Docsity
Docsity

Prepare-se para as provas
Prepare-se para as provas

Estude fácil! Tem muito documento disponível na Docsity


Ganhe pontos para baixar
Ganhe pontos para baixar

Ganhe pontos ajudando outros esrudantes ou compre um plano Premium


Guias e Dicas
Guias e Dicas

Gil Vicente: A Influência de São Francisco de Assis na Obra do Dramaturgo, Exercícios de Teatro

Este texto apresenta uma investigação sobre as influências de são francisco de assis na obra de gil vicente, um dramaturgo português do século xvi. O documento explora as fontes biográficas de são francisco e seus escritos, demonstrando como as ideias e princípios franciscanos se refletiram nas obras de gil vicente. Além disso, o texto aborda a autenticidade dos escritos de são francisco e a importância de sua influência na literatura.

Tipologia: Exercícios

2022

Compartilhado em 07/11/2022

GloboTV
GloboTV 🇧🇷

4.5

(398)

224 documentos

1 / 193

Toggle sidebar

Esta página não é visível na pré-visualização

Não perca as partes importantes!

bg1
Fabio Sanches Paixão
Abrem-se as cortinas para o Jogral de Deus:
oFranciscanismo nas obras de Gil Vicente
Rio de Janeiro
2018
Universidade do Estado do Rio de Janeiro
Centro de Educação e Humanidades
Instituto de Letras
pf3
pf4
pf5
pf8
pf9
pfa
pfd
pfe
pff
pf12
pf13
pf14
pf15
pf16
pf17
pf18
pf19
pf1a
pf1b
pf1c
pf1d
pf1e
pf1f
pf20
pf21
pf22
pf23
pf24
pf25
pf26
pf27
pf28
pf29
pf2a
pf2b
pf2c
pf2d
pf2e
pf2f
pf30
pf31
pf32
pf33
pf34
pf35
pf36
pf37
pf38
pf39
pf3a
pf3b
pf3c
pf3d
pf3e
pf3f
pf40
pf41
pf42
pf43
pf44
pf45
pf46
pf47
pf48
pf49
pf4a
pf4b
pf4c
pf4d
pf4e
pf4f
pf50
pf51
pf52
pf53
pf54
pf55
pf56
pf57
pf58
pf59
pf5a
pf5b
pf5c
pf5d
pf5e
pf5f
pf60
pf61
pf62
pf63
pf64

Pré-visualização parcial do texto

Baixe Gil Vicente: A Influência de São Francisco de Assis na Obra do Dramaturgo e outras Exercícios em PDF para Teatro, somente na Docsity!

Fabio Sanches Paixão

Abrem-se as cortinas para o Jogral de Deus:

o Franciscanismo nas obras de Gil Vicente

Rio de Janeiro 2018

Universidade do Estado do Rio de Janeiro

Centro de Educação e Humanidades

Instituto de Letras

Fabio Sanches Paixão

Abrem-se as cortinas para o Jogral de Deus:

o Franciscanismo nas obras de Gil Vicente

Tese apresentada, como requisito parcial para obtenção do título de Doutor, ao Programa da Pós-Graduação em Letras da Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Área de concentração: Literatura Comparada.

Orientadora: Prof.ª Dra. Maria do Amparo Tavares Maleval

Rio de Janeiro 2018

Fabio Sanches Paixão

Abrem-se as cortinas para o Jogral de Deus: o Franciscanismo nas obras de Gil Vicente

Tese apresentada, como requisito parcial para obtenção do título de Doutor, ao Programa da Pós-Graduação em Letras da Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Área de concentração: Literatura Comparada.

Aprovada em 25 de abril de 2018.

