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Economia contemporânea mundial Durkheim e Augusto Comte
Tipologia: Esquemas
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Dossiê
Gustavo Biscaia de Lacerda *
Resumo O objetivo deste artigo é apresentar as críticas de Augusto Comte à Eco- nomia Política de sua época, bem como as propostas de reforma social daí advindas. O arcabouço metodológico consiste em categorias propostas pela História das Idéias, em particular por M. Bevir e Q. Skinner. O que poderíamos chamar de “teoria econômica comtiana” está presente na sua “Estática Social”, na parte relativa à propriedade e aos elementos materiais da sociedade, e na sua “Dinâmica Social”, no que se refere às inter-relações entre as mudanças políticas, sociais e econômicas ao longo da história. Essa teoria econômica dialoga tanto com os liberais quanto com os “comunis- tas”, ao afirmar, por um lado, a necessidade da propriedade, mas também, por outro lado, a subordinação da propriedade às necessidades sociais e ao criticar severamente o individualismo. Daí resultam conseqüências diretas e indiretas: por um lado, a sociedade não é redutível ao “mercado” e o Estado não pode ser omisso frente às flutuações econômicas; por outro lado, os conflitos de interesses mais imediatos de proletários e “patrícios” não podem ignorar a origem social da riqueza, sendo necessárias medi- das morais e legais para regular e resolver esses conflitos. Nesse sentido, Comte é também um prenunciador do Estado de Bem-Estar Social ou, pelo menos, um teórico da justiça social. Palavras-chave: Augusto Comte, Positivismo, Sociologia, crítica à Economia Política, holismo metodológico, justiça social.
Volume 8 – Nº 15 – outubro de 2009
m 2008 Philippe Steiner publicou um interessante artigo tratando de uma tradição da Sociologia francesa de crítica à Economia Política. Essa tradição começaria com Augusto Comte, o próprio fun- dador da Sociologia, passaria por Durkheim e pelos durkheimianos e chegaria, no fim do século XX, a Pierre Bourdieu; além disso, tal tradição constituir-se-ia de críticas teóricas e metodológicas aos pro- cedimentos teóricos adotados pela Economia Política e, a partir disso, às conseqüências práticas ( i. e ., sociais) das pesquisas econômico- políticas. Essa tradição que Steiner apresenta serve como forma de recuperar alguns ancestrais – e, portanto, para legitimar intelectual e academicamente – a chamada Nova Sociologia Econômica, que, muito grosseiramente, afirma que a “economia” em si não existe, mas que deve ser socialmente situada e, assim, compreendida. Não é nosso propósito questionar a correção de tal elabora- ção – mesmo porque concordamos com ela. O que nos interessa, particularmente, é apresentar os argumentos que o iniciador dessa tradição, bem como seus discípulos, utilizavam para contrapor-se à Economia Política. Assim, neste artigo veremos as concepções de Au- gusto Comte sobre os fenômenos econômicos e como eles inserem-se na concepção mais ampla de Sociologia que ele tinha; além disso, veremos algumas conseqüências práticas das concepções teóricas anteriores, com as conseqüentes críticas à Economia Política. Algumas palavras sobre os procedimentos metodológicos que adotamos e que nos orientam são interessantes. Consideramos algu- mas elaborações de dois expoentes da História das Idéias, Mark Bevir e Quentin Skinner. Elas não são completamente compatíveis entre si, mas permitem uma aproximação suficientemente grande para que, tomadas algumas precauções, sejam combinados proficuamente. Assim, a primeira referência é a de Bevir (1999), que é a mais operacional das duas. Para Bevir, os intelectuais “maduros”, isto é, aqueles que já passaram da fase formativa, pedagógica, e já produ- zem em termos intelectuais com autonomia, têm seus pensamentos formados a partir de várias tradições. Essas tradições são as várias fontes que informaram seus pensamentos ao longo do tempo: famí- lias, escolas, grupos políticos, sociais, religiosos e assim por diante;
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sempre integram disputas, ou seja, são feitos a partir dessas disputas para integrarem-nas. Evidentemente, essa perspectiva é adequada para uma pesquisa que enfatize a política da argumentação e suas relações com os conflitos políticos e sociais, mas não se pode levá-la demasiadamente longe, pois reduz todas as concepções humanas às disputas, deixando de lado ou menosprezando as elaborações substantivas (as crenças, em sentido amplo), as descrições da rea- lidade, as elaborações mais ou menos “desinteressadas”. Para dar um exemplo extremo e dificilmente discutível neste contexto, basta pensar-se em Os elementos , de Euclides: a qual disputa política ou social essa elaboração vincula-se? Assim, evitando o exagero de con- siderar a perspectiva de Skinner como aplicável a qualquer situação, o fato é que ela apresenta um evidente valor operacional. Passemos, então, à apresentação dos argumentos de Comte.
