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Guias e Dicas
Guias e Dicas

Este livro destina-se ao uso exclusivo de deficientes visuais, não , Manuais, Projetos, Pesquisas de Cultura

livro sobre oficiais das SS

Tipologia: Manuais, Projetos, Pesquisas

2012

Compartilhado em 16/10/2012

ademir-silva-17
ademir-silva-17 🇧🇷

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Este livro destina-se ao uso exclusivo de deficientes visuais, não
podendo ser copiado ou utilizado com quaisquer fins lucrativos. Ignorar essa
advertência significa violar a lei 9610, de 19 de fevereiro de 1998, que
regulamenta os direitos autorais no Brasil.
O Dossiê Odessa
Frederick Forsyth
OBRAS DO AUTOR
A ALTERNATIVA DO DIABO
CÃES DE GUERRA
O DIA DO CHACAL
O DOSSIE ODESSA
A HISTÓRIA DE BIAFRA
O PASTOR
SEM PERDÃO
Tradução de: Pinheiro de Lemos
128 EDIÇÃO
EDITORA RECORD
Título original inglês: THE ODESSA FILE
Copyright (C) 1972 by Danesbrook Productions Limited
Publicado originalmente na Inglaterra por Hutchinson & Co. (Publishers) Ltda.
O contrato celebrado com o autor proíbe a exportação desta edição para Portugal
Continental e Ultramarino
Direitos exclusivos de publicação no Brasil adquiridos pela DISTRIBUIDORA
RECORD DE SERVIÇOS DE IMPRENSA S. A.
A todos os repórteres que não se conformam com a sugestão de desistir de um
caso
PREFÁCIO
O Odessa do título não se refere nem à cidade desse nome no Sul da Rússia,
nem à pequena cidade homônima dos Estados Unidos. É uma sigla formada pelas
iniciais de seis palavras que querem dizer em alemão "Organisation Der
Ehemaligen SS-Angehorigen". Traduzido, isso significa "Organização dos
Ex-Elementos das SS".
As SS, como o deve saber a maioria dos leitores, foram o exército dentro do
exército, o estado dentro do estado, que Adolf Hitler criou, Heinrich Himmler
comandou e que foi incumbido de tarefas especiais pelos nazistas, que dominaram
a Alemanha de 1933 a 1945. Essas tarefas se relacionavam em teoria com a
segurança do Terceiro Reich; na prática, abrangeram o cumprimento da ambição
de Hitler de livrar a Alemanha e a Europa de todos os elementos que ele
considerava "indignos da vida", de escravizar perpetuamente as "raças
subumanas das terras eslavas" e de exterminar da face do continente todos os
judeus, homens, mulheres e crianças.
Na realização dessas tarefas, as SS organizaram e executaram o assassinato
de cerca de quatorze milhões de seres humanos, compreendendo aproximadamente
seis milhões de judeus, cinco milhões de russos, dois milhões de poloneses,
meio milhão de ciganos e meio milhão de elementos diversos, inclusive, embora
isso raramente seja mencionado, perto de duzentos mil alemães e austríacos
que não eram judeus. Estes eram infelizes portadores de deficiências mentais
ou físicas ou os chamados inimigos do Reich, como os comunistas, os
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Este livro destina-se ao uso exclusivo de deficientes visuais, não podendo ser copiado ou utilizado com quaisquer fins lucrativos. Ignorar essa advertência significa violar a lei nº 9610, de 19 de fevereiro de 1998, que regulamenta os direitos autorais no Brasil.

O Dossiê Odessa

Frederick Forsyth

OBRAS DO AUTOR

A ALTERNATIVA DO DIABO

CÃES DE GUERRA

O DIA DO CHACAL

O DOSSIE ODESSA

A HISTÓRIA DE BIAFRA

O PASTOR

SEM PERDÃO

Tradução de: Pinheiro de Lemos 128 EDIÇÃO EDITORA RECORD Título original inglês: THE ODESSA FILE Copyright (C) 1972 by Danesbrook Productions Limited Publicado originalmente na Inglaterra por Hutchinson & Co. (Publishers) Ltda.

O contrato celebrado com o autor proíbe a exportação desta edição para Portugal Continental e Ultramarino

Direitos exclusivos de publicação no Brasil adquiridos pela DISTRIBUIDORA RECORD DE SERVIÇOS DE IMPRENSA S. A.

A todos os repórteres que não se conformam com a sugestão de desistir de um caso

PREFÁCIO

O Odessa do título não se refere nem à cidade desse nome no Sul da Rússia, nem à pequena cidade homônima dos Estados Unidos. É uma sigla formada pelas iniciais de seis palavras que querem dizer em alemão "Organisation Der Ehemaligen SS-Angehorigen". Traduzido, isso significa "Organização dos Ex-Elementos das SS". As SS, como o deve saber a maioria dos leitores, foram o exército dentro do exército, o estado dentro do estado, que Adolf Hitler criou, Heinrich Himmler comandou e que foi incumbido de tarefas especiais pelos nazistas, que dominaram a Alemanha de 1933 a 1945. Essas tarefas se relacionavam em teoria com a segurança do Terceiro Reich; na prática, abrangeram o cumprimento da ambição de Hitler de livrar a Alemanha e a Europa de todos os elementos que ele considerava "indignos da vida", de escravizar perpetuamente as "raças subumanas das terras eslavas" e de exterminar da face do continente todos os judeus, homens, mulheres e crianças. Na realização dessas tarefas, as SS organizaram e executaram o assassinato de cerca de quatorze milhões de seres humanos, compreendendo aproximadamente seis milhões de judeus, cinco milhões de russos, dois milhões de poloneses, meio milhão de ciganos e meio milhão de elementos diversos, inclusive, embora isso raramente seja mencionado, perto de duzentos mil alemães e austríacos que não eram judeus. Estes eram infelizes portadores de deficiências mentais ou físicas ou os chamados inimigos do Reich, como os comunistas, os

