








Estude fácil! Tem muito documento disponível na Docsity
Ganhe pontos ajudando outros esrudantes ou compre um plano Premium
Prepare-se para as provas
Estude fácil! Tem muito documento disponível na Docsity
Prepare-se para as provas com trabalhos de outros alunos como você, aqui na Docsity
Os melhores documentos à venda: Trabalhos de alunos formados
Prepare-se com as videoaulas e exercícios resolvidos criados a partir da grade da sua Universidade
Responda perguntas de provas passadas e avalie sua preparação.
Ganhe pontos para baixar
Ganhe pontos ajudando outros esrudantes ou compre um plano Premium
Comunidade
Peça ajuda à comunidade e tire suas dúvidas relacionadas ao estudo
Descubra as melhores universidades em seu país de acordo com os usuários da Docsity
Guias grátis
Baixe gratuitamente nossos guias de estudo, métodos para diminuir a ansiedade, dicas de TCC preparadas pelos professores da Docsity
pnab 2017 enfermagem saudepublica
Tipologia: Resumos
1 / 14
Esta página não é visível na pré-visualização
Não perca as partes importantes!
RESUMO O artigo discute os significados e as implicações das mudanças introduzidas pela Política Nacional de Atenção Básica 2017, que promovem a relativização da cobertura uni- versal, a segmentação do acesso, a recomposição das equipes, a reorganização do processo de trabalho e a fragilização da coordenação nacional da política. Argumenta-se que sua revisão indica sérios riscos para as conquistas obtidas com o fortalecimento da Atenção Primária à Saúde no Brasil. Na conjuntura atual de fortalecimento da ideologia neoliberal, tais modifi- cações reforçam a subtração de direitos e o processo de desconstrução do Sistema Único de Saúde em curso no País. PALAVRAS-CHAVE Atenção Primária à Saúde. Saúde da família. Política pública. Política de saúde. ABSTRACT The article discusses the meanings and implications of the changes introduced by the National Policy of Primary Healthcare 2017, which promote the relativization of universal cover- age, the segmentation of access, the recomposition of the teams, the reorganization of the work process and the weakening of the national policy coordination. It is argued that its review indi- cates serious risks to the achievements obtained with the strengthening of the Primary Health Care in Brazil. In the current conjuncture of strengthening neoliberal ideology, these changes reinforce the subtraction of rights and the process of deconstruction of the Unified Health System in progress in the Country. KEYWORDS Primary Health Care. Family health. Public policy. Health policy. 11
Márcia Valéria Guimarães Cardoso Morosini^1 , Angélica Ferreira Fonseca^2 , Luciana Dias de Lima^3 (^1) Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio (EPSJV)
12 Morosini MVGC, Fonseca AF, Lima LD
Transcorridos 27 anos desde a promulga- ção das Leis nº 8.080 e nº 8.142, de 1990, é possível dizer que, mesmo com dificuldades e lacunas, foram as políticas direcionadas para o fortalecimento da Atenção Primária à Saúde (APS) no Brasil que mais favoreceram a implantação dos princípios e diretrizes do Sistema Único de Saúde (SUS). Expressas por meio de documentos es- pecíficos, as Políticas Nacionais de Atenção Básica (PNAB) 1-3^ tiveram papel fundamental nesse processo, permitindo inflexões impor- tantes, principalmente no modelo de atenção e na gestão do trabalho em saúde nos muni- cípios. Isso ocorreu de modo articulado à in- trodução dos mecanismos de financiamento que desempenharam papel indutor na sua adoção como eixo estruturante da organiza- ção das ações e serviços de saúde 4,. Em setembro de 2017, foi publicada uma nova PNAB^3 , que suscitou a crítica de or- ganizações historicamente vinculadas à defesa do SUS, como a Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco), o Centro Brasileiro de Estudos de Saúde (Cebes) e a Escola Nacional de Saúde Pública (Ensp). Em nota conjunta, as três instituições de- nunciaram, entre outras coisas, a revogação da prioridade dada à Estratégia Saúde da Família (ESF) na organização do SUS com a provável perda de recursos para outras configurações da Atenção Básica (AB), em um contexto de retração do financiamen- to da saúde. Demonstraram preocupação com retrocessos em relação à construção de uma APS integral, que vinha direcionando o modelo de AB baseado na ESF^6. Este artigo teve como objetivo analisar as alterações nas diretrizes da AB promovi- das no texto da PNAB 2017, tomando como parâmetros a PNAB 2011 e os princípios da universalidade e da integralidade da atenção à saúde, na perspectiva de uma APS forte e de uma rede integrada de atenção à saúde no SUS. Os temas analisados foram: a cobertura; a posição relativa da ESF; a configuração das equipes; e a organização dos serviços. Inicialmente, foram identificados alguns marcos instituintes da AB no Brasil e suas contribuições para a configuração do SUS. Na sequência, procurou-se situar o contexto de formulação dessa nova política e discutir prováveis riscos e retrocessos das alterações propostas para o SUS.