Banca Examinadora:


Profª. Dra. Maria do Amparo Tavares Maleval (Orientadora) Universidade de São Paulo


Profª. Dra. Cláudia Maria de Souza Amorim Instituto de Letras - UERJ


Prof. Dr. Henrique Marques Samyn Instituto de Letras - UERJ


Profª. Dra. Lenora Pinto Mendes Universidade Federal Fluminense


Profª. Dra. Luciana Barbosa Reis Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Rio de Janeiro

Rio de Janeiro 2018

AGRADECIMENTOS

Agradeço inicialmente a Deus, o Grande Arquiteto do Universo, que me deu força e condições para concluir este tão laborioso trabalho. À orientadora desta tese, Maria do Amparo Tavares Maleval, por ter acreditado na pesquisa, pela paciência, pelos comentários precisos, pelas críticas ao longo de toda a trajetória de escrita da tese. Aos professores e funcionários do Programa em Pós-Graduação em Letras da UERJ pela dedicação e assistência. Aos nobres professores que integram a Banca examinadora por suas disponibilidades em avaliar e contribuir com a construção do conhecimento proposto nesta tese de Doutorado. Ao meu colega de trabalho Guilherme Drumond, conhecedor da língua inglesa, que me auxiliou na escrita do abstract deste trabalho. À minha mãe e irmãos que sempre me incentivaram e acreditaram em mim. Agradeço ainda à minha esposa Carla Padrone e aos meus filhos Jean Carlos e Pedro Henrique. Ninguém mais do que eles sofreram com as agruras do processo de escrita. Agradeço pela paciência, pelo carinho e por entenderem a importância desta etapa para os meus projetos acadêmicos.

RESUMO

PAIXÃO, Fabio Sanches. Abrem-se as cortinas para o Jogral de Deus : O Franciscanismo nas obras de Gil Vicente. 2018. 191 f. Tese (Doutorado em Literatura Comparada) – Instituto de Letras, Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, 2018.

Esta tese analisa a obra de Gil Vicente em cotejo com os escritos e ideais de São Francisco de Assis, que se auto denominava Joculator Domini (Jogral de Deus), buscando provar que a ideologia dos Frades Menores está presente não só no teatro considerado “de devoção” e nos sermões vicentinos, mas em quase toda obra atribuída a Gil Vicente, inclusive em suas farsas e comédias. Para tanto, investiga-se o pensamento de São Francisco, presente em seus escritos considerados como autênticos atualmente, e como a ideologia franciscana perpassa pelas obras vicentinas. Sendo assim, este trabalho reafirmará também que, apesar de viver num momento de transição entre a Idade Média e a Idade Moderna, Gil Vicente era homem de espírito e formação medievais, enraizado em uma profunda concepção teológica cristã. Por tudo isso, o pai do teatro português, influenciado pelas ideias de São Francisco de Assis, produziu uma obra cujos pensamentos e valores apontam para um desejo de moralizar a sociedade portuguesa de Quinhentos e transformar, aprofundando-a, a religiosidade superficial praticada naquela época.

Palavras-chave: Gil Vicente. São Francisco de Assis. Teatro. Religião.

ABSTRACT

PAIXÃO, Fabio Sanches. The curtains are opened for the jogral of God : Franciscanism in the works of Gil Vicente. 2018. 191 f. Tese (Doutorado em Literatura Comparada) – Instituto de Letras, Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, 2018.

This these analyze Gil Vicente’s work comparing to the writes and ideas of Saint Francis of Assisi, named himself Joculator Domini (Jogral of God), trying to prove that the ideology of Frades Moraes is still present not only in the theater, considered “in devotion” but also in Vicentinos sermons. But in almost all works attributed to Gil Vicente, including in his farces and comedies. Therefore, to find out San Francis’s thought, present in his writes considered actually authentic, and how the Franciscana ideology are elapsed in Vicentinas work. Therefore this work restate that, despite the fact of living in a transition moment through Middle Age and Modern Age, Gil Vicente was a man in medieval formation and spirit rooted in a profuse Christian theological conception. For all these things, the father of portuguese theater, influenced by the writes of São Francisco de Assis, produced a work whose thoughts and values point to moralizing the five hundred portuguese society and transforming, deepening, the superficial religiosity, practiced at that time.

Keywords: Gil Vicente. Saint Francis of Assisi. Teather. Religion.