social-democratas, os liberais,

jornalistas, repórteres e sacerdotes que falavam de maneira inconveniente, homens de consciência e coragem e, posteriormente, oficiais do exército sobre os quais recaíam suspeitas de falta de lealdade a Hitler. Antes de sua destruição, as SS tinham feito das duas iniciais de seu nome e do símbolo de um duplo raio do seu estandarte sinônimos de desumanidade a um ponto jamais igualado antes ou depois por qualquer outra organização. Antes do fim da guerra, os seus elementos mais categorizados, absolutamente certos de que a guerra estava perdida e sem quaisquer ilusões sobre a opinião que os homens civilizados teriam de suas ações quando chegasse o ajuste de contas, tomaram providências diversas para desaparecer numa vida nova, deixando para todo o povo alemão o ônus de assumir e dividir a culpa pelos criminosos desaparecidos. Para esse fim, vastas quantidades do ouro das SS foram levadas clandestinamente para fora do país e depositadas em contas bancárias numeradas, falsificaram-se documentos de identidade e abriram-se rotas de fuga. Quando os Aliados conquistaram afinal a Alemanha, o grosso dos assassinos em massa tinha fugido. A organização que formaram para efetuar a sua fuga foi a Odessa: Depois de cumprida a primeira tarefa de assegurar a fuga dos assassinos para climas mais hospitaleiros, as ambições desses homens cresceram. Muitos nunca chegaram a sair da Alemanha, preferindo continuar sob a proteção de nomes e documentos falsos enquanto os Aliados governavam; outros voltaram, convenientemente protegidos por uma nova identidade. Foram bem poucos os homens da alta direção que continuaram no exterior para manobrar a organização da segurança de um exílio confortável. Os objetivos da Odessa eram e continuam a ser cinco: reabilitar homens que pertenciam às SS nas profissões liberais da nova República Federal criada em 1949 pelos Aliados, infiltrar-se ao menos nos escalões inferiores da atividade político-partidária, pagar os melhores advogados para qualquer assassino das SS levado à barra dos tribunais e invalidar de todas as maneiras possíveis a ação da justiça na Alemanha Ocidental contra algum antigo Kamerad, assegurar a ex-homens das SS o estabelecimento no comércio e na indústria a tempo de aproveitar-se do milagre econômico que reconstruiu opaís depois de 1945 e, por fim, realizar propaganda junto ao povo alemão no sentido de que os assassinos das SS nada mais eram na realidade senão soldados patrióticos comuns que cumpriam o seu dever para com a Pátria e não mereciam absolutamente a perseguição a que a justiça e a consciência ineficazmente os submetiam. Em todas essas tarefas, com o apoio de seus consideráveis fundos, têm sido assinaladamente bem sucedidos,

especialmente quanto a reduzir a uma pilhéria a punição oficial pelos tribunais da Alemanha Ocidental. Mudando de nome diversas vezes, a Odessa tem procurado negar a sua própria existência como uma organização, em conseqüência do que muitos alemães são levados a dizer que a Odessa não existe. A resposta sucinta é a seguinte: existe e os Kameraden da insígnia da Caveira ainda estão ligados dentro dela. Apesar dos êxitos alcançados em quase todos os seus objetivos, a Odessa sofre de vez em quando uma derrota. A pior que já sofreu se verificou no começo da primavera de 1964, quando um maço de documentos chegou inesperada e anonimamente ao Ministério da Justiça em Bonn. Esse maço ficou sendo conhecido para os poucos funcionários que chegaram a ver a lista de nomes constante de

janela. – Ouvi - disse Miller.

  • É uma coisa fantástica, - disse o homem. Por toda a Hamburgo, pela Europa, pelo mundo, as pessoas se estavam aproximando de gente completamente desconhecida para comentar o acontecimento.
  • Teriam sido os comunistas? - perguntou o homem. - Não sei.
  • Se foram eles, isso pode dar guerra, sabe disso?
  • É possível, - disse Miller, desejando que o homem se fosse embora. Como repórter, podia imaginar a agitação que havia através dos jornais do país, quando todo o pessoal era requisitado para ajudar a preparar uma edição extra. Seria preciso escrever o necrológio, obter e relacionar centenas de declarações e atender os telefones, bloqueados por gente nervosa que queria saber de mais detalhes, tudo porque um homem estava estendido com o pescoço dilacerado numa mesa de mármore, numa cidade do Texas.

Desejou estar de novo, como em outros tempos, na redação de um jornal diário, mas desde que se tornara três anos antes um freelance, especializara-se em reportagens especiais no interior da Alemanha, relacionadas principalmente com crimes, polícia e criminosos. A mãe dele detestava aquele serviço, dizendo que ele o fazia conviver com gente muito "desagradável" e os argumentos dele de que se estava tornando um dos mais solicitados repórteres-investigadores do país não conseguiam demovê-la da convicção de que aquele serviço de repórter não era digno de seu filho único. Depois de ouvir o noticiário do rádio, seu espírito trabalhava febrilmente, tentando pensar em outro "ângulo" que pudesse ser seguido dentro da Alemanha e pudesse fazer uma boa seqüela para o assunto central. A reação do governo de Bonn poderia ser coberta de Bonn pelo pessoal das redações e as recordações da visita de Kennedy a Berlim em junho daquele ano seriam cobertas também de lá. Não parecia haver uma boa reportagem gráfica que ele pudesse arrumar para vender a qualquer das várias revistas alemãs que eram a melhor clientela para essa espécie de jornalismo. O homem debruçado na janela do carro sentiu que a atenção de Miller estava em outro lugar e presumiu que fosse de pesar pelo presidente morto. Deixou prontamente de falar numa guerra mundial e assumiu o mesmo ar de gravidade do outro.

  • Ja, ja, ja, - murmurou ele com convicção, como se tivesse certeza de tudo.
  • Gente violenta esses americanos, veja bem o que estou dizendo, gente violenta. Há neles uma tendência à violência que nós aqui nunca poderemos compreender.
  • Claro, - disse Miller, com o pensamento ainda a quilômetros de distância. O homem percebeu afinal a insinuação.
  • Bem, tenho de ir chegando para casa, - disse ele, aprumando o corpo. - Gruss Gou. Começou a caminhar em direção ao seu carro e Miller tomou conhecimento de que ele se estava afastando.
  • Ja, gute Nacht, - disse ele pela janela aberta. Levantou então a vidraça para proteger-se do vento frio que soprava do rio Elba. A música do rádio tinha sido substituída por uma marcha lenta e o locutor disse que naquela noite não haveria mais música leve, mas apenas boletins de notícias entremeados de música apropriada à situação. Miller recostou-se no confortável estofamento de couro do seu Jagnar e acendeu um Roth-Handl, um cigarro de fumo preto sem filtro e com um cheiro horrível, outro dos motivos de queixa da mãe dele contra o filho decepcionante.