Em 1994, a criação do Programa Saúde da Família (PSF) permitiu ampliar a cobertura em saúde, em um movimento inicialmente voltado apenas para a parte da população brasileira em situação social mais vulnerá- vel. Configurou-se um modo de compor a equipe e de organizar o processo de trabalho, com base territorial e responsabilidade sani- tária, referências sustentadas pelas sucessi- vas políticas. Com a Norma Operacional Básica do SUS de 1996 (NOB/96), o PSF assumiu a condi- ção de estratégia de reorientação da APS, em substituição às modalidades tradicionais. A NOB/96 instituiu os componentes fixo e variável do Piso da Atenção Básica (PAB) e estabeleceu incentivos financeiros aos muni- cípios que adotassem o Programa de Agentes Comunitários de Saúde (Pacs) e o PSF, tor- nando automática e regular a transferência de recursos federais para o financiamento desses programas^7. Essa priorização teve repercussões con- cretas, e, em 1998, foi estabelecido o primeiro Pacto de Indicadores da Atenção Básica^8 , pro- cesso que se renovou periodicamente por meio da negociação intergestores de metas para a avaliação e o monitoramento da AB no SUS. Desdobrou-se, também, em outros dispositivos de fortalecimento da AB, como, por exemplo, a criação do Sistema de Informação da Atenção Este é um artigo publicado em acesso aberto (Open Access) sob a licença Creative Commons Attribution, que permite uso, distribuição e reprodução em qualquer meio, sem restrições, desde que o trabalho original seja corretamente citado.
14 Morosini MVGC, Fonseca AF, Lima LD ‘racionalizantes’, sob a justificativa da ne- cessidade de enfrentar o desequilíbrio fiscal, atribuído ao descontrole das contas públicas decorrentes de ‘políticas paternalistas’, que teriam agravado a crise econômica. A orienta- ção é modificar a destinação dos recursos do fundo público, limitando as políticas sociais, promovendo a redução da dimensão pública do Estado e ampliando a participação do setor privado. Do mesmo modo, opera-se uma ofen- siva contra a classe trabalhadora, atingindo conquistas fundamentais, como os direitos trabalhistas e previdenciários. Trata-se de um conjunto de reformas supressoras de direitos sociais, em uma represália sem proporções ainda calculadas, do capital contra o trabalho. Entre as alterações legislativas que viabi- lizam esse processo, destaca-se a promulga- ção da Emenda Constitucional nº 95/2016, conhecida como a emenda do ‘Teto dos Gastos’, que congela por 20 anos a destina- ção de recursos públicos e produz efeitos nas diversas políticas, especificamente no finan- ciamento do SUS. Essas medidas incidem sobre uma relação frágil entre o SUS e a sociedade brasileira, e caminham em paralelo ao fortalecimento ideológico do setor privado como alterna- tiva de qualidade para o atendimento das necessidades de saúde. Conforma-se, assim, o terreno propício para dar prosseguimento à desconstrução do SUS, cujo financiamento jamais alcançou um patamar de suficiência e estabilidade, ao passo que as empresas priva- das de planos de saúde sempre foram objeto de fortalecimento, por meio da destinação de incentivos financeiros contínuos^15. Nessa conjuntura, as tendências que orientavam a revisão