Apresentar os elementos básicos da Sociologia comtiana não é uma tarefa simples ou fácil. Isso devido a duas ordens de motivos: em primeiro lugar, como argumentou Juliette Grange (2000), se há um autor que elaborou um “sistema” de pensamento, esse autor é Comte. O que significa que a obra comtiana compõe um sistema? Não é apenas uma série de princípios e idéias que se encadeiam entre si, a partir de considerações a priori ou a posteriori como no caso de Descartes, mas, em um sentido muito mais forte, que to- dos os seus elementos relacionam-se com todos, de tal sorte que para explicar a importância relativa de uma concepção é necessário conhecer não apenas a lógica interna do sistema como também os demais elementos desse sistema. Ora, sendo a obra de Comte enciclopédica e enormemente erudita, buscando abranger todos os principais elementos da existência humana, tratar de um aspecto dela, em poucas páginas, é uma tarefa árdua. Em segundo lugar, a despeito da reiterada afirmação de que Comte é um autor clássico da Sociologia, o fato é que sua obra é pouco ou nada conhecida, o que obriga os expositores a retomarem, cada vez que tratam dela, a sua lógica e seus argumentos mais importantes, não apenas para expor o que é necessário mas também para dirimir
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As críticas de Augusto Comte à Economia Política
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os mal-entendidos. Não há dúvida de que essa constante repetição, além de enfadonha, é motivo de desperdício de recursos e energia.
Dito isso, apresentemos tais elementos 3. Antes de mais nada, é importante indicar que a elaboração comtiana visa a tornar positivas – isto é, científicas e humanas – as especulações sociais e morais: retirando essas especulações do domínio da teologia e da metafísica, é possível o ser humano perceber-se como um ser social, isto é, histórico e que vive apenas na e por meio da sociedade. Esse reconhecimento, além de permitir ao ser humano compreender melhor e mais completamente a sua própria realidade, também é o primeiro passo para aperfeiçoar essa mesma realidade. Dessa forma, Comte inclui-se na relação dos reformadores sociais do século XIX, que lançaram as bases do pensamento social contemporâneo a fim de intervir na sociedade 4.
O caráter social – naturalmente social – do ser humano revela- se com clareza e, no fundo, existe apenas por meio de seu caráter histórico: é a sucessão das gerações, cada qual com uma pequena contribuição para o conjunto da sociedade, que faz humano o ser humano. Essa historicidade conduz a um princípio ao mesmo tem- po teórico e metodológico: a visão de conjunto é a que permite a positividade de vistas em todos os domínios, incluindo aí o social. Evidentemente, no que se refere à sociedade, a visão de conjunto pode assumir duas perspectivas: em um dado instante e ao longo do tempo. As diversas atividades humanas em um dado momento histórico produz a solidariedade, mas, como afirma e reitera Comte, é a continuidade histórica que caracteriza de fato o ser humano (cf. COMTE, 1980, v. III, p. 1-8).
