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Tipologia: Resumos
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Sobre Intérpretes do Brasil Carlos Guilherme Mota
Nesta obra, organizada pelos historiadores Luiz Bernardo Pericás e Lincoln Secco, reúnem-se estudos e ensaios sobre alguns dos principais intérpretes da história e da cultura no Brasil, escritos por reconhecidos especialistas acadêmicos. O leitor poderá notar que os organizadores, tanto na seleção dos autores quanto na dos comentaristas críticos, fugiram bastante das linhas de publicações que vêm se dedicando ao estudo dos “explicadores” deste País. Nada obstante, consideram relevantes, é claro, a contribuição decisiva de escritores e pensadores já clássicos, como Gilberto Freyre, Sérgio Buarque, Florestan Fernandes, Celso Furtado e Antonio Candido, responsáveis por obras seminais e aqui revisitados em abordagens inovadoras. A novidade desta publicação é que os coordenadores trouxeram para o centro do debate figuras que estavam um tanto à sombra, como, a despeito de seu papel histórico, o venerando Astrojildo Pereira, ou o crítico da Conciliação José Honório Rodrigues (neste ano, aliás, comemora-se o centenário de seu nascimento), Heitor Ferreira Lima, Octávio Brandão, Luís da Câmara Cascudo, Leôncio Basbaum e os inquietos Mário Pedrosa e Darcy Ribeiro, além de Everardo Dias, Rômulo Almeida, Nelson Werneck Sodré e Rui Facó. Também são contemplado autores mais “novos” e menos compendiados, como os heterodoxos e brilhantes Maurício Tragtenberg (“no Brasil não há cidadãos, mas súditos-contribuintes”, ironizava), Jacob Gorender, Ruy Mauro Marini e Milton Santos (que alertava: “não se deve confundir a moda com o modo”), o laborioso Edgard Carone e ainda personalidades da importância histórica de Paulo Freire e Ignácio Rangel. Verifica-se nesta obra uma significativa abertura de foco dos estudos sobre o pensamento brasileiro, não apenas em termos geracionais como também na variedade de visões teóricas e abordagens pronunciadamente ideológicas. Câmara Cascudo e Werneck Sodré não estão, é evidente, na mesma chave ideológico-cultural, assim como Rômulo Almeida e Maurício Tragtenberg produziram ensaios em diferentes searas. Sabe-se que cada geração analisa e “redescobre” o Brasil, interpretando o processo de nossa formação dentro das condições e debates de sua época. Poucos vão além. É necessário lembrar, entretanto, que desde o século XIX já assistimos a diversas tentativas de interpretação de nossos caminhos enquanto sociedade e cultura, considerando inclusive as conjunturas político-ideológicas específicas em que surgiram – claro que anacronismos sempre existiram, mas as dificuldades em se “pensar o pensamento”, como alertara Machado de Assis, estiveram presentes em todas as tentativas, até hoje. E que Mário de Andrade sempre se inquietou com a dificuldade em saber o que somos e valemos enquanto povo… Esta obra, portanto, vem ampliar de modo crítico e significativo os horizontes e o debate histórico-historiográfico nesta quadra difícil de nossa história, tão marcada por ambiguidades, desacertos e, já agora, também por profundas revisões para uma retomada rumo a um futuro melhor.
Esta coleção de ensaios representa um guia fundamental para o entendimento dos mais influentes pensadores brasileiros do século XX. Constitui também um manual básico para os estudos de história intelectual e da história moderna do Brasil. Herbert S. Klein, Universidade Columbia e Universidade Stanford
Apresentação
Octávio Brandão João Quartim de Moraes
Heitor Ferreira Lima Marcos Del Roio
Astrojildo Pereira Antonio Carlos Mazzeo
Leôncio Basbaum Angélica Lovatto
Nelson Werneck Sodré Paulo Ribeiro da Cunha
Ignácio Rangel Ricardo Bielschowsky
Rui Facó Milton Pinheiro
Everardo Dias Marcelo Ridenti
Sérgio Buarque de Holanda Thiago Lima Nicodemo
Gilberto Freyre Mario Helio Gomes de Lima
Câmara Cascudo Marcos Silva
José Honório Rodrigues Paulo Alves Junior
Caio Prado Júnior
Luiz Bernardo Pericás • Maria Célia Wider
Edgard Carone Marisa Midori Deaecto • Lincoln Secco
Florestan Fernandes Haroldo Ceravolo Sereza
Ruy Mauro Marini Guillermo Almeyra
Jacob Gorender Mário Maestri
Antonio Candido Flávio Aguiar
Celso Furtado Carlos Mallorquín
Rômulo Almeida Alexandre de Freitas Barbosa
Darcy Ribeiro Agnaldo dos Santos • Isa Grinspum Ferraz
Mário Pedrosa Everaldo de Oliveira Andrade
Maurício Tragtenberg Paulo Douglas Barsotti
Paulo Freire Ângela Antunes
Milton Santos Fabio Betioli Contel
Os autores
mundo acadêmico. Algo parecido pode ser dito de um scholar de grande importância, José Honório Rodrigues, um desbravador nos estudos acerca das relações e dos vínculos etnico culturais entre Brasil e África que produziu uma sólida e extensa análise da independência em cinco volumes (além de uma vasta bibliografia sobre temas diversos, que iam da teoria e metodologia a obras de referência e edições de textos), assim como Edgard Carone, expoente da história documental da república. Até mesmo Nelson Werneck Sodré, um dos maiores intelectuais da esquerda brasileira do século XX e autor de uma obra historiográfica monumental, é muitas vezes relegado a um posto secundário na academia. Ruy Mauro Marini, por sua vez, tem sido cada vez mais lido e discutido, particularmente de alguns anos para cá, e seu legado teórico ganha lentamente uma posição de destaque, em especial entre os movimentos sociais e partidos progressistas Alguns dos nomes escolhidos para figurar nesta coletânea tiveram certa acolhida e receptividade por parte do establishment , ainda que com restrições. Contudo, mesmo que tenham recebido a devida deferência, geram polêmica até hoje. Vários desses intelectuais atuaram fora da academia e, em alguns casos, eram militantes, como Caio Prado Júnior e Jacob Gorender, ainda que suas vozes tenham sido ouvidas por um número maior de pessoas e suas teses, recebido maior atenção da intelectualidade nacional do que a de membros do PCB da primeira geração. Há também casos como o de Maurício Tragtenberg, que apesar de ser professor universitário sempre foi um outsider , um “radical” para a maioria de seus colegas. Assim como Mário Pedrosa, que, mesmo sendo ligado a um círculo de artistas e literatos de renome, atuou tanto em organizações políticas de esquerda como na grande imprensa, e se aprofundou em temas tão variados como arquitetura e pintura. Todos eles, de qualquer forma, nunca descolaram seus trabalhos do mundo em que viviam e tinham em seus estudos o objetivo de entender a realidade para mudá-la. Muitos chegaram a sacrificar a vida pessoal e profissional para pôr em prática suas ideias. Equivocados ou não, o fato é que a compreensão do processo histórico e da dinâmica de luta de classes, no campo ou na cidade, nunca foi um fim em si mesmo, mas uma ferramenta necessária para que pudessem avaliar corretamente o painel social do Brasil de sua época para, então, nele intervir. Por fim, agregam-se aqui alguns autores considerados “clássicos” pelo establishment acadêmico. Em verdade, todos os que figuram nesta obra poderiam, de certa forma, ser classificados assim. Nesse caso, designamos os “consagrados”, ou seja, aqueles “intérpretes” plenamente incorporados ao pensamento nacional, que são constantemente citados e discutidos no país e já têm seus nomes consolidados no debate dentro das universidades. São, bem ou mal, autores de teorias e interpretações vistas como basilares e influentes nos pensamentos político, econômico e historiográfico do Brasil. Alguns desses homens transitaram entre os postos na administração pública e no ensino superior e, por vezes, tentaram aplicar na prática (mesmo que a partir de um cargo burocrático no Estado ou em instituições internacionais) o resultado de seus estudos para também interferir na realidade em que viviam. Celso Furtado, Darcy Ribeiro, Milton Santos, Sérgio Buarque de Holanda, Gilberto Freyre, Câmara Cascudo, Florestan Fernandes, Ignácio Rangel e Paulo Freire são apenas alguns deles. Já Rômulo Almeida é quase um desconhecido e, aqui, ganha o espaço necessário para que seja resgatado pelas novas gerações. Isso sem falar de Antonio Candido, ainda em atividade. Como toda coletânea, esta também será incompleta. Afinal, sempre faltarão nomes que, de uma forma ou de outra, deram contribuições para se conhecer e “mudar” o Brasil. Em todas as décadas do século passado surgiram estudiosos que se debruçaram sobre a realidade brasileira, e nem todos estão representados neste volume. De qualquer modo, os autores escolhidos certamente compõem um panorama bastante rico e amplo dos pensamentos social e historiográfico nacional da década de 1920 até o começo dos anos 1990, alguns dos quais foram muito pouco discutidos em outras obras do gênero. Acreditamos que este livro é um aporte importante sobre vários intelectuais emblemáticos e suas teorias. Para isso, pudemos contar com a generosa colaboração de diversos estudiosos que se dispuseram a escrever sobre os pensadores e “intérpretes” do Brasil. A eles o nosso agradecimento.
