, porque existem sempre diferenças nos inúmeros detalhes, como ocorre nos automóveis: o bom motorista percebe se o carro que acaba de inaugurar é “bom”, ou é daqueles que sempre apresentam, cá e lá, algum defeito. Mas todos os carros deveriam funcionar da mesma forma. Seria estranho se, de repente, 0 carro “re- solvesse” usar como combustível não mais gasolina, mas uísque. Já máquina como o corpo humano é não linear: não pode ser desmontado sem ser descons- truído e, uma vez desconstruído, não é possível refazer o mesmo corpo, assim como a memória humana não sabe guardar informações estáticas como a me- mória do computador: gravando documento no computador, permanece o mesmo, a menos que o usuário mude; o computador como tal não tem o poder de mudar; nossas lembranças, contudo, possuem plasticidade impressionante: desaparecem, reaparecem, são por vezes soterradas e voltam quando menos se espera, outras nos atormentam e tornam-se maiores do que seriam, de tal sor- te que, a cada dia, o cérebro é, de certa maneira, outro. Essa mesma marca pode ser vista nas intervenções cirúrgicas do médico: elas perfazem incisões linea- res, cujos efeitos serão não lineares por conta da tessitura orgânica complexa do corpo, que tem sua maneira própria de envelhecer e de se recompor. Os cortes, como regra, cicatrizam no ritmo do corpo. Não é possível abrir a barri- ga de alguém e, em seguida, colar as partes cortadas, como se fosse possível 24 praticar isso de modo reversível. A boa tecnologia aí está em saber diagnosti- car e interferir cirurgicamente, mas a recomposição do corpo segue a não- linearidade irreversível de sua própria tessitura. Usa-se o conceito de COMPLEXIDADE para indicar que se trata de fenômenos não apenas complicados — dotados de muitas partes —, mas sobre- tudo dotados de dinâmicas contrárias. É preciso não cair na tentação de antropomorfizar a realidade, tal qual faz, por exemplo, a teoria do conflito, como se houvesse alguma briga dentro da realidade ou se se tratasse de algum “de- feito”. Em sociedade, as dinâmicas contrárias podem virar conflito, quando, por exemplo, a tendência biológica a competir, para além de traço estrutural, virar traço cultural-histórico de formações marcadas pela competitividade, ou quando o mercado naturalmente favorável à concentração de recursos escassos virar modo de produção baseado na mercantilização privada da escassez. O caráter incompleto, por isso dinâmico e mutável, da realidade não é lacuna, má for- mação, mas modo próprio de ser e vir a ser. Complexidade, entretanto, não é apenas marca estrutural e histórica do modo de ser e vir a ser da realidade, é também do conhecimento. Dessa idéia não decorre o princípio epistemalógico ultrapassado da adequação da realidade ao intelecto, como se o modo de ser e de vir a ser da realidade se encaixasse perfeitamente no modo de ser e de vir a ser do conhecimento. Em parte, por tratar-se, ao final, da mesma realidade evolucionária e histórica, e como o cérebro é formação dela resultante, há en- caixes entre conhecimento e realidade, o que permite, por exemplo, admitir que o cérebro tenta fazer da realidade uma “representação”. Não temos acesso di- reto à realidade externa, a não ser pela capacidade perceptiva do cérebro, via sentidos e poder de reflexão. Iodavia, como hem anota Sfez (1994) e muitos biólogos, com destaque para Maturana e Varela (1994), não se trata propria- mente de “representação”, como se fosse espelho meramente refletor, mas de processo reconstrutivo de teor sempre interpretativo. Não trabalhamos com a realidade como tal, mas com interpretação dela evolucionária e culturalmente condicionada. Em termos evolucionários, nosso cérebro é certamente a máqui- na mais evoluída conhecida, mas, mesmo assim, não pode tudo. Capta seleti- vamente, sobretudo não capta o que quer, mas o que pode dentro de seu traje- to evolutivo. Sua tendência a privilegiar traços recorrentes e estáveis da reali- dade dinâmica, de tal sorte que captamos menos a dinâmica como tal do que a regularidade da dinâmica, parece ser característica evolutiva. Estaria, por isso, talvez mais preparado para dar conta da sobrevivência do que do conhecimen- to, ou seja, mais preparado para reconhecer riscos, ameaças, medos por meio de processos interpretativos padronizantes, por si já trangiiilizantes. Em termos culturais, nosso cérebro responde aos condicionamentos históricos particulares e semânticos, atingindo os recônditos irreversíveis da subjetividade. Neste sen- tido, a própria ciência é hoje considerada multicultural (Harding, 1998). 