  • INTRODUÇÃO
  • 1 FONTES BIOGRÁFICAS DE FRANCISCO DE ASSIS
  • 1.1 A primeira vida de Francisco de Assis
  • 1.2 A Legenda Maior de São Boaventura
  • 1.3 São Francisco de Assis de Jacques Le Goff
  • 2 ESCRITOS DE FRANCISCO DE ASSIS
  • 2.1 Exortações
  • 2.1.1 Admoestações
  • 2.1.2 Testamento
  • 2.1.3 Cântico “Ouvi, pobrezinhas!”....................................................................
  • 2.2 Textos de proposta de vida fraterna ou legislativos
  • 2.2.1 Regra não-bulada
  • 2.2.2 Regra bulada
  • 2.2.3 Regra para os Eremitérios
  • 2.2.4 Forma de vida para Santa Clara
  • 2.2.5 Última vontade para Santa Clara
  • 2.3 Cartas
  • 2.3.1 Primeira Carta aos Fiéis
  • 2.3.2 Segunda Carta aos Fiéis
  • 2.3.3 Primeira Carta aos Custódios
  • 2.3.4 Segunda Carta aos Custódios
  • 2.3.5 Primeira Carta aos Clérigos
  • 2.3.6 Segunda Carta aos Clérigos
  • 2.3.7 Carta a Toda a Ordem dos Frades Menores
  • 2.3.8 Carta a um Ministro
  • 2.3.9 Carta aos Governadores dos povos
  • 2.3.10 Carta ao irmão Leão
  • 2.3.11 Carta a Santo Antônio de Pádua
  • 2.4 Orações
  • 2.4.1 Oração diante do Crucifixo
  • 2.4.2 Exortação ao Louvor de Deus
  • 2.4.3 Louvores para todas as Horas
  • 2.4.4 Ofício da Paixão do Senhor
  • 2.4.5 Exposição sobre o Pai-Nosso
  • 2.4.6 Benção a Frei Leão
  • 2.4.7 Louvores a Deus Altíssimo
  • 2.4.8 Saudação à Bem-aventura Maria
  • 2.4.9 Saudação às Virtudes
  • 2.4. 10 Cântico das criaturas (ou do Irmão Sol)
  • 2.5 Fragmentos em outros livros
  • 2.5.1 Bênção a Frei Bernardo
  • 2.5.2 Bênção a Santa Clara
  • 2.5.3 Testamento de Sena
  • 2.5.4 Ditado da Verdadeira e Perfeita Alegria
  • 2.5.5 Carta a Irmã Jacoba
  • 2.5.6 Carta aos Bolonhenses
  • 2.5.7 Carta aos Frades Franceses
  • 2.5. 8 Carta a Santa Clara sobre o jejum
  • 3 GIL VICENTE: VIDA E OBRA
  • 3.1 Biografia
  • 3.2 O teatro vicentino
  • 4 O FRANCISCANISMO NAS OBRAS DE GIL VICENTE
  • 4.1 O percurso do Franciscanismo em Portugal até os dias de Gil Vicente
  • 4.2 Diálogo entre as obras vicentinas e os escritos franciscanos
  • 4.2.1 A crítica à cobiça, à ganância e à ambição
  • 4.2.2 O desprezo pela vaidade, pela soberba e pelo culto das aparências
  • 4.2.3 As criaturas e o “Aleluia” da criação
  • 4.2.4 A vida eremítica
  • 4.2.5 O sacerdócio e o afastamento da missão espiritual
  • 4.2.6 O valor da oração
  • 4.2.7 O enaltecimento da cultura cavaleiresca
  • 4.3 As características franciscanas no Auto da Barca do Inferno
    • CONCLUSÃO
    • REFERÊNCIAS