Os organizadores
e o pai quando tinha quinze. No longo e precioso depoimento sobre sua vida, feito para o Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea do Brasil (CPDOC)[1], ele explicou que Viçosa era uma “cidade muito pequeno-burguesa, cercada de latifúndios [e] engenhos de açúcar”, e o pai, um “prático de farmácia”, era “democrata, progressista, um homem de ideias muito avançadas para a época”. Mas o traço do pai que ele mais reteve foi a coragem moral. Ao menos, é o aspecto que ele enfatiza ao contar um episódio provocado pela boataria que acompanhou, nas regiões mais distantes da capital, a notícia de que a república tinha sido proclamada:
Não havia telégrafo; não havia estrada de ferro. Então, os pequeno-burgueses urbanos reuniram-se na Câmara Municipal e proclamaram sua adesão à república. Bom; até aí, nada demais. Na hora dos triunfadores, sempre aparecem os oportunistas. O diabo é que Viçosa ficava longe, no interior, e um dia chegou a notícia: d. Pedro II recompôs a monarquia. E todos começaram a dizer: “Estamos perdidos, vamos ser enforcados, porque fizemos um documento público”. [...] Foram a meu pai para ele retirar a assinatura. Estava lá: Manuel Correia de Melo Rego. Mas meu pai respondeu: “Não; eu coloquei a assinatura; agora, acabou-se. Prefiro ser enforcado a retirar a assinatura. Então ele deu coragem aos outros pequeno-burgueses e ficou o dito pelo não dito”.
Da mãe, sobraram-lhe poucas imagens conscientes. A mais viva, e por uma cruel mas não rara ironia, é a de sua morte. A caminhada ao cemitério ficou gravada na memória do menino ainda mal entrado na vida. Quando cresceu, foi atrás da imagem que a mãe deixou em suas amigas: “Chegava num lugar e perguntava: ‘A senhora conheceu dona Maroquinha, da Farmácia Popular, rua do Juazeiro?’ Ela dizia: ‘Ah, eu conheci’. E eu perguntava: ‘Como era dona Maroquinha?’ Ela respondia: ‘Era uma maravilha de mulher’. Para as amigas ficou aquela recordação.” Em 1912, estudou farmácia por três anos em Recife. O interesse pelas ciências naturais (teoria e prática, como ele salienta) levava-o pelos “arredores de Recife para estudar botânica, mineralogia, geologia”. Lia o que encontrava da “literatura universal” e conheceu “os hindus, o Rig-Veda , que é o mais bonito dos quatro Vedas”. Leu também o Sa Kuntale [2], do qual “eu guardo esse exemplar”, conforme disse na entrevista realizada em 1977 ao CPDOC. “Eu admirei muito os hindus”, acrescenta, mas “fui procurando os materialistas, aqui, ali e acolá”. Não tardou muito a achá-los. Seu nunca desmentido amor à natureza, inseparável para ele do amor à humanidade e ao conhecimento científico, levou- o – mais de meio século antes de a ecologia se tornar moda e assegurar prestígio cultural aos amigos da natureza, sinceros ou pretensos – a percorrer numa canoa as lagoas Mundaú e Manguaba, além dos muitos canais que recortam sua terra. Também o encantava a beleza do rio Paraíba, “no meio dos pedregais”, dos canaviais e das matas:
Uma coisa raríssima na história do Brasil a gente encontrar matas virgens. Uma dessas, subindo a serra Dois Irmãos, atravessei com um grupo de amigos: seis horas subindo e abrindo caminho com um facão, porque de outra forma não era possível dar um passo – aquele entrelaçamento de cipós, da base até lá em cima, eram matas virgens. Agora estive em Itatiaia e vi lá matas bonitas, mas os paus são finos, quer dizer, são recentes, e a mata não é virgem.