25 Aplicada ao conhecimento, complexidade sinaliza dimensões epistemológicas, tais como: a) embora nosso cérebro tenda a compreender pela via da linearização formalizada das dinâmicas não lineares, ele mesmo é máquina não linear típica, a começar pela marca emergencial de seus processos: como é base física material, composta dos mesmos elementos na- turais recorrentes, consegue fabricar processos que desbordam inacreditavelmente essa base, atingindo o nível mental, conscien- te e espiritual; o cérebro, em certo sentido, como diz Searle (1998), “causa” o pensamento, mas nem este é “massa cinzenta”, nem esta é pensamento;? causalidades lineares aí são im próprias, também porque não seriam consentâneas com a criatividade: esta, stricto sensu, precisa ir além do ponto de partida, sendo fenômeno irre- versível; o cérebro não procede só por circuitos lógicos sintáticos, mas modula processos semânticos, tipicamente criativos, emergen- tes, interpretativos; b) conhecimento é dinâmica não linear em seu processamento, e é capaz de divisar lógica onde aparentemente não existiria, ou sur- preender falta de lógica na aparente lógica, criar noção nova e ino- vadora, interpretar para além dos dados disponíveis, não se sub- meter aos fatos como se fossem dados finais; embora condiciona- do evolucionária e culturalmente, o cérebro, no Plano semântico para além da mera sintaxe, possui a habilidade de interpretar com grande margem de liberdade, deturpar sentido e criar outros, até porque é incapaz de apenas retratar a realidade que vê ou a fala que ouve; conhecimento só pode ser entendido como habilidade de sujeito que interpreta, por mais que se queira reduzi-lo a obje- to, como ocorre em táticas instrucionistas predominantes na esco- la e na universidade; c) em particular em sua ligação com a aprendizagem, conhecimento é procedimento reconstrutivo e político, além de emocional (Becker, 2001; Demo, 2000b; 20024), e é a estratégia principal à 2 Na discussão sobre “inteligência artificial”, usa-se por vezes a noção de “meatware”, em analogia a “software”, ainda que os dois Processos sejam fundamentalmente diversos: o com- putador, como o temos hoje, é linear, Porque digital e algorítmico essencialmente, enguanto a cérebro, mesmo sendo fisiologicamente um pedaço de carne, é capaz de engendrar processos in- tensamente emergentes (Demo, 2002). Por exemplo, uma criança que brinca todos os dias com outras de língua diferente, em alguns meses, aprende a falar a língua estrangeira sem saber lógi- ca, estudar gramática e exercitar sistematicamente metodologias. Pode falar com inserção cul. tural admirável, compreendendo já duplos sentidos, gírias, idiomatismos ete. 28 d) e) disposição do ser humano para fazer história própria, individual e coletiva; pode-se entender história evolucionária e cultur al como processo de formação evolutiva da capacidade de conhecimento, pot meio da qual se produziu visível vantagem comparativa; apren- der significa, entre outras coisas, não estar submetido ao ponto de partida ao nascer, mas desdobrar horizontes próprios, construin- do oportunidades e autonomia, ainda que sempre de modo condi- cionado; as gerações também em algum sentido se reproduzem, mas em parte — e cada vez em maior parte — reconstroem-se; Como processo e procedimento reconstrutivo/ desconstrutivo, conheci- mento e aprendizagem são modos de intervenção na realidade, im- plicam a capacidade de negação e confronto do que aí está, pres- supõem a tessitura hermenêutica interpretativa da mente em ter- mos biológicos e culturais, não podem ser reduzidos a táticas instrucionistas (Edelman e Tononi, 2000); nossa visão da realidade é relativa no espaço e no tempo, e é im- praticável imaginar que possamos levantar marcas universais para todo o sempre; como afirma Habermas (1989; 1997; 1997a), ver dade é pretensão de validade, ou seja, por mais lógica que possa set e por mais que possa obter consenso, sua validade é transitória; verdades finais só podem ser propostas fora do conhecimento dito científico; a relatividade da realidade implica dupla referência: nela mesma, porque evolui; no pesquisador ou observador, que a vê biológica e culturalmente plantado; disso não precisa seguir o “relativismo”, sempre assacado contra posturas ditas pós-moder- nas, seja porque o relativismo é logicamente improcedente té con- traditório afirmar que tudo é relativo) e socialmente impraticável (a