Foi a partir da visão de conjunto histórica que Comte elaborou a sua lei dos três estados, que é o princípio fundamental do seu Po-
3 A apresentação que fazemos da obra de Comte considera a sua inteireza, isto é, além do Sistema de filosofia positiva (1830-1842), também e principalmente o Sistema de política positiva (1851-1854). Por motivos de concisão expositiva apresentaremos os argumentos e as idéias, sem nos preocuparmos em indicar, para cada questão, as referências bibliográficas específicas. 4 Disso já se torna claro que as correntes afirmações de que Comte era um pen- sador isolado em uma torre de marfim e cuja obra buscaria uma “objetividade” ou uma “neutralidade” asséptica já se revelam falsas.
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intelectual, a positividade é sintética e abrange o conjunto da natureza humana (isto é, inteligência, sentimentos e atividade prática). Mais uma vez surge o tema da visão de conjunto: desta feita, a questão é determinar uma perspectiva sobre o ser humano que o considere em sua inteireza; todavia, a ciência é sempre parcial e fragmentá- ria. Assim, a partir dos resultados da ciência (ou melhor: das diversas ciências), há que se elaborar uma síntese totalizante – síntese que é, necessariamente, filosófica ( ibidem ; cf. também COMTE, 1990);
Steiner (2008) foi bastante preciso ao indicar dois elementos da crítica comtiana à Economia Política de sua época: por um lado, a origem metodológica dessa crítica; por outro lado, a submissão teórica dos fatores econômicos ao social e, assim, ao político. De maneira sucinta: para Comte, não é possível tratar os fenômenos econômicos de maneira desvinculada dos sociais (e – novamente
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derivada da perspectiva de conjunto, acarreta que é necessário entender os fenômenos materiais no corpo da Sociologia Estática e da Sociologia Dinâmica, ou seja, as leis relativas à produção, à transmissão e à circulação do capital relacionam-se intimamente às outras variáveis sociológicas, por um lado, e dependem do momento histórico em questão, por outro lado. Sabe-se que, durante o século XX, o establishment acadêmico dedicado ao estudo da Economia, de modo geral estadunidense, mudou o nome de sua disciplina de “Economia Política” (“ Political Economy ”) para, simplesmente, “Eco- nomia” (“ Economics ”) para impedir a identificação dessa disciplina com o marxismo, não apenas com a perspectiva política marxista (revolucionária) como com a perspectiva teórica do marxismo, que é historicizante e, por assim dizer, sociologizante 5. Na verdade, ao realizar sua elaboração econômica, Augusto Comte contrapõe-se não apenas contra os “economistas” de sua época, mas também contra os “comunistas”, que, sem nenhuma casualidade, cometiam erros teóricos e práticos simétricos aos dos “economistas”. Dessa forma, a fim de prosseguir, é necessário apresentarmos o que poderíamos chamar de “teoria econômica” comtiana. Kremer-Marietti (1997) indicou de que maneira vários dos pri- meiros escritos de Comte – os chamados “opúsculos de juventude”, redigidos entre 1817 e 1830 (quando publicou o volume I do Sistema de filosofia positiva^6 ) –, fosse sozinho, fosse já como secretário de St.-Simon, tratavam do que chamaríamos contemporaneamente de “economia”: orçamento público, relações financeiras e bancárias, teoria da produção e assim por diante. Esses artigos eram inspira-
5 Embora alguns autores afirmem a influência de Comte sobre o mainstream econômico – é o caso de Kremer-Marietti (1997), a propósito de elementos comtianos nas idéias ( epistemológicas ) de Milton Friedman –, isso não procede. Aliás, a distância que se guarda entre ambos é perceptível no livro de Mauduit (1929), que afirma ser A. Comte “autoritário” porque este, como veremos, des- prezava a teoria do laissez-faire , considerando-a uma declaração de incapacidade teórica e uma irresponsabilidade prática. 6 O nome original dessa obra redigida em seis volumes ao longo de 12 anos era Curso de filosofia positiva ( Cours de philosphie positive ), cada capítulo correspon- dendo às lições do curso anual de mesmo nome que Comte iniciou a ministrar em 1826. Todavia, em nota de rodapé do Discurso sobre o conjunto do Positivismo ( Discours sur l’ensemble du Positivisme ), de 1848, ele alterou-o para “ Sistema ”.