Dessa apaixonada, mas lúcida, intimidade com a terra, a água e a mata, em que a sensibilidade poética e a curiosidade científica reforçavam-se reciprocamente, resultou o seu primeiro livro, Canais e lagoas. Não foi sua estreia literária: mal saído da adolescência, Brandão vinha compondo artigos para o Semana Social , um modesto jornal de Maceió produzido por
movimento operário e passaram ao comunismo no entusiasmo suscitado pela Revolução de Outubro. Foi nomeadamente o caso de Astrojildo Pereira, o principal organizador do primeiro núcleo dirigente do PCB. O predomínio do positivismo nos meios intelectuais progressistas também contribuiu para essa inversão. Pouquíssimos deles tinham alguma noção do marxismo. Foi graças às traduções francesas emprestadas por Astrojildo que Brandão teve seu primeiro contato com as ideias de Karl Marx[5]^ e aceitou, ainda em 1922, o convite para ingressar no partido recém-fundado. Decisão coerente com o balanço negativo de sua militância anarquista, mas com certeza também estimulada pelo imenso impacto da revolução bolchevista. Dois anos depois, em 28 de julho de 1924, no mesmo momento em que se desenrolava em São Paulo o segundo levante tenentista, prelúdio da Coluna Prestes, Brandão, escondido da polícia de Artur Bernardes, iniciou a redação de Agrarismo e industrialismo , “ensaio marxista-leninista sobre a revolta de São Paulo e a guerra de classes no Brasil”, como anuncia o subtítulo[6]. Nas precárias condições da clandestinidade, ele concluiu “a parte fundamental” do livro menos de um mês depois. Esse texto, ainda incompleto, circulou em cópias datilografadas, servindo de subsídio para as teses que Astrojildo Pereira apresentou no II Congresso do PCB (de 16 a 18 de maio de 1925). Trata-se da primeira tentativa de analisar a sociedade brasileira à luz do marxismo. O livro, publicado em abril de 1926, sob o pseudônimo de Fritz Mayer e com indicação falsa do
lugar de edição (Buenos Aires) para despistar a polícia política de Artur Bernardes [7], acompanha desde a origem as vicissitudes da trajetória de Brandão. No título, está expressa sua tese principal: a de que a contradição entre interesses agrários e industriais constituía o fator determinante dos confrontos políticos e da guerra civil larvada que convulsionavam o Brasil. Nela se baseava a aliança da classe operária com a pequena-burguesia democrática na luta contra a “oligarquia agrária entrançada com a oligarquia financeira”[8]. São notáveis também suas observações sobre o imperialismo e a subordinação econômica dos interesses agrários à alta finança inglesa, bem como sobre as perspectivas sombrias que reservava ao povo a posição brasileira de monoexportadores de café. Quantos economistas e outros tagarelas neoliberais, que falaram sobre as virtudes da privatização e do mercado, foram capazes de prever a crise de 2008 com lucidez remotamente comparável à do jovem comunista escondido da polícia de Artur Bernardes que previu com cinco anos de antecedência o colapso da monocultura de exportação do café e suas consequências políticas internas? Hoover, secretário do Comércio, agente do imperialismo norte-americano, faz campanha contra o café brasileiro e preconiza até o boicote. Enquanto isso, os bancos ingleses emprestam dinheiro à Brazilian Coffee e ao Instituto de Defesa Permanente do Café. Como, porém, a América do Norte é o maior consumidor do café brasileiro, desenha-se no horizonte uma grave crise cafeeira. [...] A dominação econômica e política do fazendeiro do café irá por água abaixo e, o que é mais sério, o país debater-se-á numa crise horrível.[9] Já nos referimos à novidade, naquele momento, da expressão “marxista-leninista”, que ainda não fazia parte do vocabulário do Comintern[10]. Brandão antecipou-se a uma inovação ideológica que refletia o imenso impacto da revolução socialista russa e o reconhecimento da decisiva importância de Lenin, seu principal dirigente. Agrarismo e industrialismo exerceu, nos anos seguintes, forte influência não somente entre os comunistas, como também entre os positivistas de esquerda que o leram e o discutiram. Nessa influência, inclui-se a aliança com a pequena-burguesia democrática, da qual o tenentismo era a expressão mais radical, mas essa aliança era compreendida na perspectiva dos interesses da classe operária. Tanto que, decidido a participar das eleições de janeiro de 1927, o PCB articulou um bloco operário, que foi ampliado, na perspectiva das eleições de 1928, para se tornar Bloco Operário e Camponês (BOC). O BOC lançou no Rio de Janeiro as candidaturas de Brandão e do operário negro Minervino de Oliveira para vereadores (“intendentes”, como se dizia então). Eleitos, ambos honraram os mandatos recebidos, tanto que seus discursos na Câmara passaram a ser censurados por fazerem propaganda comunista. Entretanto, a pressão combinada do esquerdismo obreirista no interior do PCB e da linha dita “classe contra classe”, adotada pelo Comintern e aplicada por seu Secretariado Sul-Americano (SSA/IC), minou as posições do grupo dirigente, acusado de subordinar os interesses do proletariado à pequena-burguesia (entenda-se, o tenentismo revolucionário) e de diluir o Partido Comunista no interior do BOC. Brandão e Astrojildo Pereira, principais expoentes das ideias rejeitadas, foram acusados de desvio direitista e marginalizados. A essa situação adversa no interior do partido acrescentaram-se para Brandão as consequências da retomada, pelo governo provisório de Getúlio Vargas, da repressão anticomunista que a república dos fazendeiros tinha movido até seus estertores. Preso e em seguida expulso do Brasil, em 1931, partiu para um longo exílio na antiga União Soviética, do qual só retornaria após o aniquilamento do nazifascismo.
Quase três décadas depois, no artigo “Uma etapa da história de lutas”, publicado na Imprensa Popular de 21 de janeiro de 1957, Brandão assumiu o que considerava parte de sua responsabilidade pelos desvios direitistas que teriam caracterizado a linha do PCB entre 1924 e 1928:
O nosso PC não conseguiu compreender o caráter da revolução, suas etapas e forças motrizes. SUBESTIMOU a importância dos camponeses. SUPERESTIMOU o revolucionarismo pequeno-burguês em geral e, em particular, a significação dos revoltosos pequeno-burgueses de Copacabana, São Paulo e da Coluna Prestes. Colocou à frente o Bloco Operário e Camponês, e não o próprio PC. O autor destas linhas é um dos responsáveis por esses erros. As raízes deles estão na obra Agrarismo e Industrialismo.
Mais adiante, acrescenta:
Durante trinta anos nenhum comunista fez a análise da obra. O reacionário Jackson de Figueiredo publicou um artigo sobre ela, manifestando o pavor de que, no Brasil, depois desses ensaios teóricos, viesse um ensaio prático, revolucionário, comunista. Em 1930-1931, os trotskistas, em seu jornal, atacaram-na violentamente e consideraram-na um amontoado de erros e absurdos. Fiz a autocrítica muitas vezes: em 1930-1935, em 1938, em dezembro de 1954 e outras ocasiões. Hoje, faço a autocrítica, mais uma vez. Cumpro, assim, um dever para com o PC, a classe operária e o povo brasileiro. A obra Agrarismo e industrialismo é um ensaio sobre o Brasil em geral e o imperialismo em particular, sobre a luta das classes e as insurreições armadas de Copacabana em 1922 e São Paulo em 1924. Apresenta uma série de falhas. Tem desvios materialistas mecânicos, de caráter político, filosófico e ideológico geral.