da PNAB 2011 já vinham sendo anunciadas, pelo menos, desde outubro de 2016, quando foi reali- zado o VII Fórum Nacional de Gestão da Atenção Básica, cujos indicativos para tal revisão foram publicados em um docu- mento-síntese^16. Ali, já se apresentava uma perspectiva regressiva, especialmente pre- ocupante, considerando-se a correlação de forças muito desfavorável aos que defen- dem a saúde como um direito universal^17. Desde então, as notícias sobre a revisão da PNAB foram se intensificando, mas sua produ- ção foi pouco divulgada oficialmente e sua dis- cussão manteve-se em espaços restritos, como a Comissão Intergestores Tripartite (CIT) e as reuniões entre os técnicos do MS. Em 27 de julho de 2017, o texto preliminar foi apre- sentado na CIT e encaminhado para consulta pública por dez dias. Apesar do curto prazo, a consulta recebeu mais de 6 mil contribuições, sem que tenham gerado, entretanto, mudanças expressivas no texto original ou tenham sido divulgados os seus resultados. A nova PNAB foi aprovada em 30 de agosto de 2017, pouco mais de um mês após tornar-se oficialmente pública. Uma característica marcante do texto da nova PNAB^3 é a explicitação de alternativas para a configuração e implementação da AB, traduzindo-se em uma pretensa flexibilidade, sustentada pelo argumento da necessidade de atender especificidades locorregionais. Supostamente, amplia-se a liberdade de escolha dos gestores do SUS, o que poderia ser visto como positivo por responder às demandas de um processo de descentraliza- ção mais efetivo. Entretanto, esse processo só se completaria com a transferência de recursos necessários à autonomia de gestão pelos municípios, e com os mecanismos de controle social e participação popular. A pre- sente análise não valida o raciocínio otimis- ta, justamente porque é fruto de uma leitura informada pela atual conjuntura, que indica limites rigorosos, a partir dos quais essa polí- tica e suas possibilidades se realizarão. Pode-se dizer que o discurso da PNAB se constrói de modo ambivalente, incorpo- rando verbos como sugerir e recomendar, que retiram o caráter indutor e propositivo da política e expressam a desconstrução de um compromisso com a expansão da saúde da família e do sistema público. Entende-se, ainda, que essa estrutura de texto tem o pro- pósito de blindá-lo à crítica, tornando suas proposições de mais fácil assimilação, afinal,
Política Nacional de Atenção Básica 2017: retrocessos e riscos para o Sistema Único de Saúde 15 a partir do que está escrito, diversas opções seriam possíveis. Esta ambivalência é um recurso que permite omitir escolhas prévias (ideológicas), que parecem determinar o pro- cesso de revisão da PNAB no momento político atual. Tais escolhas remetem a uma concepção de Estado afinada com a racionalidade neo- liberal, que aponta para o sentido inverso a uma maior presença do Estado, requerida para a continuidade do SUS como projeto e da AB como estratégia principal para a garantia da saúde como direito universal. Feitas essas considerações mais gerais, apresenta-se a discussão de elementos es- pecíficos presentes na nova PNAB, inventa- riando os riscos potenciais detectados para o SUS e seus princípios.