12

É sempre tentador pensar no que poderia ter acontecido se... Em geral, é um exercício frívolo porque o que poderia ter sido é o maior dos mistérios. Mas é talvez exato dizer que, se Miller não estivesse com o rádio ligado naquela noite, não teria encostado o carro ao lado da estrada pelo espaço de meia hora. Não teria ouvido a ambulância, não teria sabido de Salomon Tauber ou Eduard Roschmann e, provavelmente, quarenta meses depois, a república de Israel teria deixado de existir. Acabou de fumar o cigarro ainda escutando o rádio, abaixou a vidraça e jogou a ponta fora. Ao toque de um botão, o motor de 3,8 litros sob o longo capô inclinado do Jaguar XK 150 S roncou forte e acomodou-se ao seu rugido habitual e reconfortante como um animal zangado que tenta sair de uma jaula. Miller ligou os dois faróis, olhou para trás e entrou no trânsito cada vez mais intenso da Estrada de Osdorf. Tinha chegado ao sinal da Stresemann Strasse e estava parado diante do sinal vermelho quando ouviu o barulho da ambulância atrás dele. Esta passou por ele à esquerda, com o gemido da sirene subindo e descendo, diminuiu um pouco a marcha antes de entrar no cruzamento avançando o sinal vermelho, atravessar à frente de Miller e descer para a direita, entrando em Daimler Strasse. Miller teve uma reação exclusivamente reflexa. Embreou o carro e o Jaguar arrancou atrás da ambulância com vinte metros de diferença. Logo depois de fazer isso, achou que talvez tivesse sido melhor ir diretamente para casa. Não devia ser nada, mas nunca se sabia. Ambulâncias significam problemas e os problemas poderiam significar uma boa reportagem, principalmente quando se era o primeiro a chegar ao local e tudo poderia estar resolvido antes que os repórteres dos jornais chegassem. Podia ser um grande desastre de carros, um grande incêndio no porto ou uma casa de cômodos em chamas com crianças presas lá dentro. Podia ser qualquer coisa. Miller levava sempre uma pequena Yashica com apêndice de flash no porta-luvas do carro porque nunca se sabia o que ia acontecer bem debaixo dos olhos. Conhecia um homem que estava esperando um avião no aeroporto de Munique no dia 6 de fevereiro de 1958 quando o avião que levava a equipe de futebol inglesa do Manchester Uníted caiu a al gumas centenas de metros do lugar onde ele estava. O homem não era sequer um fotógrafo profissional, mas tirou do ombro a máquina que estava levando para as suas férias de esquiagem e bateu as primeiras fotos exclusivas do avião em chamas. As revistas ilustradas tinham-lhe pago 5.000 libras por elas. A ambulância entrou pelo labirinto de ruas pequenas e miseráveis de Altona, deixando a estação de estrada de ferro de Altona à esquerda e tomando o rumo do rio.

Quem estava dirigindo aquela ambulância Mercedes de nariz chato e carroçaria alta conhecia Hamburgo muito bem e sabia guiar. Mesmo com a sua maior aceleração e a sua suspensão ajustada, Miller sentia as rodas traseiras do Jaguar derraparem nas pedras da calçada, molhadas pela chuva. Miller viu passar por ele o depósito de peças de carros de Menck e, duas ruas depois, a sua pergunta original teve uma resposta. A ambulância entrou por uma rua pobre, mal iluminada e triste sob a chuva oblíqua, marginada de velhos pardieiros e casas de cômodos. Parou diante de uma delas, onde já estava uma viatura da polícia, com a luz azul do alto a girar lançando a sua claridade lívida através dos rostos dos curiosos agrupados em torno da porta. Um corpulento sargento de polícia Vestido de capa fez o grupo recuar e abrir espaço para a ambulância diante da porta. Aí a Mercedes parou. O motorista e o ajudante saltaram imediatamente e correram para a traseira e tiraram de lá uma padiola vazia. Depois de trocar breves palavras com o sargento, os dois subiram às pressas. Miller parou o Jaguar junto ao meio-fio do outro lado a

Quando os homens da ambulância chegaram às portas do veículo, um deles encaixou as duas pontas da padiola nos trilhos que havia lá dentro e o segundo se preparou para empurrá-la.

  • Esperem, - disse Brandt, levantando a ponta da manta que cobria o rosto do morto. Disse por cima do ombro. - É apenas uma formalidade. Tenho que dizer no meu relatório que acompanhei o corpo até à ambulância e, depois, até ao necrotério.

As luzes do interior da ambulância eram fortes e Miller conseguiu ver pelo espaço de dois segundos o rosto do suicida. A impressão que teve foi de que nunca vira nada mais velho e horrível. Ainda que se levassem em conta os efeitos do gás, as manchas da pele e o tom azulado dos lábios, o homem não devia ter sido uma beleza quando estava vivo. Alguns fios de cabelo estavam colados à cabeça quase calva. Os olhos estavam fechados. O rosto se mostrava encovado até à emaciação e, devido à falta da dentadura, as faces estavam chupadas para dentro como se quase se tocassem lá dentro, dando-lhe o aspecto de um duende num filme de horror. Os lábios azulados quase não existiam e estavam ambos sulcados de fendas verticais, fazendo Miller lembrar-se de uma caveira encolhida da bacia do Amazonas que vira certa vez, com os lábios cosidos pelos índios. Para completar o efeito, o homem parecia ter duas cicatrizes brancas e irregulares que lhe desciam pelo rosto, partindo ambas da têmpora ou do alto da orelha até ao canto da boca. Depois de um breve olhar, Brandt tornou a cobrir o rosto com a manta e fez um sinal para o servente da ambulância que estava atrás dele. Recuou enquanto o homem empurrava a padiola, trancava as portas e voltava para a frente a fim de sentar-se ao lado do companheiro. A ambulância partiu e a multidão começou a dispersar-se, acompanhada pelas exclamações do sargento:

  • Pronto, acabou tudo. Não têm mais nada para ver. Por que não vão para casa? Miller olhou para Brandt e arqueou as sobrancelhas. - Encantador.
  • É verdade. Pobre coitado. Para você, não há nada, não é mesmo? Miller parecia decepcionado.
  • Claro. Como você diz, há um caso assim todas as noites. Muita gente está morrendo no mundo esta noite e ninguém está-se importando na mesma ocasião em que Kennedy está morto. O detetive Brandt riu zombeteiramente. - Vocês, jornalistas, são incorrigíveis.
  • A verdade é que todo o mundo quer saber é de Kennedy e é por isso que compra os jornais.
  • Está bem. Tenho de voltar para a delegacia. Adeus, Peter. Apertaram-se as mãos de novo e despediram-se. Miller voltou de carro até à estação de Altona, tomou a estrada principal para o centro da cidade e, vinte minutos depois, deixava o Jaguar na garagem subterrânea perto da Praça Hansa, a duzentos metros do edifício onde ficava o seu apartamento de cobertura. Era caro guardar o carro numa garagem subterrânea durante todo o inverno, mas era uma das extravagâncias que ele se permitia.