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acabou tornando-se a “lei dos três estados da atividade prática”, ou, mais precisamente, a oitava lei da “filosofia primeira”^9 , cujo enunciado é o seguinte: “A atividade é primeiro conquistadora, em seguida defensiva e enfim industrial” (COMTE, 1934, p. 479)^10. Essa oposição pode ser sumariada da seguinte maneira:
QUADRO 1 – Comparação entre a Antiguidade, a Idade Média e a Mo- dernidade ÂMbItO AntIgüIDADe IDADe MéDIA MODeRnIDADe
Temporal
Militar Pacífico-industrial Conquistador Defensivo
Espiritual
Teológico Positividade Politeico Monoteico Fonte: o autor.
Essa oposição privilegia os elementos práticos da realidade: a política e a economia, para Comte, entram nessa categoria geral: as mútuas relações, indissociáveis, entre ambas, permitem afirmar-
9 As quinze leis da “filosofia primeira” são o conjunto de princípios teóricos e epistemológicos do Positivismo comtiano. Eles foram sistematizados por A. Comte na sua fase mais madura, isto é, ao longo da redação do Sistema de política positiva (1851-1854); seu nome – “filosofia primeira” – é uma evidente homenagem à proposta de Francis Bacon no sentido de organizar os princípios que organizam o conhecimento humano. Se a filosofia primeira são os funda- mentos teóricos e epistemológicos do conhecimento, a “filosofia segunda” é o conhecimento da realidade propriamente dito e a “filosofia terceira” é a aplicação prática desses conhecimentos, ou seja, são respectivamente a ciência e a tecnologia. Entre inúmeras exposições e explicações dessas leis (algumas das quais de brasileiros), recomendamos a de Pierre Laffitte (1894; 1928), que, embora rara de achar atualmente, é sem dúvida a melhor e merece não apenas uma nova edição francesa como uma (boa) tradução brasileira. 10 Para a boa compreensão dessa lei, ela deve ser lida e entendida particularmente em conjunto com a lei seguinte, que é a lei dos três estados da afetividade : “A so- ciabilidade é primeiro doméstica, em seguida cívica e enfim universal, segundo a natureza peculiar a cada um dos três instintos simpáticos [apego, veneração e bondade]” (COMTE, 1934, p. 479). Combinando-se as duas, o resultado é que os âmbitos afetivos da Antigüidade e da Idade Média foram a família e a pátria, mas é próprio à modernidade a extensão dos sentimentos para o âmbito universal (é claro que sem deixarem de existir os âmbitos anteriores).
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mos que, para ele, a economia necessariamente era uma economia política – e vice-versa, no duplo sentido de que a organização e os elementos econômicos da sociedade produzem efeitos políticos e que muito da política passa pelas relações econômicas 11. Mas o que devemos notar é que, após um início voltado para a economia política – de Say, Turgot e Dunoyer, mas acima de tudo Adam Smith e David Hume –, Comte logo desenvolveu a concepção de uma ciên- cia geral da sociedade, de que a lei dos três estados é um primeiro resultado (e, na verdade, princípio fundador). Com essa concepção de ciência geral da sociedade, os elementos materiais teriam, sem dúvida alguma, grande importância, mas não seriam exclusivos nem por assim dizer determinantes. Por outro lado, como já vimos, a teoria totalizante é acompanhada de uma perspectiva metodológica igualmente totalizante e histórica, que rejeita o indivíduo como unidade de análise e como princípio metodológico.