Mais do que difícil, é sempre doloroso para um comunista ir contra o consenso partidário. Se apenas registra as críticas da direita católica e dos trotskistas (seria espantoso se o elogiassem), enfatiza as sucessivas autocríticas em que reconheceu (em parte, indevidamente) a validade daquelas provindas de seus camaradas. Sem dúvida, há no livro defeitos que saltam aos olhos. É evidente, em particular, que o entusiasmo pela descoberta da “dialética marxista” levou-o a aplicá-la ingenuamente à periodização da história do proletariado brasileiro, amoldando a luta operária de maneira a fazê-la caber na famosa tríade dialética hegeliana: a “tese” abrangeria as três primeiras etapas, da proclamação da república à presidência de Epitácio, em que se verificou a “ascensão (do proletariado) sob a influência do anarquismo”; a “antítese”, que iria até a sexta etapa, caracterizou-se pelas “perseguições epitacistas e consequente desorganização até a fundação do Grupo Comunista do Rio”; e,
enfim, a “síntese ou negação da negação” teria começado com a fundação do PCB[11]:
Traços característicos da etapa Período Significação da etapa no processo histórico I – — 15/11/1889 a agosto de 1914 “preparação ou gestação” II – “da conflagração à Revolução Russa” agosto de 1914 a 7/11/1917 “eclosão ou desabrolhamento” III – “presidência Epitácio” fim de 1917 a meados de 1919 “culminância, apogeu” IV – “morte de A Voz do Povo” fim de 1919 a fim de 1920 “crepúsculo” V – — fim de 1920 a 6/11/1921 “vazante completa” VI – “fundação do Grupo Comunista do Rio” 7/11/1921 a 24/3/1922 “reagrupamento de forças” VII – “fundação do PCB” 25/3/1922 a 30/4/1925 “preparação das forças para as novas batalhas” VIII – “aurora de A Classe Operária ”, o semanário do PCB do qual foram publicados doze números; foi fechado pela polícia de Artur Bernardes, que governava por meio do estado de sítio desde julho de 1924
de 1/5/1925 a julho de 1925 —
Insistir na artificialidade dessa “dialética” seria arrombar uma porta aberta, mas, diferentemente do que sugeriram críticas preconceituosas, quando não francamente debochadas[12], essas e outras fantasias intelectuais do livro são menos importantes do que suas qualidades, que já apontamos. Algumas delas, porém, foram rejeitadas pelo próprio Brandão, cujo honroso afã de cumprir “um dever para com o PC, a classe operária e o povo brasileiro” levou-o a exagerar muito as falhas de seu livro. Consideremos aquela que ele aponta como decisiva: ter subestimado a importância dos camponeses e superestimado o “revolucionarismo pequeno-burguês”. Pensamos, ao contrário, que no contexto histórico dos anos 1920 a contradição principal era opor-se às forças sociais empenhadas em libertar a nação do jugo dos fazendeiros do café, de seus associados locais e, por trás deles, do imperialismo inglês e estadunidense, exatamente como sustenta Agrarismo e industrialismo. Pode-
desenvolver nova atividade. Fez viagens a Berlim. Reivindicou diretamente à Gestapo que lhe entregasse a neta.
A principal iniciativa que tomou em Paris foi solicitar uma reunião do Socorro Vermelho Internacional, na qual propôs desencadear uma grande campanha para que Anita fosse entregue à avó. Delegações e mensagens de personalidades inglesas e belgas deveriam levar a Berlim a mesma reivindicação. A Gestapo, explica, não receberia delegações francesas nem espanholas, mas não poderia recusar delegações inglesas e belgas. Hitler, naquele momento, queria “neutralizar” a Inglaterra, enganar e adormecer os belgas até a hora da invasão. L’Humanité , La Correspondance Internationale , Rundschau e outras publicações difundiram pela Europa a infâmia dos hitlerianos, que mantinham na prisão uma brasileira recém-nascida.
Um cartaz enorme foi afixado nas ruas de Paris. Choveram os telegramas e as mensagens a Berlim. Delegações de personalidades inglesas e belgas foram à Gestapo. [...] Tantos esforços de tantas organizações, personalidades e publicações, foram coroados de um triunfo magnífico. Em Berlim, a Gestapo teve de entregar Anita Prestes à avó. Vitória excepcional.[18]
A vitória poderia ter sido ainda mais excepcional se o esforço para também libertar Olga Benário não tivesse sido solertemente torpedeado por Fernando Lacerda. Acusação muito grave que consta do relato de Brandão. “Cheio de esperanças e entusiasmos”, Brandão voltou a Moscou no dia 29 de agosto de 1937 (“uma alegria para Laura, as crianças e para mim”). Trazia uma incumbência, que assumira perante dona Leocádia Prestes: solicitar à Internacional Comunista que intercedesse junto ao governo soviético para que este concedesse a naturalização de Olga, o que permitiria negociar com o governo alemão a libertação de uma cidadã soviética. Esse recurso já havia sido utilizado em 1934 para a libertação do comunista búlgaro Georges Dimitrov. Mas em Moscou,
Fernando Lacerda continuava como “representante” do PCB. Esperava que eu fracassasse em Paris. Ficou com raiva e ainda mais hostil quando a luta foi coroada de vitória, com a libertação de Anita. Opôs-se categoricamente ao meu pedido relativo a Olga Benário. Alegou que se tratava de uma “provocação” de Brandão para agravar ainda mais as relações entre a União Soviética e a Alemanha nazista. Fernando fez tudo isso à socapa. Só vim a saber dessa trama 17 anos depois, quando ele foi interrogado no Brasil pela direção do PCB. Ignorando a trama, insisti tenazmente no meu pedido a favor de Olga Benário. Nada consegui. Veio a agressão da Alemanha hitleriana à União Soviética, em 1941. A Gestapo aproveitou a guerra e matou Olga. Portanto, o “representante” do PCB, Fernando Lacerda, auxiliou de fato a Gestapo a assassinar Olga.[19]
A conclusão pode parecer exagerada, mas a veracidade do relato parece-nos indubitável. Não apenas porque não há como, de boa-fé, pôr em dúvida a honradez de Brandão, mas também porque o pretexto ou argumento de Fernando Lacerda, embora mal-intencionado, não era descabido. Para a União Soviética, o tempo era um fator mais estratégico do que para a Alemanha. O êxito dos planos quinquenais foi enorme, mas não se podiam anular em poucos anos as colossais diferenças de desenvolvimento industrial entre os dois países. Por isso, sabendo ser inevitável o confronto com os nazistas, os soviéticos procuraram postergá-lo tanto quanto puderam. Donde a solércia da intriga de Lacerda: acusar Brandão de pôr em risco a segurança da União Soviética com sua campanha pela libertação de Olga Benário. Entre os muitos outros combates de Brandão após sua volta ao Brasil em 1946, vale registrar aqui sua candidatura a vereador do Rio de Janeiro. Em janeiro de 1947, foi novamente eleito, mas seu mandato, como o de todos os eleitos do PCB, foi confiscado pelo golpe judiciário do mesmo ano. A justiça histórica é lenta como a dos tribunais, mas falha menos. Pouco a pouco, a partir notadamente do início dos anos 1970, com os livros de Edgard Carone sobre a República Velha e com o de J. F. Dulles sobre anarquistas e comunistas[20], Agrarismo e industrialismo foi ocupando o lugar que merecia no pensamento marxista brasileiro. Nos anos 1980, ficou disponível aos pesquisadores a documentação doada por Dionysa Brandão, filha de Octávio, ao Arquivo Edgard Leuenroth do IFCH/Unicamp e reunida no Acervo Octávio Brandão. Naquela década, Michel Zaidan Filho salientou devidamente, nos estudos que consagrou aos primeiros teóricos do PCB, a importância da intervenção teórica de Brandão entre 1924 e 1928[21]. Vários capítulos de História do marxismo no Brasil (cuja publicação foi iniciada em 1991), distribuídos em três volumes, de quatro autores diferentes (Evaristo de Moraes Filho, Marcos Del Roio, Ângelo José da Silva e João Quartim de Moraes), analisam aspectos diversos de sua obra fundadora. Estudos posteriores, nomeadamente os de Paulo Ribeiro da Cunha[22]^ e de Marcos Del Roio[23], também põem em evidência a contribuição de Brandão para a compreensão marxista da sociedade brasileira. Mais recentemente, no mesmo espírito, Augusto Buonicore publicou no jornal eletrônico Vermelho vários artigos em que ressalta aspectos importantes da contribuição intelectual e política de Brandão ao Brasil e ao socialismo.