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Gostava do seu apartamento caro porque ficava bem alto e de lá ele podia olhar para o movimentado bulevar de Steindamm. Não ligava muito a roupas e a comida e, de qualquer maneira, tendo vinte e nove anos, boa altura, cabelos castanhos crespos e os olhos castanhos que as mulheres apreciam, não tinha muita necessidade de roupas caras. Um amigo invejoso tinha-lhe dito uma vez: "Você é capaz de fazer freiras fugirem do convento". Ele tinha rido, mas ficara satisfeito porque sabia que era verdade.

A verdadeira paixão de sua vida eram carros esporte, a reportagem e Sigrid, embora ele às vezes reconhecesse, intimamente envergonhado, que se tivesse de decidir entre Sigi e o Jaguar, Sigi teria de ir procurar o seu amor em outro lugar. Depois de estacionar o Jaguar, saltoú e olhou para ele à luz da garagem. Não se cansava de olhar para o carro. Ainda quando se aproximava dele no meio da rua, parava a fim de admirá-lo, de vez em quando em companhia de alguém que passava e que, sem saber que ele era de Miller, lhe dizia: "Belo carro, hem?" Normalmente, um jovem repórter avulso não pode dirigir um Jaguar XK 150 S. Era quase impossível conseguir peças em Hamburgo, tanto mais que a produção da série XK, da qual o modelo S fora o último feito, tinha cessado em 1960. Fazia pessoalmente a manutenção, passando horas aos domingos deitado de macacão embaixo do chassi ou curvado sobre o motor. A gasolina especial que o motor usava lhe pesava no bolso, mais ainda porque os preços da gasolina eram muito altos na Alemanha, mas ele pagava sem reclamar. A recompensa era ouvir o ronco furioso das descargas quando ele pisava no acelerador na autohalin desimpedida e sentir o arranco do carro quando ele saía de uma curva numa estrada de montanha. Tinha mesmo apertado a suspensão nas duas rodas dianteiras e, como o carro tinha suspensão independente atrás, dobrava as esquinas firme como uma rocha, deixando os outros motoristas a rolar nas molas de seus bancos quando tentavam acompanhá-lo. Logo depois de comprá-lo, tinha mandado pintá-lo de preto com um longo filete amarelo embaixo de cada lado. Desde que fora feito em Coventry, na Inglaterra, e não era um carro de exportação, a direção era do lado direito, o que lhe causava de vez em quando um problema nas ultrapassagens, mas lhe permitia mudar de marcha com a mão esquerda enquanto segurava a direção com a direita, o que tinha vindo a preferir. Ainda quando pensava na maneira pela qual o comprara, admirava-se de sua sorte. No começo daquele verão, folheava sem muito interesse numa barbearia uma revista de música pop enquanto esperava a sua vez de cortar o cabelo. Não tinha hábito de coisas sobre cantores ou músicas pop, mas não havia outra disponível. A página central falava da ascensão meteórica ao estrelato e à fama internacional de quatro jovens cabeludos ingleses.

O rosto no canto direito da página, o do camarada com o nariz grande, nada significava para ele, mas os outros três lhe despertaram um eco na memória. Os nomes dos dois discos que tinham levado o quarteto às culminâncias, Please Please Me e Love Me Do nada significavam também para ele, mas aqueles três rostos o intrigaram durante dois dias: Lembrou-se então deles, cantando dois anos antes, no começo de 1961, no show de um pequeno clube da Reeperbahn. Levou mais um dia para lembrar-se do nome do clube, pois só passara por ali daquela vez para conversar com um elemento do mundo do crime de quem ele precisava de informações a respeito da quadrilha Sankt Pauli. Era o Star Club. Foi até lá, verificou a escrita e descobriu-os. Eram cinco então, os três que ele reconhecera e mais dois, Pete Best e Stuart Sutcliffe. Saindo dali, foi procurar o fotógrafo que fizera as fotos de publicidade para o empresário Bert Kaempfért e comprara os direitos de todas as fotos que ele tinha. A sua reportagem intitulada "Como Hamburgo Descobriu os Beatles" tinha sido publicada em todas as revistas de música pop da Alemanha e em muitas do estrangeiro. Com o dinheiro que ela lhe rendera, havia comprado o Jaguar que vira num vendedor de carros, o qual o comprara de um oficial do exército inglês, cuja mulher estava grávida a um ponto que não podia mais entrar nele. Comprara ainda em sinal de gratidão alguns discos dos Beatles, mas só quem os tocava era Sigi. Deixou o carro na, garagem subterrânea, subiu a rampa até à rua e foi para

Tinha havido outra pessoa presente ao jantar, o convidado de honra, que tinha voltado às pressas para o Cairo, quando chegou a notícia às nove e meia, hora do Cairo, de que o Presidente Kennedy fora morto. Era o presidente da Assembléia Nacional do Egito, Amuar Al Sadat, colaborador muito próximo do Presidente Nascer e que depois seria seu sucessor. Peter Bodden levantou o copo.

  • Kennedy, amigo dos judeus, está morto. Bebamos à saúde disso.
  • Mas nossos copos estão vazios, - protestou o Coronel Samir. O dono da casa se apressou em dar um jeito nisso, enchendo os copos vazios com uma garrafa de scotch no bufê ao lado. A referência a Kennedy como amigo dos judeus não causou estranheza a nenhum dos homens presentes na sala. No dia 14 de março de 1960, quando Dwight Eisenhower ainda era Presidente dos Estados Unidos, o Primeiro-Ministro de Israel, David BenGurion, e o Chanceler da Alemanha, Konrad Adenauer, tinham-se encontrado secretamente no Hotel Waldorf-Astoria, em Nova York, uma reunião que dez anos antes seria considerada impossível. O que se considerava impossível mesmo em 1960 foi o que aconteceu nessa reunião e foi esse o motivo pelo qual os detalhes da mesma levaram anos para transpirar e pelo qual, mesmo em fins de 1963, o Presidente Nascer não quis levar a sério a informação que a Odessa e o Moukhabarat puseram em sua mesa. Os dois estadistas haviam assinado um acordo pelo qual a Alemanha Ocidental concordou em abrir a Israel um crédito de cinqüenta milhões de dólares por ano livres de quaisquer condições. Ben-Gurion logo descobriu, porém, que ter dinheiro era uma coisa e ter uma fonte de armas segura e certa era outra. Seis meses depois, o acordo do Waldorf foi completado por outro, assinado entre os ministros da Defesa da Alemanha e de Israel, Franz-Josef Strauss e Shimon Peres. Segundo as suas condições, Israel poderia usar o dinheiro alemão para comprar armas na Alemanha. Adenauer, ciente da natureza muito mais discutível do segundo acordo, adiou a decisão durante meses até que, em novembro de 1961, chegou a Nova York a fim de conferenciar com o novo presidente, John Fitzgerald Kennedy. Este fez pressão. Não queria uma entrega direta de armas dos Estados Unidos a Israel, mas desejava que as mesmas chegassem de qualquer maneira lá. Israel precisava de aviões de caça e de transporte, obuses, peças de artilharia de 105 mm, carros blindados, viaturas blindadas de transporte de pessoas e tanques, principalmente tanques.