Comte leu com atenção Adam Smith e reconheceu a impor- tância do princípio da divisão do trabalho. Mas fê-lo com algumas particularidades: antes de mais nada, a divisão do trabalho não pode ser encarada apenas do ponto de vista econômico, isto é, não se trata de uma questão apenas de produtividade material, mas cor- responde a um princípio geral da sociedade: muito antes (teórica e historicamente) de tratar-se de um princípio administrativo em fábricas, a divisão do trabalho estabelece que, na sociedade, alguns realizam trabalhos braçais, outros intelectuais, outros afetivos e assim por diante, sendo que a principal divisão é entre os trabalhos teóricos e os práticos. Em segundo lugar, para Comte a idéia da divisão do trabalho não se originaria com Adam Smith, mas seria possível deduzi-la do conjunto dos trabalhos de Aristóteles, na forma do seguinte aforisma: a sociedade consiste na separação dos ofícios e na convergência de esforços. Esse aforisma, por sua vez, estabelece que a sociedade baseia-se na especialização de tarefas, em que os indivíduos realizam voluntariamente atividades cada
11 Isso é tanto verdade que, para Comte, o poder (político) deve necessariamente caber aos detentores do poder econômico – sem que isso se degenere em uma plutocracia ou em uma oligarquia, graças às relações entre os poderes Temporal e Espiritual (cf. COMTE, 1852, cap. 2, 5, 6).
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responsabilidade. Do ponto de vista histórico, a propriedade começa a existir para satisfação de necessidades urgentes, o que, associa- do ao absolutismo teológico, torna a própria propriedade privada algo absoluto e indiscutível. Entretanto, como a sociedade é mais a continuidade histórica que a solidariedade em um momento, com o passar do tempo, isto é, das gerações, ocorre o acúmulo do capital e essas necessidades diminuem em sua urgência, de tal sorte que o egoísmo torna-se menos imperioso – o que equivale a dizer que o altruísmo passa a ter espaço. Somando-se a isso, no caso da socie- dade industrial, que é pacífica e movida por um espírito relativo, a propriedade pode assumir um caráter diretamente social: a partir disso, mantendo a propriedade privada, isto é, o controle e a respon- sabilidade individuais pela propriedade, Comte elabora a máxima: “o capital é social em sua origem e deve sê-lo em sua destinação”. Uma outra forma de entender essa fórmula é a seguinte: o capital deve ser utilizado para benefício coletivo, não podendo ser nem inútil (ou ocioso) nem se conferindo a ele o direito de “usar e abusar”; em outras palavras, para Comte a propriedade não é absoluta.
A esse respeito, Comte (1890, v. II, p. 141-148) sugere um experimento mental para desenvolver esse tópico: imaginemos que o ser humano fosse um ser apenas afetivo e intelectual, isto é, que não tivesse que satisfazer necessidades práticas: em tal caso, os instintos egoístas mais fortes (nutrição, sexual, materno, destruidor, construtivo) não seriam tão fortes ou seriam simples- mente fracos; o ser humano poderia desenvolver largamente sua existência altruísta. A ciência, por outro lado, embora tenha um aspecto de satisfação de curiosidade a respeito do mundo, não seria tão imperiosa, pois o ser humano não seria tão exigido do mundo para existir: em vez de a inteligência dedicar-se ao conhecimento da realidade, poderia dedicar-se diretamente à idealização da existência e a satisfazer os instintos altruístas. Em outras palavras, inexistente a pressão material sobre o ser humano, a Humanidade poderia ser diretamente altruísta e artística 13.
13 Esse raciocínio – que é tão bonito e inspirador quanto filosoficamente perspi- caz – foi chamado pelo sociólogo francês Pierre Arnaud de “a era dourada da humanidade” (ARNAUD, 1965).