Como ressaltado, a universalidade é um princípio estruturante da atenção à saúde no âmbito do SUS, que, aliada à integrali- dade, tem distinguido a PNAB de confor- mações simplificadas e focalizantes de APS. Baseadas nesses princípios, as PNAB 2006 e 2011 vinham projetando a expansão da ESF, nas duas últimas décadas. Considerando este movimento, o tema da cobertura da AB destaca-se como um importante indicador da intencionalidade da PNAB 2017. Retrospectivamente, percebe-se que, entre os itens necessários à implantação da ESF nas PNAB 2006 e 2011, encontrava-se uma única referência à cobertura universal. Ela se construiu de forma mediada, repre- sentada pela relação entre o número previs- to de Agentes Comunitários de Saúde (ACS) por equipe e a cobertura de 100% da popula- ção cadastrada. Nessas PNAB, constava que, para a implantação de EqSF, seria necessário um número de ACS suficiente para cobrir 100% da população cadastrada, com um máximo de 750 pessoas por ACS e de 12 ACS por EqSF. A PNAB 2011 acrescentou o alerta de que não se deveria ultrapassar o limite máximo de moradores vinculados a cada equipe, evidenciando a preocupação com as condições que poderiam diretamente afetar a qualidade da atenção. No texto da PNAB 2017, anterior à con- sulta pública, não há nenhuma referência à cobertura universal. A referência a 100% de cobertura é retomada no texto publicado, porém restrita a certas áreas: Em áreas de risco e vulnerabilidade social, in- cluindo de grande dispersão territorial, o nú- mero de ACS deve ser suficiente para cobrir 100% da população, com um máximo de 750 pessoas por agente, considerando critérios epidemiológicos e socioeconômicos 3(71). A flexibilização da cobertura populacional está relacionada também aos parâmetros da relação equipe/população apresentados no item ‘Funcionamento’. Ali se lê que a popula- ção adscrita recomendada por equipe de AB e EqSF é de 2 mil a 3,5 mil pessoas. Entretanto, neste mesmo item, de acordo com as espe- cificidades do território, prevê-se também a possibilidade de “outros arranjos de ads- crição” 3(70) , com parâmetros populacionais diferentes, que podem ter alcance “maior ou menor do que o parâmetro recomendado” 3(70). A decisão a esse respeito fica a cargo do gestor municipal, em conjunto com a equipe de AB e o Conselho Municipal ou Local de Saúde, com a ressalva de que fica assegurada a qualidade do cuidado. Na PNAB 2011 havia a seguinte indicação: “quanto maior o grau de vulnerabilidade, menor deverá ser a quantidade de pessoas por equipe” 2(55). Segundo essa redação, o critério de flexibilização de parâmetros po- pulacionais apontava claramente a intenção de favorecer aqueles que apresentassem maior necessidade de atenção. O mesmo não pode ser dito em relação à nova PNAB, que, mais uma vez, se descompromete a adotar parâmetros que favoreçam um processo de atenção progressivamente mais qualificado. Ao desconsiderar a relação entre quantidade
Política Nacional de Atenção Básica 2017: retrocessos e riscos para o Sistema Único de Saúde 17 ponto de constituírem um padrão opcional, ou seja, apenas recomendável? A análise em- preendida conclui o inverso. Este é um modo de consentir com o aprofundamento das desigualdades e a segmentação do acesso e do cuidado que marcam a APS em diversos países da América Latina, como apontam Giovanella et al.^14. O risco colocado, pela diferenciação entre os serviços ‘essenciais’ e ‘ampliados’, é de que se retome a lógica da seletividade com dire- trizes que reforcem a segmentação e a frag- mentação dos serviços e das ações de saúde no SUS, a partir da APS. Segundo Conill, Fausto e Giovanella^18 , a segmentação e a fragmentação são categorias fundamentais para a compreensão dos problemas dos siste- mas de saúde. Estão relacionadas à garantia dos direitos sociais e são muito sensíveis aos problemas de financiamento público, com efeitos restritivos às possibilidades de acesso aos demais níveis de atenção e à constituição de redes integradas de atenção à saúde^19. A segmentação propugnada pela PNAB deve ser examinada de modo articulado à racionalidade, aos interesses e à perspectiva de sistema