11

vicentinas, encontram-se também presentes na afamada peça Auto da Barca do Inferno. Sendo assim, analisaremos dezesseis peças no total^1. É notório o vasto material de pesquisas já realizadas acerca de Gil Vicente, parecendo, à primeira vista, não haver mais como explorar algum assunto acerca de suas obras. No entanto, apesar dos vários estudos vicentinos e da extensa bibliografia sobre o autor português e seu teatro, muitas indagações ainda permanecem acerca de sua posição ideológica. Nesse sentido, teremos como segunda hipótese de trabalho defender que, mesmo sendo homem contemporâneo ao Humanismo e crítico de uma sociedade em crise de valores, Gil Vicente não é um pré-reformista, como afirmou Teófilo Braga em seus estudos sobre a Literatura Portuguesa. O dramaturgo português, ainda que siga um viés como crítico dos costumes, estaria longe de propor a rebelião dos reformistas protestantes e mesmo de ser um adepto do Erasmismo. Cabe lembrar que o protestantismo de Lutero se opôs à Igreja porque estava imbuído de um espírito antropocêntrico, fortalecido e apoiado pela burguesia mercantilista. Gil Vicente, ao contrário disso, não se identifica com os valores do Mercantilismo. Ligado constantemente à Corte, à família real, para quem representa, Gil Vicente era homem de espírito e formação medievais, enraizado em uma concepção teológica e fortemente influenciado pelas ideias e escritos de Francisco de Assis. Possivelmente tal influência teria gerado nele o desejo de contribuir para a transformação da sociedade portuguesa e a religiosidade superficial então praticada em sua época. Esse desejo está intimamente ligado à ordem que Francisco recebera quando estava de joelhos diante do Crucificado (ou Crucifixo )

  • pintura em que se encarna uma nova devoção ao Cristo sofredor –, e ouviu uma voz que vinha da cruz e que lhe falou por três vezes: “Francisco, vai e restaura a minha casa. Vês que ela está em ruínas”. De acordo com Boaventura,

Francisco encontrava-se sozinho na igreja e ficou amedrontado ao ouvir aquela voz, mas a força de sua mensagem penetrou profundamente em seu coração e ele, delirando, caiu em êxtase. Por fim voltou a si e tratou de pôr em execução a ordem recebida. Concentrou todas as forças na restauração daquela igreja material. Mas a igreja a que a visão se referia era aquela que “Cristo resgatara com seu próprio sangue” (At 20, 28). O Espírito Santo mais tarde lho revelou e ele o ensinou a seus irmãos (BOAVENTURA, in SILVEIRA, REIS, 1982, p. 469). Para o desenvolvimento desta tese, nos primeiros capítulos, será realizada uma investigação minuciosa das fontes biográficas de Francisco de Assis e dos Escritos

(^1) VICENTE, Gil. Obras completas. Porto: Lello & Irmão Editores, 1965.

12

Franciscanos, a fim de melhor compreender os ideais do santo e de sua ordem, antes de compará-los com o sentido das obras vicentinas. Buscaremos, dessa forma, examinar, antes de tudo, as fontes biográficas primárias tradicionais, escritas por Tomás de Celano ( Vida I ) e Boaventura ( Legenda Maior ), além de uma fonte secundária que leva o nome do santo ( São Francisco de Assis ), escrita pelo historiador Jacques Le Goff. Cabe ressaltar que Le Goff (de 1924 a 2014), o qual foi um importante historiador francês, afirmou, ao justificar sua investigação sobre a vida de Francisco (LE GOFF, 2001, p. 10-11), ser fascinado pelo santo, um dos mais impressionantes personagens do seu tempo e da História Medieval e que inspirou o desejo de fazer dele um objeto da história total, exemplar para o passado e para o presente. Essa obra de Le Goff é dividida em quatro ensaios ou capítulos, dos quais os dois primeiros nos auxiliarão sobremaneira, por revelarem informações sobre a vida do santo pela ótica desse eminente medievalista. Apesar de se designar como “homem simples e sem letras”, Francisco nos deixou vários escritos que nos revelam muito sobre sua personalidade e seus ideais. Dessa forma, em outro capítulo, serão apresentadas análises dos textos franciscanos. Esses textos estão distribuídos, segundo uma divisão comumente aceita, em três grupos. Um primeiro grupo é atribuído a Francisco como Fundador e Pai ( Regra não Bulada, Regra Bulada, Regra de Vida para os Eremitérios, Testamento, Testamento de Sena, Admoestações, Forma de Vida, Última Vontade ); um segundo é atribuído a ele como evangelizador e conselheiro espiritual ( Cartas ); um terceiro grupo é lhe atribuído como cantor e orante (Louvores e Orações). Sabe-se, no entanto, que estas obras – ou a maioria delas – provavelmente foram ditadas a irmãos peritos na arte da escrita. O próprio Francisco confirma essa ideia com relação à Regra Não-bulada , quando diz no Testamento (cap. 4º): “E o fiz escrever”. Em algumas cartas, ocorrem situações semelhantes. Isso não significa que ele era analfabeto − afinal, o relato de Eccleston e os autógrafos, encontrados e preservados até os nossos dias, provariam o contrário. No entanto, as letras tremidas e a grafia desajeitada insinuam que Francisco não desenvolvera certa habilidade com as letras. Suas ideias, porém, foram preservadas em vários textos, mesmo que registradas por terceiros, e serão esses escritos analisados como parte de nosso corpus. Além de compreender a mensagem franciscana, será preciso entender também como era a época em que a ordem dos frades menores foi fundada e estabelecida. Sendo assim, ao tratarmos da biografia de Francisco, apontaremos também as características do momento histórico vivido por ele. Naquela época, uma renovação da Igreja era uma necessidade sentida