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Caráter histórico, perspectiva totalizante, utilidade social, mudança do perfil do capital ao longo da história: Comte sin- tetiza essas características em suas duas leis econômicas, que se referem à produção econômica: 1) cada ser humano é capaz de produzir mais do que consome; 2) os produtos materiais humanos podem conservar-se por mais tempo do que exige sua conservação ( idem , p. 150-154). Para concluir esta seção, mais dois temas específicos. Em primeiro lugar, é importante notar que Augusto Comte não disso- ciava, sob hipótese alguma, o poder da responsabilidade: maior poder implica maior responsabilidade, isto é, maiores deveres e maiores cobranças. Isso vale tanto para os detentores do poder político – a quem, por definição, cabe o que chamamos atualmente de accountability – quanto para os detentores do poder econômi- co, cuja responsabilidade não consiste em usufruir das riquezas a bel-prazer, mas em serem gestores do capital social (ou melhor: do capital coletivo), que deve ser conservado e desenvolvido não apenas para a geração a que os gestores pertencem, mas para todas as gerações futuras (cf. COMTE, 1899, p. 43-46) 14. Nesse sentido, Comte criticava a oposição privado-público, que, tornada absoluta, abria espaço para a irresponsabilidade coletiva dos particulares; ao mesmo tempo, afirmava que, todos concorrendo para o bem público, todos devem ser vistos como verdadeiros “funcionários públicos” (o que, aliás, apenas uma interpretação estreita e/ou mal- informada pode considerar equivalente a “servidores do Estado” ou “integrantes do Estado total”) (cf. LACERDA, 2008). Em segundo lugar, como tratamos até aqui da produção e um tanto da conservação do capital, talvez algumas palavras sobre a transmissão do capital sejam interessantes. Comte distingue qua- tro modos de o capital ser transmitido; de acordo com uma dupla ordem de dignidade decrescente e de surgimento histórico, são eles a dádiva, a troca, a herança e a conquista. A conquista era a
14 O discípulo de Comte, Pierre Laffitte, chega a literalmente afirmar que a preo- cupação com a transmissão do capital das gerações atuais para a posteridade tem que incluir a preservação do planeta Terra – o que chamaríamos de am- bientalismo (cf. LAFFITTE, 1876)!
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ticas da Economia, ele seguiu adiante, em direção à constituição da Sociologia, cujo marco, na biografia comtiana, foi 1822, com a descoberta da lei dos três estados e a redação do Plano dos traba- lhos científicos necessários para a reorganização da sociedade (COMTE, 1972c) 17 – longo artigo que foi inicialmente intitulado Sistema de política positiva e cujo título seria recuperado três décadas mais tarde. Por que essa observação é importante? Porque esclarece que Comte, ainda que limitado aos autores franceses, estava familiarizado com as investigações econômicas de sua época. Na segunda metade do Sistema de filosofia positiva , escrita entre 1838 e 1842, em que Comte trata propriamente da Socio- logia, ele apresenta suas críticas aos economistas. Sua avaliação é dupla, positiva e negativa, ainda que os considere globalmente como metafísicos. De maneira favorável, Comte considerava que os economistas tiveram uma importância teórica e outra prática. Teoricamente, eles introduziram as considerações materiais, especificamente econômicas, no âmbito das reflexões sociais: a importância do tra- balho, da agricultura, do capital financeiro e dos bancos, a própria concepção de divisão social do trabalho: Adam Smith, David Hume, Jean-Baptiste Say, Dunoyer seriam tais pensadores. Politicamente, sua importância vincula-se à demonstração prática da inanidade dos esforços do Antigo Regime para reorganizar-se socialmente, ou, mais precisamente, da incapacidade de o Antigo Regime, vinculado a uma organização social e a uma teoria política anacrônicas, fazer
17 Foi essa busca que levou Comte a aproximar-se de St.-Simon, cujas preocupações eram bastante semelhantes. Todavia, as limitações teóricas e epistemológicas de St.-Simon, aliadas à sua volatilidade intelectual e, acima de tudo, às suas sérias falhas morais levaram Comte ao fim do relacionamento intelectual. Diga-se de passagem que os problemas científicos que Comte identificou nas idéias de St.-Simon são muito parecidas com as identificadas por ele no pensamento dos economistas. Por esse motivo, aliás, Comte desconsiderou a quase totalidade dos artigos de juventude, preservando apenas oito; os que ignorou são, não por acaso, justamente aqueles dedicados à Economia Política, seja teórica, seja prática. Cf. a respeito Gouhier (1936). Por outro lado, Paulo Carneiro e Pierre Arnaud recuperaram esses artigos renegados (incluindo aqueles escritos por A. Comte mas “assinados” por St.-Simon), o que permite termos uma compreensão mais acurada da evolução intelectual comtiana (cf. COMTE, 1970).