sociedade institucionaliza verdades historicamente relativas e nem por isso menos válidas em cada contexto); conhecimento científico é orientado metodologicamente e por isso centrado em estratégias de formalização da realidade e do discur- su; entretanto, o que é sua virtude também pode ser sua fraqueza: quanto mais formalizamos processos complexos, mais divisamos suas linearidades e menos sua complexidade; esta é a base episte- mológica mais forte para a discutibilidade como critério maior da demarcação científica, preferindo discursos bem argumentados e flexíveis àqueles que se imaginam evidentes e conclusivos (Demo, 2000, 20002); conhecer a realidade significa processo de aproxi- mações progressivas e sempre incompletas, também deturpantes, de tal sorte que não nos garantem chegar à realidade como tal, mas a interpretações mais ou menos bem argumentadas; as mais plau- síveis seriam as interpretações que suportam ser discutidas aber- 29 tamente, revisadas constantemente e superadas finalmente; a formalização metodológica não garante a certeza, mas manejo in- teligente e sempre escorregadio das incertezas; £) conhecimento científico desempenha-se melhor nas faces lineares da realidade, em que a formalização pode ser bastante precisa, como é o caso de nossas propostas e intervenções tecnológicas; a realidade possui também esta face: mesmo definida geralmente como turbilhão atômico e quântico, a realidade em parte apresen- ta-se como aparentemente parada, estática, linear, permitindo que a manipulemos de acordo com procedimentos lógicos e matemá- ticos; um prédio está sempre aí, por mais que sofra a corrosão do tempo e seja, no fundo, acervo astronômico de materiais e elemen- tos dinâmicos; para nossa conveniência e sorte, normalmente não sai do lugar, não resolve crescer ou diminuir, não se inclina e caí; temos aqui outro enigma: como realidade tão dinâmica e não Ii- near pode apresentar-se aparentemente estática, de tal sorte que a recorrência pareceria predominar sobre a marca caótica; para nossa sobrevivência, precisamos contar com realidade que se re- Pete, não apenas se transforma indefinidamente. Ademais, a complexidade, vista como tessitura da realidade ou do co- nhecimento, é ambígua e ambivalente. Ambigiiidade refere-se às estruturas, tramadas por componentes disparatados, cuja combinatória não é apenas lógi- ca, sequencial, algorítmica. Em linguagem menos antropomórfica, trata-se de “unidade de contrários”, ou de unitas multiplex. Significa reconhecer que o encaixe das partes não suprime graus de liberdade, por mais que estejam orien- tadas para a dinâmica do todo. Por outra, o todo não é apenas maior que a soma das partes, mas algo muito diferente, porque não foi composto só pela tecnologia linear, mas por processos evolucionários e históricos intensos e profundos. Ambivalência refere-se às dinâmicas processuais, nas quais convivem pólos con- trários, produzindo campos de força. Não se trata de “conflito”, como se fosse desajuste, mas de condição natural das dinâmicas não lineares. Tomando o exemplo da linguagem: manifesta estruturas ambíguas, no sentido de que às regras sempre se acrescentam exceções que, por vezes, podem parecer mais comuns que as regras; embora se assemelhem a tipo de matemática, as falas são plásticas e variáveis, o que não permite simplesmente transportar de uma língua para outra; manifesta dinâmicas ambivalentes, porque os sentidos semân- ticos admitem variabilidades surpreendentes e incontroláveis, que somente 0 contexto cultural poderia mais ou menos elucidar, sobretudo quando se trata de duplos sentidos, metáforas locais, atos falhos. Por mais que nos esforcemos por ser precisos na fala, nunca podemos garantir (i) que eu mesmo domine as estruturas implicadas, sobretudo no nível do inconsciente, e (ii) que os ouvin- tes me entendam assim como gostaria de ser entendido. Se agruparmos 20 30 pessoas em torno de mesa redonda e contarmos para a primeira pequena his- tória e esta para a segunda, até a vigésima, veremos que a história chegará bastante “deturpada”, pois é impossível sua reprodução linear. Na prática, não sabemos repassar histórias, mas interpretá-las. As traduções feitas em compu- tador, por serem lineares, justapõem sequencialmente palavras, sem perceber seu sentido, sobretudo seu contexto cultural. Falta o sentido complexo não li- near, o que também leva a reconhecer que todo tradutor é também, pelo me- nos um pouco, traidor. Se bastassem as linearidades sintáricas, seria