[1] As passagens entre aspas, salvo indicação em contrário, foram extraídas de Octávio Brandão (depoimento, 1977), Rio de Janeiro, CPDOC, 1993. [2] A grafia da transcrição feita pelo CPDOC não é correta. Shakuntala (e não Sa Kuntale ), que significa “criada pelos pássaros”, é a forte figura feminina que intitula um célebre drama de um dos maiores poetas indianos, Kalidasa (e não Kalidaga, como está no depoimento), que viveu provavelmente no século V. [3] “[...] há um pensamento de Lenin [...], dizendo que, no meio daquela confusão dos anarquistas, havia algo de puro, algo de nobre, que iria se desenvolver. Eles queriam fazer greve, lutavam por aumento de salário, pelo dia de oito horas, por liberdades sindicais, contra o governo. Por exemplo, a greve da Leopoldina, as greves gerais em todo este Brasil eram dirigidas pelos anarcossindicalistas, que não eram corruptos. Havia os amarelos, que recebiam dinheiro da polícia. Eles, não. Imagine: passavam fome, miséria, desemprego, porque havia aquelas listas negras. Alguém, por exemplo, deixava o sindicato, não era mais presidente, nada, e ia procurar trabalho. Ora, havia a lista negra. Eu conheci um desses... Chamava-se Guilhermino Leite. Ele [...] andou aqui, em Petrópolis, São Paulo, procurando trabalho como tecelão e não conseguiu. Ele estava na lista negra, porque participou da insurreição de Magé. Depois, foi ser motorista.” Em 1918, explica em seguida, as lutas operárias do Rio de Janeiro repercutiram fortemente; os tecelões de Magé dominaram a cidade “durante dois ou três dias e, no fim, não sabiam o que fazer”. No Rio, “o movimento já tinha fracassado, porque Oiticica levou um tenente do exército, o Ajus, um judas, que prometeu que faria coisas extraordinárias lá no exército e era um traidor. Denunciou tudo à polícia. Quando estavam reunidos os dirigentes – Oiticica, Astrojildo Pereira –, chegou a polícia e prendeu todos. Lá se foi. Houve greves em Bangu. Foi um movimento importante. O proletariado foi para o Campo de São Cristóvão com bombas na mão, jogando bombas nos soldados”. [4] Usamos o termo no sentido que lhe conferiram os bolcheviques, por iniciativa de Lenin. A ruptura com a social-democracia tornou necessário um novo nome, que correspondesse às perspectivas internacionais abertas pela Revolução de Outubro. [5] Ver João Quartim de Moraes, “A influência do leninismo de Stalin no comunismo brasileiro”, capítulo III de História do marxismo no Brasil , v. 1, O impacto das revoluções (3. ed. rev., Campinas, Editora da Unicamp, 2007), p. 138. [6] A data é referida pelo próprio Brandão em Combates e batalhas (São Paulo, Alfa-Omega, 1978), p. 284. [7] Embora tenha entrevistado Brandão, John W. Foster Dulles afirma, equivocadamente, em Anarquistas e comunistas no Brasil (Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1977), p. 222, que a obra “foi completada em 22 de agosto de 1924”. Levando em conta a má qualidade média das traduções brasileiras, tivemos o cuidado de verificar o original em inglês ( Anarchists and Communists in Brazil , Austin/Londres, University of Texas Press, 1973), constatando que, dessa vez, ao menos, o problema estava no original: segundo o brasilianista norte-americano, Agrarismo e industrialismo “foi realizado em 22 de agosto de 1924” (ibidem, p. 269-70). Basta, entretanto, ler o texto com um mínimo de atenção para constatar que Brandão evoca fatos posteriores àquela data, por exemplo, o 1º de maio de 1925, “aurora de A Classe Operária ”, “primeiro e único órgão da classe operária do Brasil” (O. Brandão, Agrarismo e industrialismo , 2. ed., São Paulo, Anita Garibaldi, 2006, p. 119). É evidente, pois, que acréscimos importantes foram introduzidos no texto durante a longa espera de sua publicação. No artigo “Uma etapa da história de lutas”, Imprensa Popular , 21 jan. 1957, que comentamos mais adiante, Brandão dirimiu qualquer dúvida a esse respeito: “Na vida clandestina, no ambiente de repressão da polícia do marechal Fontoura, comecei a escrever Agrarismo e industrialismo a 28 de julho de 1924, na hora da derrota dos revoltosos pequeno-burgueses, quando eles começaram a evacuar a cidade de São Paulo, enquanto no Rio de Janeiro o ambiente era de desânimo. Terminei a obra, no fundamental, menos de um mês depois, a 22 de agosto de 1924. Tirei cópias à máquina e tratei de divulgá-la imediatamente. Escrevi o penúltimo capítulo em 1925, e o último, em 1926. Publiquei-o sob o estado de sítio, em 1926, com o pseudônimo de Fritz Mayer. O livro foi lido por operários, intelectuais e revoltosos pequeno-burgueses – civis e militares”. [8] Octávio Brandão, Agrarismo e industrialismo , cit., p. 40. Vale ressaltar que da edição clandestina de 1926 sobraram raríssimos exemplares, acessíveis somente a pesquisadores. Donde o interesse dessa nova edição, preparada por J. C. Ruy, Augusto Buonicore, Marisa Brandão, entre outros. [9] Ibidem, p. 184. Citado pelo próprio Brandão em Combates e batalhas , p. 294. [10] João Quartim de Moraes, História do marxismo no Brasil , cit., p. 140-1. [11] Octávio Brandão, Agrarismo e industrialismo , cit., p. 118-20. [12] Em “A evolução da consciência política dos marxistas brasileiros”, capítulo II de História do marxismo no Brasil : teorias, interpretações (Campinas, Editora da Unicamp, 1995), v. 2, p. 96-7, comentamos na nota 12 a zombaria fácil de Leandro Konder a respeito dos “ativistas revolucionários [...] que começavam a dar sinais de que estavam atacados pela mania de ser Lenin”; Brandão, em particular, teria sido, segundo o festejado marxólogo guanabarino, “um Lenin que não deu certo”. Ponderamos, em síntese, que cada qual se define moralmente pelo que considera “dar certo”. No “sonho americano”, por exemplo, dar certo é ficar mais rico do que o vizinho. [13] Octávio Brandão, Agrarismo e industrialismo , cit., p. 187. A passagem citada está no apêndice “Em marcha para o futuro”, datado de 9 mar. 1926. [14] As passagens citadas do 2º volume inédito de Combates e batalhas foram-me transmitidas por Marisa Brandão, com quem já tinha colaborado na preparação da 2ª edição de Agrarismo e industrialismo. [15] Estranhando a palavra “chã”, mas não se dando ao trabalho de consultar um bom dicionário, o revisor da 2ª edição do livro (Maceió, Edufal, 2007) permitiu-se corrigir Brandão, escrevendo “Sobre o chão”. Enfraqueceu a frase: chã designa terreno plano, planície e até planalto, com forte conotação de terra. Essa e outras falhas (por exemplo, em vez de 11º ciclo, escreve 11º capítulo) não tiram o interesse nem o mérito da reedição, que contém no final um belo “Caderno de fotos”. [16] Octávio Brandão, O caminho (Rio de Janeiro, s. n., 1950), p. 15-6. [17] Idem, Combates e batalhas ou alegrias e amarguras , v. 2 (inédito), p. 93. Diz ainda: “A mãe via o inverso de suas esperanças. O filho, Luiz Carlos Prestes, preso no Rio de Janeiro, no quartel da Polícia Especial, onde poderia ser assassinado a qualquer momento. Ela, em Paris, com a filha Lígia, impotentes. A nora, Olga Benário, presa em Berlim, nas garras da Gestapo, com a filha Anita, nascida na prisão. Uma cadeia de tragédias”. [18] Ibidem, p. 93-4. [19] Ibidem, p. 96-7. [20] Ver Edgard Carone, A República Velha (3. ed., São Paulo, Difel, 1975), e John W. Foster Dulles, Anarquistas e comunistas no Brasil , cit. [21] Michel Zaidan Filho, PCB (1922-1929): na busca de um marxismo nacional (São Paulo, Global, 1985). Vale assinalar que em apêndice desse livro (p. 121-32) está reproduzido outro notável texto de Brandão, “O proletariado perante a revolução democrática pequeno-burguesa”, publicado em 1928, com vistas ao III Congresso do PCB. [22] “Agrarismo e industrialismo: pioneirismo de uma reflexão”, Novos Rumos , v. 12, n. 26, set.-out. 1997, p. 54-61. [23] “Octávio Brandão nas origens do marxismo no Brasil”, Crítica Marxista , n. 18, 2004, p. 115-32.