A Alemanha tinha tudo isso, principalmente de fabricação americana, ou comprado aos Estados Unidos para contrabalançar as despesas de manutenção de tropas americanas na Alemanha dentro do acordo da OTAN ou fabricado na Alemanha sob regime de licenciamento. Sob a pressão de Kennedy, o acordo Strauss-Peres foi fechado. Os primeiros tanques alemães começaram a chegar a Haifa em fins de junho de 1963. Era difícil manter a notícia secreta por muito tempo; havia gente demais envolvida. A Odessa descobriu tudo em fins de 1962 e informou prontamente os egípcios com os quais seus agentes no Cairo tinham contato muito estreito. Em fins de 1963, as coisas começaram a mudar. No dia 15 de outubro, Konrad Adenauer, a Raposa de Bonn, o Chanceler de Granito, renunciou e afastou-se da política. O lugar de Adenauer foi tomado por Ludwig Erhard, muito simpático aos eleitores como o pai do milagre econômico alemão, mas fraco e vacilante em matéria de política externa. Ainda quando Adenauer estava no poder, havia um grupo dentro do gabinete da Alemanha Ocidental explicitamente favorável ao arquivamento da transação de armas com Israel e à suspensão das remessas antes mesmo que começassem. O velho Chanceler reduzira-os ao silêncio com algumas palavras enérgicas e o grupo

ficara calado. Erhard era um homem bem diferente e por isso mesmo ganhara o apelido de Leão de Borracha. Logo que ele assumiu o cargo, o grupo contrário à transação das armas, concentrado no Ministério do Exterior sempre empenhado em manter excelentes relações com o mundo árabe e em melhorá-las, entrou de novo em ação. Erhard vacilou. Mas por trás de tudo estava a determinação de John Kennedy de que Israel devia conseguir suas armas por intermédio da Alemanha. E então ele fora assassinado. A grande questão na madrugada de 23 de novembro era simplesmente essa: iria o Presidente Lyndon Johnson atenuar a pressão americana sobre a Alemanha e deixar o indeciso chanceler de Bonn cancelar a transação? Na realidade, ele não fez isso, mas foram grandes as esperanças no Cairo de que o fizesse. O dono da casa na reunião amistosa nos arredores do Cairo naquela noite, depois de encher o copo de seus hóspedes, voltou-se para o bufê a fim de encher o seu. Era ele Wolfgang Lutz, nascido em Mannheim em 1921, ex-major do exército alemão e inimigo fanático dos judeus, que emigrara para o Cairo em 1961 e ali fundara a sua academia de equitação. Louro, de olhos azuis e perfil aquilino, gozava de muito prestígio não só nos círculos políticos do Cairo mas também na comunidade de exilados alemães, principalmente nazistas, às margens do Nilo.

21

Virou-se para a sala e deu a todos um amplo sorriso. Se havia alguma coisa falsa naquele sorriso, nenhum deles notou. Mas o sorriso era falso. Ele nascera em Mannheim, mas emigrara para Israel em 1933, aos doze anos de idade. O nome dele era Zeev e ele tinha o posto de RavSeren (major) no exército israelense. Era também naquela época o mais alto agente do serviço secreto israelense no Egito. No dia 28 de fevereiro de 1965, depois de uma batida em sua casa, durante a qual um transmissor de rádio foi descoberto na balança do banheiro, foi preso. Julgado a 26 de junho de 1965, foi condenado à prisão perpétua com trabalhos forçados. Libertado depois da guerra de 1967 como parte de uma troca contra milhares de egípcios prisioneiros de guerra, ele e sua mulher pisaram de novo o solo da pátria no aeroporto de Lod a 4 de fevereiro de 1968. Mas, na noite em que Kennedy morreu, tudo isso ainda pertencia ao futuro, a prisão, as torturas, o estupro múltiplo de sua mulher. Ergueu o copo para os quatro rostos sorridentes à sua frente. Na realidade, estava ansioso para que os convidados saíssem, porque uma coisa que um deles tinha dito durante o jantar era de importância vital para seu país e ele queria, desesperadamente ficar sozinho, ir para o banheiro, tirar o transmissor da balança do banheiro e mandar uma mensagem para Tel Aviv. Mas se forçou a continuar sorrindo.

  • Morram os amigos dos judeus! - disse ele num brinde. - Sieg Heil. Peter Miller acordou pouco antes das nove na manhã seguinte e virou o corpo voluptuosamente sob o enorme edredom que cobria a cama de casal. Ainda meio sonolento, sentiu o calor do corpo de Sigi estendido na cama e, por puro reflexo, aproximou-se, de modo que as nádegas dela se lhe acomodaram na base do estômago. Começou a ter automaticamente uma erecção. Sigi, ainda ferrada no sono depois de apenas quatro horas na cama, resmungou aborrecida e se deslocou mais para a beira da cama.
  • Chegue para lá, - murmurou ela, sem acordar. Miller deu um suspiro, virou o corpo e levantou o relógio para vê-lo na penumbra do quarto. Saiu então da cama pelo outro lado, enrolou uma toalha de banho pelo meio do corpo e foi descalço até à sala a fim de levantar as persianas. A luz metálica de novembro invadiu a sala, fazendo-o piscar os olhos. Concentrou a vista e olhou para o Steindamm.
  • é que quando eu estou no palco, não vejo ninguém além das luzes e, por isso, não fico envergonhada. Se eu pudesse ver o público, sairia do palco às carreiras. Isso não a impedia de tomar mais tarde o seu lugar numa das mesas quando estava novamente vestida e esperar que um dos fregueses a convidasse para beber alguma coisa. A única bebida permitida era champanha em meias-garrafas ou, de preferência, garrafas inteiras. Recebia por elas uma comissão de 15%. Embora quase sem exceção os fregueses que a convidavam para tomar champanha esperassem conseguir muito mais do que contemplar durante uma hora em atônita admiração o desfiladeiro profundo entre os seus seios, jamais o conseguiam. Era bondosa e compreensiva e sua atitude para com as atenções inequívocas dos fregueses era de delicada compaixão e não de desprezo e de ódio como a que as outras escondiam sob os seus sorrisos de néon.
  • Tenho tanta pena desses pobres homens! - dissera ela uma vez a Miller. - Deviam ter uma boa mulher em casa. Pobres homens coisa nenhuma, - protestava Miller. - São um punhado de devassos que não sabem o que fazer com o dinheiro que têm nos bolsos.
  • Bem, não estariam nessa situação se tivessem uma boa mulher para tomar conta deles, - replicara Sigrid e isso, dentro de sua lógica feminina, era irrespondível. Miller a conhecera por acaso numa visita ao bar de Madame Kokett, logo abaixo do Café Keese na Reeperbahn, quando tinha ido ter uma conversa e tomar um gole com o proprietário, que era velho amigo e contato seu. Era uma pequena muito alta e com uma corpulência correspondente à altura e que seria desproporcionada numa mulher mais baixa. Ela tirou as peças de roupa com os habituais gestos supostamente sensuais e ao compasso da música, com o ar levemente surpreso de todas as dançarinas de strip. Miller já estava farto de ver tudo isso e continuou a bebericar sem demonstrar maior interesse. Mas quando ela tirou o soutien, teve de parar e olhar com o copo a meio caminho da boca. O proprietário olhou-o ironicamente.
  • Um pedaço, hem?