14

tempo após sua morte, todo frade mendicante na rua parecia carregar dentro de si algo de seu mestre e multiplicar a sua presença. Sua personalidade contribuiu sem dúvida alguma para despertar e aprofundar o sentimento da originalidade e singularidade do indivíduo (AUERBACH, 1997, p. 65). Além da ideologia franciscana, presente nas regras e outros discursos de Francisco, interessa-nos evidenciar as virtudes mais prezadas por ele. Maria do Amparo Tavares Maleval evidencia, ao analisar, em seu artigo Da retórica do Franciscanismo nas Moralidades de Gil Vicente , essas virtudes, afirmando que, em texto de sua lavra, intitulado Elogio das Virtudes (FRANCISCO, in SILVEIRA, REIS, 1982, p. 166), Francisco de Assis exalta

a “rainha sabedoria”, irmã da “pura simplicidade”; a “santa pobreza”, irmã da “santa humildade”; a “santa caridade”, irmã da “santa obediência”. E ensina que a nenhuma o cristão deve ofender: “quem a uma ofender, nenhuma possui e a todas ofende”, acrescentando que “cada uma por si destrói os vícios e pecados”. Assim, a “santa sabedoria” “confunde a Satanás e todas as suas astúcias”; a “pura e santa simplicidade” “confunde toda a sabedoria deste mundo e a prudência da carne”; a “santa pobreza” “confunde toda a cobiça e avareza e solicitudes deste século”; a “santa humildade” o orgulho, a “santa caridade” “as tentações do demônio e a da carne” e desta os temores; a “santa obediência” “confunde os desejos sensuais e carnais e mantém o corpo mortificado para obedecer ao espírito e obedecer a seu irmão, e torna o homem submisso” a todos os homens e animais (FRANCISCO, in MALEVAL, 2014, p. 180). Essas virtudes exaltadas pelo santo – sabedoria e simplicidade, pobreza e humildade, caridade e obediência −, bem como o seu cântico de louvor à natureza, sua devoção à Virgem Maria e o seu desejo de reforma na Igreja são características facilmente percebidas nas obras de Gil Vicente. O ideal de santidade, contemplação e valorização da pobreza e humildade, além da refutação a qualquer saber puramente humano, seja de ciência ou erudição, pode ser identificado em seu teatro, como o próprio escreveu no Auto da Fé :

Por mostrar que a pobreza Actual e spiritual He o toque principal Da celestial riqueza: Porque He porta da humildade Caminho da paciência, Horto da sancta prudência Esteio da Sactidade (VICENTE, 1965, p. 113). Antes de analisar e entender o discurso de Gil Vicente em sua obra e perceber suas afinidades com o franciscanismo, será necessário, em capítulo à parte, expor os dados biográficos de Gil Vicente a fim de entender um pouco sobre a sua ideologia. Afinal, quem foi o homem considerado por alguns como o pai do teatro português? Que fatores de condenação encontra Gil Vicente na sociedade do seu tempo? Como apresenta suas críticas, implícita ou explicitamente? Até onde vai ou até onde pode ir, quando expõe suas opiniões?