A geração de Heitor Ferreira Lima, formada na URSS, foi denominada de “jovens bolcheviques” e voltou aos países de origem para dirigir os seus partidos. Heitor assumiu o lugar de Astrojildo Pereira, que havia sido destituído alguns meses antes, mas não tinha base de sustentação política e foi também substituído em pouco tempo. Começava para ele um período bastante turbulento de militância política, que se concluiria na prisão de 1938. Heitor viajou pelo Nordeste, por Mato Grosso e também por Minas Gerais, o que possibilitou a ele conhecer de perto os dramáticos problemas sociais do país. Provou também a prisão e a deportação, mas sua vivência mais intensa ficou entre Rio de Janeiro e São Paulo. No começo de 1935, foi a São Paulo com o encargo de ministrar curso de formação política e militância comunista, o mesmo curso que havia sido bem-sucedido no Rio de Janeiro. Em São Paulo, identificou-se mais com a direção regional paulista do partido do que com a do Rio de Janeiro. Foi exatamente em São Paulo que travou contato com Caio Prado Júnior, Hermínio Sacchetta, Tito Batini, entre outros. Como a Aliança Nacional Libertadora (ANL) e o PCB de São Paulo não participaram do levante de novembro de 1935, o seu grupo dirigente se manteve intacto e continuou a desenvolver a linha política da frente popular antifascista. A perseguição sistemática se abateu contra os comunistas no Brasil todo, com inumeráveis prisões de dirigentes nacionais e regionais. Nessa situação é que a direção do PCB acabou ficando com Lauro Reginaldo da Rocha, o Bangu, que tentou implantar a linha que a Internacional Comunista passou a difundir em 1937, ou seja, aquela da frente nacional contra a ameaça do eixo nazifascista, comandado pela Alemanha nazista. Essa orientação, essencialmente genérica, foi entendida no Brasil como necessidade de apoiar as reivindicações da burguesia (e de parte da burocracia estatal) por estímulos à industrialização, de modo que seria a burguesia industrial a força motriz da revolução burguesa. Os comunistas de São Paulo, incluindo Heitor Ferreira Lima, se opuseram à ideia e defenderam “ser a burguesia nacional incapaz de assumir tal papel, dadas as suas ligações com os restos feudais ainda persistentes no país e com o imperialismo, cabendo então essa função ao proletariado [...]”[1]. O apoio da IC ao grupo restante da direção nacional, conduzido por Bangu, e a subsequente fratura do grupo paulista – com Hermínio Sacchetta e outros tendo aderido à ideia de Trotski de uma nova Internacional a ser forjada – resultaram em duro isolamento para Heitor Ferreira Lima, o qual acabou preso por algum tempo em 1938. Depois de mais uma passagem pelo Rio de Janeiro, se transferiu em definitivo para São Paulo, em 1941, a fim de trabalhar como jornalista.
Em 1942, no apogeu do Estado Novo, Heitor Ferreira Lima publicou seu primeiro livro, Castro Alves e sua época , inspirado nos estudos de Edson Carneiro, notável estudioso da escravidão no Brasil e militante comunista. Passou a trabalhar n o Observador Econômico e Financeiro e também na Revista do Comércio. Estavam assim configurados os maiores interesses intelectuais de Heitor: o ensaio biográfico e a economia, ou melhor, a história econômica. Desses interesses e atividades é que se desdobra a sua interpretação da realidade brasileira. A industrialização da economia brasileira era um fato constatável naquele lustro dos anos 1940. Aconteceram importantes encontros de dirigentes políticos e intelectuais vinculados aos interesses da fração industrial da burguesia que então se fortalecia. Destacou-se amplamente a figura de Roberto Simonsen, intelectual orgânico da burguesia brasileira, presidente da Federação das Indústrias do Estado de São Paulo (Fiesp), onde criou o Conselho de Economia Industrial. Heitor Ferreira Lima, em 1944, foi um dos convidados escolhidos para compor esse órgão assessor, em que permaneceu até sua aposentadoria. Nessa nova ocupação, especializou-se como técnico em economia. Foi assessor de representantes da burguesia industrial na participação do Congresso de Bretton Woods (1944), na Conferência Nacional da Indústria (1946), e também dirigiu a Revista Industrial de São Paulo , entre 1946 e 1949. A admiração por Roberto Simonsen se estendeu por muito tempo, tanto que, já em meados dos anos 1970, Heitor Ferreira Lima escrevia estas linhas de elogio à instalação do fordismo no Brasil,
mas Roberto Simonsen não aspirava apenas à formação das elites para assumir a direção de nossos negócios administrativos, públicos e privados. Isso não bastava e não basta a um país. É preciso que a instrução, a capacidade profissional se estenda às largas massas da população, preparando igualmente obreiros aptos, conhecedores de seus ofícios, conscientes de suas responsabilidades no mecanismo da produção, dominando perfeitamente a técnica e as máquinas, nas tarefas de que são incumbidos. Dessa forma, se dá maior valor ao operário, proporcionando-lhe salário mais elevado, integrando-o de modo mais sólido à sociedade.[2]
Temos então um paradoxo, mas apenas aparente, a ser explicado. De fato, todos os indícios são de que a influência intelectual de Roberto Simonsen sobre Heitor Ferreira Lima foi considerável, porém, mesmo assim, ele jamais deixou de se
declarar marxista. Por hipótese, podemos considerar que a visão de Simonsen sobre a história da economia brasileira, expressa exatamente no livro História econômica do Brasil , de 1937, indicava a história de um capitalismo em desenvolvimento desde sempre. Ora, outro autor que concebeu uma leitura análoga a essa foi o militante comunista Caio Prado Júnior, que publicou Formação do Brasil contemporâneo , em 1942, e História econômica do Brasil , em 1945, ainda que fosse muito crítico de Roberto Simonsen. Vale lembrar que Heitor Ferreira Lima, em 1945, assim como Caio Prado e Astrojildo Pereira – num primeiro momento –, foi favorável à aproximação dos comunistas com a União Democrática Nacional (UDN) em chave antifascista, ainda que aceitando agora a presença da burguesia liberal. Mais tarde, a partir de 1955, Heitor foi assíduo colaborador da Revista Brasiliense , fundada e editada por Caio Prado. A questão que então se coloca é se Heitor Ferreira Lima – que permaneceu na Fiesp até 1975 – mudou a sua concepção geral sobre a formação social brasileira em relação àquela que predominava no PCB ou mesmo se chegou efetivamente a configurar outra leitura. A hipótese é que a visão desenvolvida por Heitor Ferreira Lima é, por um lado, bastante próxima daquela de Roberto Simonsen e, por outro, da de Caio Prado, mas com resquícios da visão clássica pecebista. O ecletismo foi evitado pela questão nacional, que vinculava todas essas leituras e oferecia o tom da época, marcada pelo “nacional- desenvolvimentismo”. Outra característica de época foi a importância dada à história econômica conectada a certo senso comum de um marxismo positivista que informava “que, constituindo a economia a infraestrutura da