Miller teve de reconhecer que ela realmente fazia as pequenas escolhidas por Playboy como o Corpo-do-Mês parecerem casos perdidos de subnutrição. E ela tinha músculos tão firmes que o busto se estendia para fora e para cima sem um só vestígio de apoio. Ao fim do número, quando os aplausos começaram, a moça deixou a sua pose meio entediada de dançarina profissional, fez uma reverência ao público e deixou o rosto abrir-se num sorriso satisfeito como o de alguém que, contra toda a expectativa, conseguiu uma coisa difícil. Foi o sorriso que encantou Miller, não a dança, nem o corpo. Perguntou se ela poderia tomar um drinque com ele e o proprietário mandou chamá-la. Desde que Miller estava em cómpanhia do patrão, ela evitou uma garrafa de champanha e pediu um gin fizz. Com surpresa, Miller descobriu que ela era uma pessoa de convívio muito agradável e perguntou se podia levá-la para casa depois do show. Ela aceitou com evidentes reservas. Fazendo o seu jogo friamente, Miller não teve um só gesto equívoco para com ela naquela noite. Era no começo da primavera e ela saiu do cabaré quando este se fechou com um casaco de lã que nada tinha de elegante, fazendo-o presumir que aquilo era intencional. Tomaram um café juntos e conversaram. Ela abandonou toda a sua tensão anterior e se mostrou muito alegre e divertida. Miller ficou sabendo que ela gostava de música pop, de pintura, de passeios pelas margens do Alster, do trabalho de casa e de crianças. Depois disso, começaram a sair juntos na única noite de folga que ela tinha por semana. Ele a levava para jantar ou para algum

espetáculo, mas sem levá-la para a cama. Ao fim de três meses, dormiram juntos e Miller sugeriu depois que ela se mudasse para o apartamento dele. Com sua atitude de firmeza em relação às coisas importantes da vida, Sigi havia chegado à decisão de que queria casar-se com Peter Miller e o único problema era saber se podia chegar a esse fim dormindo na cama dele ou não. Notando a capacidade que ele tinha de colocar outras pequenas na outra metade da cama quando houvesse necessidade, ela decidiu mudar-se para o apartamento e tornar a vida dele tão confortável que ele quisesse casar-se com ela. Naquele fim de novembro, fazia seis meses que moravam juntos. O próprio Miller, que não estava muito habituado aos confortos do lar, teve de reconhecer que ela sabia tomar conta de uma casa e fazia amor com um prazer sadio e enérgico. Nunca falava diretamente em casamento, mas tentava transmitir a sua mensagem de outras maneiras. Miller fingia não perceber. Quando passeavam ao sol pelo lago do Alster, ela fazia às vezes amizade com um garotinho, sob os olhos benévolos dos pais.

  • Não é um anjo, Peter?
  • É, sim, maravilhoso, - resmungava Peter. Depois disso, ela lhe dava um gelo durante uma hora por não haver querido aceitar a insinuação. Mas eram felizes juntos, especialmente Peter Miller, para quem a situação tinha todos os confortos do casamento e os deleites do amor regular sem os laços conjugais. Bebendo metade de seu café, Miller se meteu na cama e pôs os braços em torno dela por trás, acariciando-a delicadamente entre as pernas, o que ele sabia que iria acordá-la. Ao fim de alguns minutos, ela começou a dar murmúrios de prazer e rolou o corpo para ficar deitada de costas. Ainda massageando-a, ele se curvou e começou a beijar-lhe os seios. Como se ainda estivesse dormindo, Sigi emitiu uma série de longos gemidos e começou a mover languidamente as mãos pelas costas e pelas nádegas de Miller. Dez minutos depois, faziam amor, gritando e tremendo de prazer.
  • É uma maneira infernal de acordar alguém, - murmurou ela depois.
  • Há maneiras piores, - disse Miller. - Que horas são?
  • Quase meio-dia, - disse Miller mentindo, sabendo que ela jogaria alguma coisa nele se soubesse que eram apenas dez e meia e ela não tivera mais de cinco horas de sono. - Não tem importância. Durma mais um pouco, se ainda estiver com sono.
  • Humm. Muito obrigada, querido, você é tão bonzinho comigo, - disse Sigi e pegou no sono outra vez. Miller estava a caminho do banheiro depois de ter bebido o resto de seu café e o de Sigi também, quando o telefone tocou. Foi até à sala e atendeu.
  • Peter?
  • Sim, quem é?
  • Karl. A cabeça ainda estava meio confusa e ele não reconheceu a voz.
  • Karl? A pessoa estava impaciente.
  • Karl Brandt. Que é que há? Está dormindo ainda? Miller se recobrou.
  • Claro, Karl. Desculpe. É que me levantei agora. Alguma novidade?
  • Escute, é a respeito daquele judeu que morreu. Preciso falar com você. Miller não entendia nada. - Que judeu?

26

na Hungria, na Checoslováquia, muito longe e havia muito tempo. Não era possível sentir que havia alguma coisa de pessoal. Voltou com os seus pensamentos ao presente e percebeu a nota de inquietação que havia nas palavras de Brandt.