de saúde enunciada pelo atual ministro da saúde, Ricardo Barros, segundo a qual seria desejável compreender os setores público e privado suplementar como partes de um todo único. Neste sentido, ampliam- -se as condições para que a saúde suplemen- tar passe a integrar o sistema de serviços de saúde, desta vez diretamente impulsionado pelo desenho das políticas públicas. A base argumentativa para a segmen- tação do cuidado, na nova PNAB, deturpa a ideia de especificidades territoriais que antes justificavam e davam consistência ao princípio da equidade, este que remete à obrigação ético-política de se estabelece- rem parâmetros e processos visando à su- peração de desigualdades historicamente produzidas na sociedade brasileira, de modo a revelar e interferir sobre as condições que as produzem. Contrariamente, esta seg- mentação do cuidado traz as bases para o desenvolvimento de um SUS seletivo, que universaliza mínimos e estratifica padrões de atenção, justificados por situações precá- rias, cuja superação não está no horizonte de compromissos das políticas públicas proje- tadas no atual contexto. São sentidos opostos de utilização de uma noção – o território
18 Morosini MVGC, Fonseca AF, Lima LD produz adesão ao setor privado por exclusão do setor público. Entretanto, não é óbvio com- preender que a exclusão do setor público deve ser ativamente produzida e se faz por meio da restrição ao acesso, associada à baixa qualidade dos serviços. É esta combinação que acarreta a evasão de parte das classes populares ou a não adesão da classe média ao SUS. Compreende-se que estão em curso três eixos de ação: a) definir padrões mínimos e ampliados para a AB; b) estabelecer uma “regulação que permita menos cobertura e menos custo”^20 ; e c) colocar no mercado planos baseados na oferta de um rol mínimo do mínimo 20,21^ de serviços. Articuladas, estas ações integram um processo que, pela exclusão do SUS, pode gerar clientela para os planos privados e viabilizar planos inca- pazes de atender às necessidades de saúde. Neste cenário, a nova PNAB tende a servir como plataforma para o avanço de políticas que aprofundem tais possibilidades. A naturalização da ingerência do setor privado no SUS, expressa por pensamentos tais como ‘isso já acontece’, contribui para ofuscar o fato de que a AB vinha se consti- tuindo como um contraponto a essa reali- dade. Uma vez sustentado o movimento de expansão e qualificação da ESF, a AB ten- deria a concretizar, a médio e longo prazo, a experiência do acesso à atenção à saúde, efe- tivamente pública. Esta é a aposta que está sendo suspensa ou interrompida.
Em relação ao papel da ESF, o texto da PNAB 2017 apresenta uma posição, no mínimo, ambígua. Ao mesmo tempo em que mantém a ESF como prioritária no discurso, admite e incentiva outras estratégias de organização da AB, nos diferentes territórios: Art. 4º – A PNAB tem na saúde da família sua estratégia prioritária para expansão e consolidação da Atenção Básica. Contudo, reconhece outras estratégias de organização da Atenção Básica nos territórios, que devem seguir os princípios, fundamentos e diretrizes da Atenção Básica e do SUS descritos nesta portaria, configurando um processo progres- sivo e singular que considera e inclui as es- pecificidades locorregionais, ressaltando a dinamicidade do território 3(68). Essa ambiguidade torna-se mais visível quando se analisam, em conjunto, certos elementos dessa política. Destacam-se, prin- cipalmente, alterações nas regras de compo- sição profissional e de distribuição da carga horária dos trabalhadores nas equipes de AB. A presença dos ACS não é requerida na composição mínima das equipes de AB, diferentemente do que acontece na ESF. Considerando as recentes conquistas desses trabalhadores, em relação aos vínculos em- pregatícios e à definição do piso salarial da categoria, entende-se que esta é uma pos- sibilidade que desonera financeiramente a gestão municipal, tornando-se extrema- mente atraente no contexto de redução de recursos já vivenciado, e cujo agravamento é previsto. A presença desse trabalhador e a conti- nuidade, com regularidade, das ações por ele desempenhadas nunca estiveram tão em risco. O prejuízo recai principalmente sobre as ações educativas e de promoção da saúde, pautadas pela concepção da determinação social do processo saúde-doença e da clínica ampliada, que configuram bases impor- tantes para a reestruturação do modelo de atenção à saúde. Em relação à carga horária, determina-se o retorno da obrigatoriedade de 40 horas para todos os profissionais da ESF, inclusi- ve os médicos, cuja carga horária havia sido flexibilizada na PNAB 2011. Esta alteração retoma condições estabelecidas desde a implantação do PSF, que são consideradas