suficiente carregar a memória do computador com todos os vocábulos e regras a cais, para que ele falasse a respectiva língua. Sabemos que não funciona. Falta a semântica hermenêutica de fundo cultural ambíguo e ambivalente. Posto isto, é preciso advertir que, ainda sendo a sociedade caos estru- turado, fenômeno de intensa complexidade dinâmica não linear, nosso cérebro e comportamento evolucionária e historicamente orientados movem-se na di- reção de padronizações da realidade, porque esta é nossa maneira mais comum de compreender as situações. Diante do desconhecido, nosso gesto instintivo é verificar o que haveria de familiar no cenário estranho, ou como poderíamos descobrir alguma ordem na desordem. Orientamo-nos pelas segiiências lógicas, talvez porque nos traduzem trangi lidade e confiabilidade. Como some tão expostos a riscos — sobretudo nos tempos primordiais da vida humana, evolucio- nariamente falando —, usamos nossa inteligência, em primeiro lugar, para so breviver e, possivelmente, apenas em segundo lugar para pensar. Assim carte com a criança: ainda não sabe lógica ou raciocina sistematicamente, mas apren- de a seu modo, biologicamente orientada. Aprende a falar e não sabe gramáti- ca, nem decora vocábulos. Disso pode decorrer que o modo lógico de ordenar a realidade é o preferido pela ciência, mas é tipicamente superficial, porque tende a destacar a face lincar. Mesmo assim, não cabe desprestigiar a ciência, porque seus resultados tecnológicos são no mínimo imponentes, por mais que sejam eticamente duvidosos. Na prática, o ser humano orienta-se pelas duas vias: domina mais facilmente o que consegue ordenar linearmente, mas compreen- de mais a fundo o que maneja não linearmente. A sociedade precisa de linearidade, para que a vida flua com trangitili- dade e confiabilidade, preferindo membros rotineiros a criativos, gente submissa a rebelde, cidadãos atrelados a contestadores. Esperamos que, em sociedade, todos assumam o comportamento considerado padrão, não porque existam padrões necessários, mas porque favorecem a manutenção da ordem dominante que é, obviamente, dos dominantes. Olhando bem, tendemos todo dia a repe- tir o mesmo dia e até consideramos bom caráter aquele que não muda. Nesse cenário, a sociedade é devotada à instrução de seus membros, no sentido reprodutivo. Mas a sociedade também precisa de não-linearidade, para que possa continuar sua história criativa, trazendo à baila a aprendizagem recons- trutiva política, por meio da qual seus membros alcançam fazer história pró- 31 preender lógicas onde aparentemente não haveria, pensar flexivelmente para dar conta de realidade flexível, decifrar o que é ambíguo e contraditório, orde- nar a importância de elementos embaralhados numa situação, encontrar simi- laridades ou diferenças onde parece não haver, reconstruir o conhecimento anterior e formular perspectivas inovadoras. 34 Sociologia Desafiada Sociologia tem história. Foi uma vez muito mais charmosa que hoje. Nos idos de 1960, sobretudo quando estudantes na Europa resolveram contestar a sociedade (“maio de Paris”, em 1968), sociologia trazia sinalizações utópicas e míticas visíveis, quase redentoras. Hoje, fala-se em “fim da história” e mesmo em “fim das utopias”, porque pareceria que o capitalismo liberal seria única história possível (Anderson, 1992; Lefort, 1995; Gorender, 1999: Ferreira, 1999). Tornou-se curso comum, além de sofrer visível refluxo, porque sempre teve dificuldades de profissionalização, e porque, tendo prometido demais, fi- cou devendo. Mas continua com imagem muito positiva de curso exigente em termos teóricos e metodológicos, focado sobre o que poderíamos chamar de “saber pensar” a sociedade, no plano analítico e no da intervenção. A cara de profeta do sociólogo está menos marcada, já que sofre concorrências de todos os lados, sobressaindo hoje a dimensão biológica, que se tornou igualmente essencial para entendermos as condições de nosso futuro como sociedade. Felizmente, quando falamos de “desenvolvimento sustentável”, fazemos de modo geral mescla interessante de sociologia e biologia, sinalizando que o olhar cultural não pode ser isolado do biológico, e vice-versa. Pretendo seguir essa via aqui, pelo menos até certa altura, sempre concedendo que nossa interpre- tação evolucionária é preliminar e tentativa. Não a reconstruífmos como profis- sionais, mas como estudiosos atentos. Sem apelar para pretensões proféticas muito criticadas (Bourdieu, Chamboredon e Pusseron, 