  • Está muito bem. Que é que há? - perguntou ao detetive. Em resposta, Brandt tirou da pasta um embrulho e colocou-o em cima da mesa.
  • O velho deixou um diário. Na realidade, não era tão velho assim. Cinqüenta e seis anos. Parece que tomou notas na época e guardou-as nos panos que lhe envolviam os pés. Depois da guerra, reproduziu as notas. São elas que constituem o diário. Miller olhou com pouco interesse para o embrulho. - Onde foi que achou isso?
  • Estava ao lado do corpo. Peguei-o e levei-o para casa. Li-o ontem à noite. Miller olhou para o ex-colega. - Que tal?
  • Horrível. Eu não fazia idéia de que as coisas tivessem sido tão ruins, o que fizeram com eles.
  • Por que foi que me trouxe isso? Brandt pareceu embaraçado e encolheu os ombros. - Pensei que isso lhe poderia dar uma reportagem. - A quem pertence isso agora?
  • Tecnicamente, aos herdeiros de Tauber. Mas nós nunca os encontraremos. Assim, creio que pertence ao Departamento de Polícia. Mas lá se limitariam a guardá-lo num arquivo. Pode ficar com ele, se quiser. Basta que não diga a ninguém quem foi que lhe deu o diário. Não quero problemas comigo na repartição. Miller pagou a conta e os dois saíram do restaurante.
  • Está bem. Vou ler a coisa. De qualquer maneira, não lhe prometo ficar entusiasmado. Pode ser que, ao fim de tudo, não dê mais que um artigo para uma revista. Brandt olhou-o com o esboço de um sorriso. - Você é um sujeito frio, hem?
  • Nada disso. O que acontece é que, como quase todo o mundo, o que me interessa é o que sucede aqui e agora. E você? Depois de dez anos na polícia, era de esperar que você fosse um tira duro e empedernido. Isto o arrasou, não foi mesmo? Brandt ficou sério. Olhou para o embrulho que Miller sobraçava e assentiu lentamente.
  • Foi, sim. Nunca pensei que tivesse sido tão ruim. E há mais uma coisa, nem tudo é história antiga. Esse caso terminou aqui em Hamburgo ontem à noite. Adeus, Peter. O detetive virou-se -e afastou-se, sem saber até que ponto estava errado.

II.

Peter Miller levou o embrulho para casa, e ali chegou pouco depois das três horas da tarde. Jogou o embrulho na mesa da sala e foi fazer um grande bule de café antes de sentar-se para ler. Abriu o embrulho sentado na sua poltrona favorita com uma xícara de café ao lado e um cigarro aceso. O diário era escrito em folhas soltas dentro de uma pasta de cartolina revestida de um plástico preto e presa na lombada por uma série de ganchos que permitiam extrair as folhas do livro ou inserir novas, caso fosse necessário. O conteúdo consistia em cento e cinqüenta páginas datilografadas, certamente batidas numa máquina muito velha, pois algumas letras estavam fora do alinhamento, ao pàsso que outras ou estavam defeituosas ou apagadas. A maioria das páginas pareciam ter sido escritas anos antes ou pelo espaço de alguns

anos, desde que as páginas, embora cuidadas e limpas, tinham o amarelado inconfundível do papel velho. Mas no começo e no fim havia várias folhas novas, evidentemente escritas alguns dias antes. Havia um prefácio de algumas folhas novas no início e uma espécie de epílogo no fim. Uma verificação das datas do prefácio e do epílogo mostrava que ambos tinham sido escritos a 21 de novembro, dois dias antes. Miller supôs que o morto os escrevera depois de ter tomado a decisão de pôr termo à vida. Um rápido olhar a alguns dos parágrafos na primeira página surpreendeu-o, porque a linguagem era um alemão claro e preciso, indicando um homem com boa instrução e cultura. Do lado de fora, na capa, fora colado um quadrado de papel branco sob um quadrado maior de celofane a fim de conservá-lo limpo.

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No quadrado de papel estava escrito a tinta preta em grandes maiúsculas o seguinte: "DIÁRIO DE SALOMON TAUBER". Miller se acomodou na poltrona, virou a primeira página e começou a ler.

DIÁRIO DE SALOMON TAUBER

PREFÁCIO

Meu nome é Salomon Tauber. Sou judeu e vou morrer. Resolvi terminar minha vida porque esta não tem mais valor algum e nada mais me resta fazer. As coisas que procurei fazer com minha vida deram em nada e meus esforços não surtiram efeito. O mal que tenho visto sobreviveu e floresceu e só o bem desapareceu envolto em pó e ridículo. Os amigos que tive, sofredores e vítimas, estão todos mortos e só os perseguidores andam por toda a parte em torno de mim. Vejo-lhes os rostos nas ruas durante o dia e à noite vejo o rosto de minha mulher, Esther, que morreu há muito tempo. Só continuei vivo tanto tempo porque havia mais uma coisa que eu queria fazer, uma coisa que eu queria ver e agora sei que nunca acontecerá. Não tenho ódio nem amargura pelo povo alemão, porque é um bom povo. Os povos nunca-são maus; só os indivíduos o são. O filósofo inglês Burke tinha razão quando disse: "Não conheço os meios pelos quais se possa decretar a culpa de toda uma nação". Não há culpa coletiva, pois a Bíblia conta como o Senhor desejou destruir Sodoma e Gomorra em vista da perversidade dos homens que ali viviam, com as mulheres e os filhos, mas desde que havia entre eles um homem justo este foi poupado porque era justo. Por conseguinte, a culpa é individual como a salvação. Quando saí dos campos de concentração de Riga e Stutthof, quando sobrevivi à Marcha da Morte para Magdeburgo, quando os soldados ingleses libertaram meu corpo ali em abril de 1945, deixando apenas minha alma acorrentada, eu odiava o mundo. Odiava as pessoas, as árvores e as pedras porque tudo conspirara contra mim e me fizera sofrer. E mais que tudo odiava os alemães. Perguntava então, como tinha perguntado muitas vezes nos quatro anos anteriores, por que o Senhor não os feria, todos os homens, mulheres e crianças, destruindo-lhes para sempre as cidades e as casas da face da terra. E quando Ele não fez isso, odiei-o também, dizendo em lágrimas que Ele havia abandonado a mim e ao meu povo, a quem fizera acreditar que era o povo eleito, e cheguei a dizer que Ele não existia.

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Mas, com o correr dos anos, aprendi de novo a amar, a amar as pedras e as árvores, o céu no alto e o rio que passava pela cidade, os cães e os gatos vadios, e as crianças que fogem de mim na rua porque eu sou tão feio. Não têm culpa.

excrementos e em condições tão más quanto as nossas. Muitas mulheres carregavam nos braços os corpos sem vida dos filhos ao saírem tropegamente para a luz. Os guardas corriam para baixo e para cima pela plataforma, organizando à força de pancadas com os cassetetes uma coluna dos deportados, antes de fazê-los marchar para a cidade. Mas que cidade? E que língua aqueles homens estavam falando? Eu descobriria mais tarde que a cidade era Riga e que os guardas das SS eram letões recrutados localmente, tão ferozmente anti-semitas quanto os homens das SS na Alemanha, mas de inteligência muito mais baixa, sendo virtualmente animais em forma humana. Atrás dos guardas, estava um grupo intimidado de camisa e calções sujos, cada um deles com um pedaço quadrado de pano preto no peito e nas costas, no qual se via um grande "J". Era um co mando especial do gueto levado para tirar os mortos dos vagões de gado e enterrá-los fora da cidade. Eram guardados também por meia dúzia de homens que tinham o " J" no peito e nas costas, mas usavam uma braçadeira e carregavam um cabo de picareta.