20 Morosini MVGC, Fonseca AF, Lima LD desenvolvido pelos ACE na lista das atribuições específicas desse trabalhador. Em síntese, o ACE preserva a responsabili- dade sobre práticas tradicionalmente associa- das ao seu trabalho, mas sofre um acréscimo em suas tarefas ao incorporar as atividades hoje atribuídas aos ACS. Estes, por sua vez, sofrem uma descaracterização do seu traba- lho, que já vem sendo esvaziado das ações de educação em saúde, em virtude da priori- zação de atividades associadas às ‘linhas de cuidado’, que têm assumido um foco na pre- venção de doenças, assim destinando a esses trabalhadores ações mais pontuais. É preciso também considerar o quanto a integração entre esses profissionais estaria mais a serviço do corte de custos, pela di- minuição de postos de trabalho, do que do aprimoramento do processo de trabalho e do aumento da eficiência das EqSF. Um re- sultado provável para esta relação será uma intensificação ainda maior do trabalho dos agentes que restarem nas equipes. Ainda que se concorde com a necessida- de de aproximação e de articulação entre os campos da vigilância e da atenção à saúde, isto não se resume à fusão de seus agentes. Enquanto ainda não se efetivaram esforços suficientes para se alcançar a integração dos ACE nas EqSF, conforme estabelecido pela PNAB de 2011^2 , projeta-se um processo de trabalho que desconsidera as especificidades dessas áreas técnicas e suas respectivas polí- ticas. Além disto, não se desenvolvem pontos de integração no planejamento do trabalho e da formação, nem projetos de ação conjunta entre esses trabalhadores, nos territórios e nas unidades de saúde.
O SUS possui caráter nacional e universal, e integra um conjunto amplo de ações que devem ser organizadas em uma rede des- centralizada, regionalizada e hierarquizada de serviços. Vários aspectos influenciam a implantação deste modelo, entre eles, as características da federação brasileira, que se distingue pelo reconhecimento dos mu- nicípios como entes autônomos a partir da Constituição de 1988. Tais municípios (5.570, no total) são muito desiguais entre si e, em sua maioria (cerca de 90%), possuem pequeno ou médio porte populacional e li- mitadas condições político-institucionais para assumirem as responsabilidades sobre a gestão das políticas de saúde que lhes são atribuídas. Diversos foram os esforços empreendidos na trajetória de implantação do SUS para lidar com as tensões do federalismo brasilei- ro. As políticas direcionadas para o fortale- cimento da ESF permitiram a consolidação do papel coordenador da União no pacto federativo da saúde^22. Normas e incentivos financeiros federais favoreceram a implan- tação das políticas pelos municípios, com desconcentração de serviços no território e consolidação da ESF como referência na- cional para organização da AB no SUS. Essas políticas também possibilitaram uma redis- tribuição não desprezível de recursos finan- ceiros, com privilegiamento de municípios situados em regiões mais carentes, mesmo em um contexto de dificuldades de financia- mento da saúde^23. A nova PNAB, ao flexibilizar o modelo de atenção e do uso dos recursos transferidos por meio do PAB variável, fragiliza o poder de regulação e indução nacional exercido pelo MS, responsável por avanços significati- vos no processo de descentralização do SUS. No que tange ao financiamento, ressalta-se a ausência de mecanismos de valorização di- ferenciada da ESF em relação às chamadas equipes de AB, para as quais, anteriormente, não eram destinados esses recursos. O fato é que passa a ser facultada à gestão municipal a possibilidade de compor equipes de AB, de acordo com as características e as