sociedade, é ela que determina a ação dos homens no campo político, administrativo e social em geral”[3]. Mas Heitor enfatiza também – no melhor estilo de um intelectual orgânico da burguesia – como os estudos de história econômica “podem prestar ajuda de enorme relevância às entidades das classes patronais, às fundações e mesmo às grandes empresas, por meio de organizações que já possuam ou por outras que sejam criadas com essa finalidade”[4]. De fato, a descrição que Heitor Ferreira Lima faz da formação econômica do Brasil na sua fase colonial, tanto no livro de 1961, Formação industrial do Brasil (período colonial) , quanto no livro atualizado em 1970, História político- econômica e industrial do Brasil , não traz uma discussão efetiva da natureza das relações sociais de produção na zona colonial portuguesa, somente uma descrição do que e com que se produzia e se comerciava, com ênfase no vínculo colonial. O economicismo está patente, mas o interesse de Heitor esteve mesmo voltado para as origens e o desenvolvimento da indústria no Brasil, ou, em outros termos, das origens e do desenvolvimento do capitalismo no país. Acontece que Heitor com frequência apreende a noção de indústria de forma genérica, abarcando quase que toda atividade transformativa, tanto que afirma ter sido a produção do açúcar a primeira indústria no Brasil. Outro ponto a destacar é que o autor privilegia muito a questão da técnica de produção, mas deixa de lado o problema das relações sociais e dos processos de trabalho obtendo como resultado a dissolução da centralidade do trabalho escravo na economia colonial. Para ele, além de escravos e donos de terra, havia moradores, lavradores, clérigos e outros grupos a comporem as camadas sociais intermediárias da vida social. Apesar disso, Heitor nota que são “as duas classes fundamentais da sociedade: o senhor de engenho e o escravo” e que “simbolizando essas duas forças antagônicas erguiam-se as suas moradias
características: a Casa-grande e a senzala”[5]. Persistem ambiguidades na exposição de Heitor quanto à natureza da forma social brasileira, já que afirma também que “o próprio sistema colonial adotado, com as sesmarias e suseranias feudais,” logo fez uso de “negros broncos, destinados ao labor exaustivo nas plantações”[6]. Mais tarde, Heitor afiança que:
o fim do regime colonial, entre nós, coincide, mais ou menos, com o fim do século XVIII, que marca por sua vez o levante geral das novas forças produtoras criadas no seio da sociedade medieval, personificadas na burguesia urbana, contra os entraves opostos ao seu florescimento pela ordem social vigente – o sistema feudal – encarnado esse levante no grande acontecimento socioeconômico que foi a Revolução Francesa.[7]
Parece então que Heitor Ferreira Lima percebia na ordem social colonial uma junção de características díspares que articulavam aspectos escravistas, feudais e capitalistas; mas importante mesmo era identificar a herança colonial, o peso do passado com suas amarras duradouras, perceptíveis na sobrevivência do latifúndio e do vínculo colonial sempre renovado. Então seria possível deslindar o caminho do progresso, que só poderia estar na industrialização do Brasil. Percebe-se nos escritos de Heitor Ferreira Lima uma visão histórica sempre progressiva, que implica a valorização da ação de setores ilustrados das classes dirigentes de cada momento crucial. De fato, no texto de Heitor Ferreira Lima, mal se pode notar a presença dos grupos sociais explorados e oprimidos ao modo de protagonistas. Não se observa a existência da perseverante resistência dos escravos negros e índios à exploração e opressão. Parte do livro de 1961, Formação industrial do Brasil , foi incorporada no de 1970, História político-econômica e
subestimado. Em 1930, ocorre a queda do regime, e o poder da oligarquia cafeeira se vê acuado, mas a vida social no campo mudou muito pouco ou mesmo nada. O centro da cena é ocupado pela pequena-burguesia urbana, intelectuais da nova ordem urbana e industrial. Para Heitor Ferreira Lima, “era a classe média das cidades entrando em ação, encabeçada militarmente pelos jovens oficiais do tenentismo”[13]. Heitor narra o efetivo processo de industrialização do Brasil que se manifestava desde 1929. A observação crítica mais importante é que essa industrialização ocorreu sem planejamento, por conta de ter sido, em grande medida, uma resposta necessária da economia em crise, a qual precisou substituir as importações. Anota também a presença crescente de investimentos externos, em particular aqueles vindos dos Estados Unidos, mas não nega que eles contribuem também para o desenvolvimento do capitalismo. O entusiasmo de Heitor Ferreira Lima pelo processo de industrialização – transparente nas páginas que escreve – e a ausência de senso crítico quanto à ação das classes dirigentes do país fazem dele um admirador do progresso, um autor mais economicista do que efetivamente marxista e, mais importante, um intelectual orgânico da burguesia. No entanto, um intelectual que, na prática, defendeu uma particular forma de revolução burguesa, uma revolução passiva, como caracterizaria Gramsci, posto que foi conduzida por uma fração das classes dominantes, mas dotada de um programa, aquele da industrialização como rota da independência nacional. Enfim, a força motriz da revolução era mesmo a burguesia industrial, assim como queriam os seus adversários no PCB em 1937 e também os que se seguiram na aplicação da política de União Nacional? Aposentado em 1975, Heitor Ferreira Lima ocupou-se de publicar novas edições de seus estudos. No seu livro de 1976, História do pensamento econômico no Brasil , publicado em coedição com o Instituto Roberto Simonsen, da Fiesp, ele acompanha a trajetória da reflexão sobre a economia brasileira desde seus albores e observa uma clara bifurcação entre uma corrente liberal, que preserva o caráter agrário e dependente do Brasil, e outra que entendia estar na industrialização a rota para a independência nacional. De fato, esse embate foi bastante marcante na conjuntura dos anos 1950 e começo dos anos 1960, e contribuiu para que Heitor formasse a sua visão de Brasil, da história e das perspectivas do país. Reconhece a debilidade do marxismo e a sua subordinação à vertente industrialista burguesa. Heitor afirma que
o que parece, no entanto, ressaltar de forma límpida é que a corrente de pensamento econômico melhor adaptado às nossas condições particulares emergiu inicialmente no primeiro pós-guerra, em decorrência do primeiro progresso industrial registrado na época, com a criação do Centro das Indústrias do Estado de São Paulo e o aparecimento de Roberto Simonsen preconizando a industrialização, como meio de erguer o baixo padrão de vida da população e superar o retardamento material em que nos encontrávamos.[14]
Nesse livro, culminando uma série de elogios, anota ainda que para ele “Roberto Simonsen foi o mais combativo e o
mais coerente industrialista que o Brasil já teve”[15].