2001:26), tento mostrar que a sociologia continua grávida de potencialidades críticas e alternativas. No plano da pesquisa, enve- 35 reda por sendas muito mais diversificadas e cotidianas, como intimidade e re- conhecimento, subjetividade e representações sociais, ambivalência da socie- dade e ciberespaço, esfera pública e utopias alternativas, metodologias quali- tativas pós-modernas (Avritzer e Domingues, 2000; Corcutff, 2001), para além das grandes narrativas clássicas, procurando fazer parte do “mundo da vida”. No plano da práxis, tem mantido a chama da alternativa acesa, em particular na disputa ferrenha com o neoliberalismo competitivo globalizado (Santos, 2002; 2002a), travada muitas vezes no contexto de movimentos sociais novos e promissores (Gohn, 2000; 2000a). Embora seja ainda comum a acusação de que o sociólogo desconversa sobre mudança, mantendo-se longe de a fazer ou querer fazer, parece mais claro que, hoje, postado rente ao chão (Henslin, 2002), o sociólogo tem melhor consciência tanto da relevância, quanto da dificuldade extrema de introduzir mudanças de profundidade. Tenta unir teoria e prática, para que o intelectual não se torne “vivaldino”, nem o vivaldino pretenso inte- lectual (Demo, 1982), segundo o lamento sentido de Ferreira (1999): não se- ria incomum que sociólogos militantes, depois da borrasca, apareçam facilmente integrados ao sistema antes combatido e em posições privilegiadas. Como anota 1 Lamentando o sumiço atual do pensamento crítico, Ferrcira afirma, referindo-se ao Brasil: “Em outros, como no Brasil, um grupo expressivo dos mesmos intelectuais, que milita- ram na resistência ao regime militar, organizaram-se num pequeno grupo tecnocrático de poder e aliaram-se aos parridos mais conservadores. Em todos os casos, a antojustificação no plano das idéias tem sido sempre a mesma: 0 progresso tecnológico desconstruiu o paradigma do trabalho e deixou o capital na condição exclusiva de vanguarda de uma modernidade desregulada e glo- bal. Como consegiiência, o progresso passou a scr sinônimo — coincidindo com a velha forma de Adam Smith — de rudo o que libere o movimento do capital. No mundo contemporâneo equivale a condenar ao conservadorismo todos os que defendem regras ou estruturas de solidariedade e proteção social, obra de um lento e doloroso processo de democratização que, segundo eles, trans- formou-se num entrave à realização de duas miragens rigorosamente 'metafísicas”: o equilíbrio fiscal e a competitividade global, a nova fórmula mágica do crescimento econômico e do bem- estar coletivo. Não é muito difícil, tampouco, identificar o caminho lógico que conduziu a parre mais ortodoxa da velha esquerda marxista às suas novas convicções neoliberais. Entre nós, pelo menos, salvo honrosas exceções, cla tem pouca densidade teórica própria. E, quando se conver- teu ao desenvolvimentismo, em nome do que nenhuma formação social desaparece antes que se desenvolvam todas as forças produtivas que cla contém, o fez pela mão ideológica do naciona- lismo isebiano ou pela mão teórica do estruturalismo cepalino, sem jamais aprofundar sua defe- sa do recurso à intervenção do Estado nem adequar sua visão do socialismo às condições da so- ciedade brasileira. Pelo contrário, aderiu a um produtivismo tão radical que sua defesa equipa- rau-se à do materialismo vulgar sem que sobrasse espaço para as questões da democracia e da igualdade. Av mesmo tempo, a quase permanente ilegalidade desta esquerda tradicional contri- buin para convertê-la a uma ética de sobrevivência que entornou seu raciocínio esrratégico na direção de um realismo que, paradoxalmente, conseguiu ficar, com o passar do tempo, cada vcz mais dogmática. A partir daí e na ausência da perspectiva socialista não foi difícil realinhavar as mesmas teses e as mesmas deduções aos novos tempos, só que agora em vez de ser a partir do Estado, a partir do mercado; em vez de ser em nome do capital puro e simples, a favor da desregulação; e, finalmente, em vez de ser em nome do socialismo futuro, em nome apenas de uma modernidade abstrata, Neste sentido, pode-se dizer que aqueles que um dia foram intelec- 36 tuais críticos e hoje estão sem rumo seguem tão ou mais utópicos do que antes, apenas trocaram de lado. Com uma diferença: agora, devido à sua posição de poder, difundem uma impressão de consenso que se auto-explica, na versão mais simplória, pela “queda do muro de Rerlim” e pelo suposto desaparecimento das diferenças entre a esquerda e a dircita; numa