15

Pretendemos ainda mostrar, depois de responder a essas indagações, como a sua época permitiu-lhe certa liberdade de expressão, impondo-lhe, porém, uma demonstração de obediência e respeito por funções, dogmas e instituições. Será nosso objetivo, ainda no mesmo capítulo, apresentar as características do teatro vicentino, que, segundo alguns, foi um inovador da tradição dramatúrgica peninsular e, mesmo, europeia. Discutiremos ainda alguns equívocos da Copilaçam de 1562 e apresentaremos outras classificações mais sistemáticas das obras vicentinas, que vem sendo testadas. Após a análise do teatro de Gil Vicente, no mesmo capítulo, mostraremos, por meio de uma perspectivação histórica, as evidências de que ele era um adepto do franciscanismo. Será explicado de início que essa ideologia presente em suas obras foi motivada por várias razões, sendo uma delas – e provavelmente a mais forte – o fato de o franciscanismo estar presente na Corte portuguesa e ser admirado ou praticado por vários membros da família real portuguesa. Sem dúvidas, o fato de D. Leonor, sua principal mecenas, estar integrada na espiritualidade franciscana e atuando ativamente, por meio de suas obras de misericórdia e divulgação da cultura cristã, será a maior influência para o artista português. No entanto, convém ressaltar que tal pensamento já estava presente entre a realeza não só na época de Gil Vicente, no século XV e XVI; antes desse período, por exemplo, a rainha Santa Isabel, esposa de D. Dinis, no século XIII, abraçou de forma total o franciscanismo, dedicando-se à prática da caridade e da humildade. A rainha inclusive fundou o convento das Clarissas e vestiu-lhe o hábito, quando ficou viúva. Enfim, mostraremos que outros acontecimentos comprovam que Gil Vicente teria recebido várias influências do pensamento de Francisco de Assis. Trataremos ainda do riso, elemento que, além de ser um dos recursos do teatro produzido por Gil Vicente, aproxima mais uma vez esta dramaturgia dos ideais franciscanos. E adiante-se que Gil Vicente segue a mesma linha de pensamento adotada por Plauto, dramaturgo latino, que acreditava no lema ridendo castigati more , isto é, rindo castigam-se os costumes. Essa alegria presente em suas obras também foi valorizada por Francisco (FRANCISCO, in SILVEIRA, REIS, 1982, p. 147), que, na Regra não-bulada , defendeu que os frades se mostrassem sempre alegres. O santo de Assis aconselhou que os frades nunca se mostrassem em seu exterior como tristes e sombrios hipócritas, mas antes se comportassem como gente que se alegra no Senhor, satisfeitos e amáveis, como convém. Antes de procedermos ao estudo do discurso franciscano presente nas obras de Gil Vicente, consideramos importante realizar um estudo histórico do franciscanismo em Portugal, demonstrando como os escritos franciscanos influenciaram a literatura portuguesa,