Em fins dos anos 1970 do século XX, o Brasil já era um país bastante industrializado e plenamente capitalista. Não só a fração industrial da burguesia se arrogava a desprezar a ditadura militar que lhe fora tão útil, mas também a classe operária aparecia numerosa e as camadas médias intelectualizadas reivindicavam direitos de cidadania. A luta pela democracia aproximava amplo espectro de forças políticas e sociais, oferecendo possibilidades de organização ao movimento operário e da aproximação com a intelectualidade, que também se articulava, inclusive em sindicatos e partidos. Um setor dos intelectuais se preocupou em se organizar autonomamente e reconhecer a importância da memória das lutas operárias e populares no país. Nesse momento favorável, Heitor Ferreira Lima recebeu o reconhecimento do PCB, aproximou-se da União Brasileira de Escritores, que então se organizava, acercou-se da vida acadêmica e se sentiu estimulado a escrever as suas memórias num livro despojado, modesto, sincero, mas não isento de contradições, como a própria vida. Nas últimas linhas de suas memórias, confessa que viveu sempre “aspirando por melhores dias para a humanidade. De sua realização final não tenho dúvida, sendo
apenas questão de tempo, porque acredito no poder inelutável do progresso, sempre triunfador”[16]. Naqueles anos, contribuiu bastante para o resgate da figura de Astrojildo Pereira, escrevendo textos lúcidos sobre o velho amigo, mas ajudou muito também na pesquisa sobre as primeiras décadas de existência do PCB, aproximando-se do Instituto Astrojildo Pereira. O seu interesse por biografias continuava desperto e decidiu escrever um ensaio sobre Silva Jardim. Assim como Castro Alves, seu primeiro biografado (e seu primeiro livro), Heitor, no seu último livro, também se dedicava a um intelectual rebelde da época da crise da monarquia.
Logo na nota de apresentação preliminar, Heitor Ferreira Lima indica aquele que seria o seu método e concepção teórica. Diz então:
Como se poderá verificar mais adiante, não projeto Silva Jardim isoladamente em meio aos acontecimentos efervescentes e às lutas em que se envolveu, porque como adepto do materialismo histórico, procuro explicar sua ação como fruto da formação mental e da cultura adquirida desde os bancos acadêmicos, participando de organizações consideradas então como subversivas, como a Maçonaria e Bucha, em uma palavra, como fruto do tempo.[17]
Ao procurar descrever o ambiente no qual viveu e lutou Silva Jardim, Heitor reafirma a sua leitura do Brasil ao dizer que “o que caracteriza, entretanto, a trajetória nacional nesse período é a intensificação do processo capitalista, iniciado em 1850, com a supressão do tráfico negreiro e os empreendimentos pioneiros de Mauá”. Para ele, a cafeicultura do pós-guerra do Paraguai era já “eminentemente capitalista”[18]. Efeito importante da guerra do Paraguai foi o aguçamento da crise da escravatura e o fortalecimento político do papel do exército, mas o que Heitor destaca é a “revolução ideológica”, que teria ocorrido entre 1868 e 1878, segundo sugestão de Silvio Romero. Essa revolução ideológica fora a incorporação da filosofia positivista pela intelectualidade brasileira, com destaque para engenheiros e militares. Núcleos intelectuais positivistas marcaram presença no Rio de Janeiro, em São Paulo e no Rio Grande do Sul com influência intelectual e política de suma importância. Heitor nota também o aparecimento de uma vertente intelectual inspirada na cultura alemã, que havia “pressentido a necessidade em contrapor o humanismo ao positivismo”[19]. Dessa revolução ideológica fez parte a reivindicação política pela república. Acontece que o movimento pela república não se vinculou de modo decidido a outro movimento contemporâneo de oposição ao trabalho escravo, que para Heitor era “o mais candente problema da época, como suporte principal do sistema latifundiário reinante”. Destaca ainda que era o Brasil
“o único país no Continente a manter tão infamante e anacrônico modo de produção”[20]. No escrito de Heitor Ferreira Lima, como já foi sugerido, não há rigor no aparato conceitual, o que não possibilita uma clara exposição da natureza da formação social brasileira. Mais à frente, depois de acompanhar a formação intelectual de Silva Jardim, desde as origens familiares na comarca de Rio Bonito, no Rio de Janeiro (mesma origem de Astrojildo Pereira) até a formação do jurista republicano e positivista, da ala esquerda do movimento, Heitor sintetiza o momento histórico como sendo aquele “quando transpúnhamos o latifúndio colonial do açúcar para entrar na expansão cafeeira, de acentuadas conotações capitalistas e iniciar o nosso primeiro grande surto industrial[21]. Nesse momento, conforme narra Heitor, como publicista e orador de talento, Silva Jardim ataca a monarquia e defende uma república como governo do proletariado, particularizado no Brasil como agrícola e de origem africana, na maioria. Prossegue Heitor dizendo que, para Silva Jardim,
a república, desde a sua instauração, é um governo forte, uma ditadura progressista, guiada pela opinião pública, revogável pelo povo, pressupondo-se a liberdade de exposição e de discussão a mais completa, até a relativa à vida privada dos homens públicos – liberdade que aumenta a responsabilidade do chefe de Estado e impossibilita a tirania.[22]
A postura de Silva Jardim em defesa das ideias mais à esquerda que o embate político suportava formam as mesmas ideias que o fizeram angariar grande prestígio público e a marginalização política, logo que alcançado o objetivo da instauração da república. A morte o colheu em acidente no vulcão Vesúvio, em 1891, antes mesmo de completar 31 anos de idade, quando havia se imposto um exílio voluntário. O interesse de Heitor Ferreira Lima pela biografia de Silva Jardim pode ter um significado esclarecedor do seu próprio pensamento e visão de Brasil. Silva Jardim foi um jovem intelectual positivista de esquerda, vertente que se alongou no tempo no Brasil e foi o tronco do qual se originaram as ideologias do movimento operário, inclusive o marxismo particular do Brasil, marxismo do qual foi Heitor Ferreira Lima um representante dos mais dignos e expressivos, ainda que não lhe tenha sido possível romper com a subalternidade ante a vanguarda do pensamento burguês brasileiro.
[1] Heitor Ferreira Lima, Caminhos percorridos: memórias de militância (São Paulo, Brasiliense, 1982), p. 210. [2] Idem, 3 industrialistas brasileiros (São Paulo, Alfa-Omega, 1976), p. 180. [3] Idem, Formação industrial do Brasil (período colonial) (Rio de Janeiro, Fundo de Cultura, 1961), p. 5-6.