Eram Kapos judeus, que recebiam melhor comida do que os outros internados para fazerem o serviço que faziam. Havia alguns oficiais alemães das SS que estavam à sombra do toldo da estação e que eu só pude distinguir depois que meus olhos se habituaram à claridade. Um estava no alto de uma caixa de embalagem, olhando para os milhares de esqueletos humanos que saíam do trem com um sorriso leve mas satisfeito. Batia na bota com um chicote preto de montaria de couro trançado. Vestia o uniforme verde com raios pretos e prateados das SS como se tivesse sido feito para ele e levava na gola do lado direito os duplos relâmpagos das Waffen-SS. No lado esquerdo da gola, sua patente era indicada como capitão. Era alto e magro, com cabelos louros bem claros e olhos azuis desbotados. Aprenderia mais tarde que era um fervoroso sádico, já conhecido pelo nome que os Aliados usariam também para ele depois - o Açougueiro de Riga. Foi essa a primeira vez que vi o Capitão Eduard Roschmann, das SS... Às 5 horas da manhã do dia 22 de junho de 1941, 130 divisões de Hitler, repartidas em três grupos de exército, rolaram através da fronteira para invadir a Rússia. Na retaguarda de cada grupo de exército, vinham enxames de turmas de extermínio das SS que tinham recebido de Hitler, Himmler e Heydrich a incumbência de suprimir os comissários comunistas e as comunidades rurais judaicas das extensões de terra que o exército fosse dominando e encurralar as grandes comunidades judaicas urbanas nos guetos de cada cidade para "tratamento especial" posterior. O exército tomou Riga, capital da Letônia, a 1º de julho de 1941, e em meados do mesmo mês os primeiros comandos das SS apareceram. A primeira unidade local das seções SD e SP das SS se estabeleceu em Riga a 1º de agosto de 1941 e iniciou o programa de extermínio que se destinava a livrar de judeus a Ostland, que era o novo nome dado aos três estados bálticos ocupados. Foi então decidido em Berlim usar Riga como o campo de trânsito para a morte dos judeus da Alemanha e da Áustria. Em 1938, havia 320.000 judeus alemães e 180.000 judeus austríacos. Em julho de 1941, dezenas de milhares tinham sido colocados nos campos de concentração da Alemanha e da Áustria, especialmente Schisenhausen, Mauthausen, Ravensbruck, Dachau, Bucliensvald, Belsen e Theresienstadt, na Boêmia. Mas estavam ficando superlotados e as terras obscuras a leste pareciam um local excelente para liquidar o resto. Iniciou-se o trabalho de expansão ou abertura dos seis campos de extermínio de Auschwitz, Treblinka, Belec, Sobibor, Clielino e Maidanek. Enquanto não ficassem prontos, porém, tinha de ser encontrado um lugar para exterminar o maior número possível e "armazenar" o resto. Riga foi o lugar

escolhido. Entre 1º de agosto de 1941 e 14 de outubro de 1944, quase 200.000 judeus exclusivamente alemães e austríacos foram mandados para Riga. Oitenta mil morreram ali,

120.000 foram mandados para os seis campos de extermínio do Sul da Polônia mencionados acima, e 400 saíram de lá vivos, morrendo a metade destes em Stuttlu ou na Marcha da Morte de volta a Magdeburgo. O transporte de Teutber foi o primeiro que chegou a Riga vindo da Alemanha do Reich, às 3:45 da tarde de 18 de agosto de 1941. O gueto de Riga era parte integrante da cidade e tinha sido a residência dos judeus de Riga, dos quais só existiam algumas centenas ao tempo em que cheguei lá. Em menos de três semanas, Rosch mann e seu ajudante, Krause, tinham presidido ao extermínio da maior parte deles. O gueto ficava na extremidade norte da cidade e, além dele, estendia-se o campo aberto. Havia um muro do Indo do sul; os outros três lados eram fechados com cercas de arame farpado. Ha via um portão do lado norte, pelo qual tinham de ser feitas todas as saídas e entradas. Era guardado por duas torres de vigia guarnecidas por homens letões das SS. Desse portão, estendendo-se diretamente até o centro do gueto no muro do sul, ficava Mase Kalnu leia ou Rua da Pequena Colina. Do lado direito dessa rua, para quem olhava do sul para o norte na direção do portão principal, ficava a Blech Platz ou Praça do Chumbo, onde se faziam as seleções para as execuções, juntamente com chamadas, seleção de grupos de trabalho escravo, açoites e enforcamentos. As forcas com os seus oito ganchos de aço e os laços permanentes que se balançavam ao vento ficavam no centro da praça. Eram ocupadas todas as noites por seis infelizes pelo menos e muitas vezes diversos turnos de enforcamentos eram efetuados nos vários ganchos das forcas antes que Roschmann se desse por satisfeito com o trabalho do dia. Todo o gueto devia ter um pouco menos de cinco quilômetros quadrados, uma comunidade onde tinham vivido de 12.000 a 15.000 pessoas. Antes de nossa chegada, os judeus de Riga, ao menos os 2.000 que restavam, tinham feito o trabalho de levantar os muros com tijolos, de modo que a área deixada para nosso transporte de pouco mais de 5.000 homens, mulheres e crianças era espaçosa. Mas, depois que nós chegamos, os transportes continuaram a chegar diariamente até que a população de nossa parte do gueto subiu a 30.000 ou 40. e, com a chegada de cada novo transporte, um número de habitantes correspondente ao número dos recém-chegados sobreviventes tinha de ser executado para abrir espaço aos novos. Do contrário, a superlotação se tornaria uma ameaça à saúde dos que trabalhavam entre nós e com isso Roschmann não concordava. Assim, na primeira noite, procuramos instalar-nos nas casas mais bem construídas, um quarto para cada pessoa, aproveitando cortinas e os casacos para cobrir-nos,

, dormindo em camas de verdade. Depois de beber à vontade de uma pipa de água, meu vizinho de quarto me disse que talvez as coisas não fossem tão ruins assim. Ainda não conhecíamos Roschmann... Enquanto o verão se transformava em outono e o outono em inverno, a situação no gueto foi piorando. Todas as manhãs, a população inteira, principalmente homens, pois as mulheres e crian ças eram exterminadas à chegada em percentagens muito maiores do que os homens aptos para o trabalho, era reunida na Praça do Chumbo, todos empurrados e impelidos pelas coronhas dos fuzis dos