versão mais realista, como resultado da aceitação pragmática do único caminho deixado pelo mercado financeiro. E abordar estes remas tentamos direcionar a nossa análise para 0 legado da racionalidade moder na, em que a vida cotidiana, a reflexão, a ciência e a técnica se confundem e, muitas vezes, nos confundem a ponto de duvidarmos da herança iluminista que tanto pregamos. B. S. Santos co- menta que talvez seja inútil convocar as promessas da modernidade para abrir os caminhos de- mocráticos e emancipatórios da crise contemporânea deste final de século. Na verdade há uma crise simultânea dos processos de regulação social e de seu possível potencial cmancipador, in cluindo-se aí as formas consagradas de se conceber e pensar a sua tensão no interior das catego- rias da modernidade. À medida que a trajetória da modernidade se identificou com a trajetória do capitalismo, a regulação encapsulou seu lado emancipatório. Concretamente, isto quer dizer que as soluções de compromisso já experimentadas historicamente entre Estado, mercado e co- munidade — e suas correspondentes racionalidades do direito moderno, da ciência e técnicas modernas e das artes e literatura modernas - nos levaram invariavelmente a um oceano de irracionalidades acumuladas. Dele são testemunhas a degradação ambiental, o aumento da po- pulação, as disparidades e desigualdades entre centro e periferia, miséria c a fome que convi- vem com a abundância, as guerras étnicas e religiosas, a dependência do indivíduo em relação ao consumo mercantil, os modos selvagens de destituição dos direitos no mercado de trabalho — a lista é enorme, como sabemos... Reconhecer várias formas de conhecimento e as práticas que as sustentam para incorporá-las em uma relação horizontal não relativista, argumentativa, com outros conhecimentos constitui uma posição especial para este tipo de reflexão: é uma análise que se constrói temporalmente, que recusa o império da fra, gmentação c dispersão, que não subs- titui sem mais os objetos de reflexão sociológicos já consagrados, mas coloca-os num outro cam- po cpistemológico - o da contemporaneidade radical dos acontecimentos, Neste sentido as ciên- cias sociais, c especialmente a sociologia, são postas em foco exatamente pelo lado criativo, aberto, que está suposto na profusão de idéias de seu próprio mérodo investigativo e em seu profundo compromisso com o campo democrático contemporânco. Por isso, não pretendemos refletir so- bre novas teorizações da realidade nem sobre o abandono de sua busca. O que aprendemos é menos uma cartografia das questões contemporâncas do que a liberdade de viajante cujo olhar não tem medo de transgredir consensos teóricos para imaginar. num diálogo ousado, um mun- do mais democrático... Não tem ilusões sobre os processos de globalização — tanta políticos como econômicos — considerados complexos, diversificados e contraditórios. Não desqualifica a distinção entre estes pensamentos, ao contrário, valoriza-o, por esta dicotomia haver introduzido no de- bate contemporâneo o princípio de paridade, rompendo ima concepção horizontal da vida po- lítica. Impossível cortar o nó entre conservadores e progressistas pela violência, é preciso desatá- lo pela inteligência. Isto requer uma atitude crítica e o arquivamento de posições dogmáticas, º que significa, no plano das idéias, mediações a serem operadas por meio do método de aproxi- mações sucessivas. Habermas afirma que a razão e a verdade resultam da interação do indiví- duo com o mundo dos objetos, das pessoas e da vida interior. Por isso, a razão e a verdade só podem decorrer da organização social dos atores interagindo em situações dialógicas. A razão não tem, pois, sua sede no sujeito epistêmico. como o queria Kant, nem no ser antropológico, ao mesmo tempo pulsional e razoável, como imaginava Marcuse, mas sim na organização inter- subjetiva das falas. O que é razoável para os indivíduos « a sociedade brota, portanto, de um consenso, resultante da razão dialógica. O conceito de razão resulta naquilo que em um contex- to social, vivido c compartilhado por atores lingúisticamente competentes, pode ser elaborado como querido e aceito por todos. Nesta acepção, razão e verdade deixam de ser valores absolu- tos para sc transformarem em valores remporariamente válidos, de acordo com o veredito dos atores envolvidos na situação. Estes estabelecem consensualmente o processo pelo qual a verda- de e a razão podem ser conquistadas em um contexto válido” (1999:8 10) 37