17

combatida quando Gil Vicente implicitamente pretende corrigir, por meio de suas obras, as atitudes de várias personagens, como os fidalgos, religiosos e escudeiros; e aparecerá em suas palavras proferidas no Sermão pregado em 1506 (VICENTE, 1965, p. 1286), em que o artista demonstrou sua preocupação, afirmando que o mundo, à semelhança do enfermo, aperta os dentes ansiosamente, cada vez mais soberbo. Esse ideal também poderá ser percebido na análise das peças Farsa dos Almocreves e Quem tem farelos? Além disso, a união com a natureza e o amor por toda a criação divina, pensamentos tão propagados pelo Franciscanismo, serão examinados em algumas obras do dramaturgo português, como o Triunfo do Inverno , o Auto da História de Deus , a farsa Auto da Lusitânia e o Auto dos Quatro Tempos. A simplicidade ainda será valorizada na figura do eremita, personagem frequente em várias obras do dramaturgo português, como na Tragicomédia sobre a divisa da cidade de Coimbra , Amadis de Gaula e Tragicomédia Pastoril da Serra da Estrela. Essa imagem do eremita, em seu ideal de vida solitária e contemplativa, será comparada à ideologia de Francisco, já que, após sua conversão, ele passou a viver fora dos muros da cidade como um ermitão e expressou seu pensamento sobre esta vida eremítica. Depois, trataremos da temática que mais vezes apareceu nas peças de Gil Vicente: o afastamento do clero de sua missão espiritual. Essa era uma preocupação franciscana também, afinal, Francisco tinha consciência da responsabilidade de estar à frente de um rebanho na condição de guia. Apontaremos tais críticas vicentinas nas obras Clérigo da Beira, Comédia de Rubena, Comédia sobre a Divisa da Cidade de Coimbra e voltaremos a analisar a obra Romagem dos agravados, cuja crítica ao clero também fica evidente. Ainda faremos menção ao valor da oração para Francisco e mostraremos como essa temática foi explorada no teatro vicentino. Para isso, selecionamos as obras Floresta dos Enganos e Clérigo da Beira , em que se percebe uma preocupação de Gil Vicente com a oração verdadeira e não com aquela feita com “vazias” palavras. Por fim, trataremos do enaltecimento da cultura cavaleiresca que esteve presente na vida de Francisco de Assis, considerado o cavaleiro de Cristo, mas que também foi tema em obras vicentinas como Amadis de Gaula e Dom Duardos. Sem dúvida, o que transparece ao longo das numerosas obras vicentinas é uma ideologia cristã, e ele se mostra, dessa forma, como homem imbuído de pensamento e reflexões de tipo espiritual cuja essência se fundamenta nos valores católicos; provavelmente, por ter vivido em período de transição, herdando um pensamento medieval, seu ideário humanista se afasta do ideário de outros escritores portugueses. Dessa forma, nossa pesquisa,

18

ao tratar de Gil Vicente como um franciscano, também trará uma reflexão acerca do humanismo português, mostrando que havia um considerável espaço para as produções místicas no século XVI, ainda que alguns enfatizem apenas a renovação e a valorização cultural deste momento. Ao tratar dessa questão, José Augusto Cardoso Bernardes afirma que

Assim sendo, não pode deixar de vir à tona um curioso problema de inserção periodológica: é que sendo G. V. (e convindo muito que seja) um artista do século XVI e querendo nós (precisando nós?) fazer desse século um tempo de renovação e de efervescência cultural, assinalado pelos ideais humanistas e pelo primado dos modelos greco-latinos (tornou-se inclusivamente necessário “encontrar”, para tanto, um humanismo especificamente português, de carácter cívico e livresco, cruzadístico e irenista) onde poderemos encontrar espaço para um autor que, embora pertencendo a essa mesma época, parece estar fora desta atmosfera? Esta pergunta, todavia, radica numa visão estereotipada do século XVI, ou seja, pressupõe a homogeneidade estético-cultural de toda uma centúria que sabemos atravessada por tensões de toda a ordem (BERNARDES, 2005, 194-195). Por tudo isso, fica evidente que Gil Vicente, antes de ser um artista humanista, era um pregador, obediente ao que o franciscanismo propunha: estar com Cristo e ser enviado a pregar (BÍBLIA, 2002, Marcos 3, 14-15)^4. O binômio de São Marcos sintetiza a finalidade para a qual foram constituídos os Doze: vida em comum com Cristo e participação na sua missão. E como pregador, Vicente dominava as técnicas de persuasão, característica essencial àqueles que se dedicavam à homilética. No entanto, a sua pregação não está só em seus sermões, mas em toda sua obra, desde as suas peças de devoção até as consideradas profanas. Nestas obras, em que ele desenvolve a sua arte de pregar e habilidade retórica, é possível notara valorização das mesmas virtudes destacadas pelo fundador da Ordem dos Menores, moralizando, por meio destes ensinamentos, a sociedade portuguesa de Quinhentos. Por todos esses aspectos apresentados, espera-se que, após as comparações entre os escritos de Francisco de Assis e as obras de Gil Vicente, fique evidente a presença do Franciscanismo nos textos vicentinos. Assim, considera-se que este trabalho contribuirá ainda mais para os estudos acerca de Gil Vicente e sobre o mundo pintado por ele nos seus autos, nas suas farsas ou nas suas comédias.

(^4) BÍBLIA de Jerusalém. S. Paulo: Paulus, 2002, p. 1767.