Política Nacional de Atenção Básica 2017: retrocessos e riscos para o Sistema Único de Saúde 21 necessidades do município. Mais uma vez, aparece o recurso às especificidades locais como justificativa para a flexibilização do modelo de AB. No discurso dos gestores, a abertura de ‘novas’ possibilidades de fi- nanciamento e organização da AB tem sido valorizada quase como um reparo às supos- tas ‘injustiças’ cometidas contra as formas tradicionais de configuração da AB. O MS justifica as mudanças alegando que as regras praticadas nas PNAB anteriores acarretaram um desfinanciamento de parte dos serviços de AB existentes no País. Entretanto, esses argumentos mostram-se falaciosos na medida em que suprimem do debate as análises que mostram os impactos positivos da adoção e expansão da ESF nas condições de vida e saúde da população. Também não levam em consideração que as especificidades locorregionais já eram objeto das PNAB anteriores e de incentivos financeiros vigentes, sendo possível obser- var a adoção de adaptações ao modelo pre- conizado pela ESF em vários municípios do País. Além disto, tais mudanças acabam por favorecer as capitais e os centros urbanos metropolitanos, que aderiram à ESF de modo tardio e apresentam menor cobertura. Isso poderá acarretar um redirecionamento de recursos para regiões mais desenvolvidas e com maior capacidade de arrecadação de tributos, comprometendo os avanços aloca- tivos do setor. Por fim, mais uma vez, chama a atenção a ausência de uma análise contextualizada sobre o impacto das mudanças que estão sendo propostas na PNAB 2017, e que serão implementadas nos próximos anos. A liber- dade e a maior autonomia requeridas pelos gestores locais se inserem em uma conjuntu- ra de ameaças aos direitos sociais, e de forte restrição fiscal e orçamentária, com agrava- mento da situação de subfinanciamento do SUS. Esse contexto condicionará as escolhas políticas, ampliando as dificuldades locor- regionais para a manutenção de serviços de AB frente aos custos elevados da atenção de média e alta complexidade no SUS. A escas- sez de recursos públicos disponíveis para a saúde também tenderá a aumentar as dispu- tas redistributivas, favorecendo a influên- cia de interesses particulares nas decisões alocativas do setor, a implantação de planos privados de cobertura restrita e de modelos alternativos à ESF, com resultados duvidosos para a organização da AB.
Desde o início dos anos 1990, para grande parte da população brasileira, a AB tem sido a face mais notável de um sistema de saúde orientado por princípios de universalidade, integralidade e equidade. Confrontada com tendências que priorizam programas foca- lizantes e compensatórios, mais afeitos à racionalidade neoliberal hegemônica, a ESF tem se configurado como meio de expansão do acesso e de realização do direito à saúde. Alçada à condição de estratégia de reo- rientação do modelo de atenção à saúde, tem ainda um longo caminho a percorrer e obstá- culos a ultrapassar, antes que seja alcançado o objetivo de efetivar uma clínica ampliada, que articule diferentes saberes, trabalhado- res e setores da política pública, de modo a compreender e enfrentar os determinantes sociais do processo saúde-doença. Há muito a ser reorganizado e modifica- do em função dos resultados das pesquisas e das avaliações realizadas sobre a AB. A qua- lificação de trabalhadores de todos os níveis de formação que compõem as EqSF, visando ao trabalho baseado no território; a integra- ção entre prevenção, atenção e promoção da saúde; a organização de processos de trabalho mais democráticos e participativos, nos quais os trabalhadores tenham papel importante no planejamento das ações, na definição e dis- cussão das metas e prioridades das equipes; a gestão pública do trabalho e dos serviços de AB; e a regularização dos vínculos contratuais são questões que precisam ser priorizadas.
Política Nacional de Atenção Básica 2017: retrocessos e riscos para o Sistema Único de Saúde 23
24 Morosini MVGC, Fonseca AF, Lima LD