Gustavo Biscaia de Lacerda
As críticas de Augusto Comte à Economia Política
Dossiê
frente às novas exigências sociais: Quesnay, Turgot e Colbert seriam os representantes desse aspecto da economia política^18. Em outras palavras, os economistas foram importantes para a destruição prá- tica do Antigo Regime e para a constituição teórica do novo regime (COMTE, 1975, p. 462: Système de philosophie positive , lição 55e).
Mas o fato é que a avaliação negativa merece muitos mais comentários que a positiva. Usando a edição francesa de 1975 da Filosofia positiva , vimos logo acima que os comentários favoráveis não ocupam nem uma página, enquanto as críticas ocupam seis longas páginas ( idem , p. 92-97: Système de philosophie positive , lição 47 e^ ). A extensão dessa crítica sugere a severidade com que Augusto Comte julga os economistas: considerando o capítulo em que estão esses comentários, torna-se compreensível tal rigor. Com efeito, a lição 47 é dedicada aos predecessores de Comte na constituição da Sociologia, entre os quais Aristóteles, Mon- tesquieu, Condorcet e Bossuet – além dos economistas, tratados em conjunto como “seita”. Por oposição, os outros comentários integram o capítulo dedicado ao movimento destruidor do Antigo Regime, isto é, dos “revolucionários” e dos “críticos” (entendi- dos, no sistema comtiano, como “destruidores”). Dessa forma, somando-se os comentários de um e de outro capítulo, resulta que a severidade de Comte a respeito dos economistas é que eles são mais danosos para a compreensão da sociedade e para reorganização social que positivos para isso; esses danos, como temos sugerido, são tanto teóricos quanto práticos.
A observação fundamental é que a Economia Política pretende constituir uma ciência – Comte repetidamente fala em “pretensa ciência” – à parte da Sociologia. Não se trata apenas de isolar, como um recurso lógico, os elementos econômicos dos demais elementos sociais e sociológicos: o procedimento da Economia é reduzir a sociedade às questões econômicas, o que equivale a desprezá-la e à Sociologia. Em vez de uma visão de conjunto, tem-se apenas uma
18 Desde já é interessante notar que, a despeito das críticas feitas à Economia Política de sua época, o respeito de Comte pelos personagens indicados era tal que foram todos eles incluídos, com as exceções de Say e Quesnay, no “calendário positivista” (cf. COMTE, 1996, p. 314-315).
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As críticas de Augusto Comte à Economia Política
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Para Comte, a teoria serve como guia para a ação prática, via predição dos acontecimentos: ora, como a Economia via-se incapaz de fazer quaisquer previsões, sua utilidade prática era nula e, portanto, sua validade teórica também^19. Mas, de maneira mais específica, o que os economistas afirmavam era que a realidade eco- nômica constituía autonomamente uma ordem natural, em que se estabelecia um equilíbrio. Pois bem: enquanto para os economistas esse era o princípio e o fim da teoria e da prática – daí decorrendo a teoria do laissez-faire –, para Comte a ordem naturalmente cons- tituída era apenas o princípio da elaboração teórica. Como vimos anteriormente, para Comte a sociedade constitui-se por meio da divisão do trabalho e pela convergência de esforços e era exatamente o segundo hemistíquio dessa fórmula que faltava aos economistas. Como a “convergência dos esforços” é responsabilidade do governo (isto é, dos poderes Temporal e, secundariamente, Espiritual), o que os economistas propunham é que o governo simplesmente não in- terferisse na dinâmica econômica – como se sabe, para o liberalismo econômico qualquer intervenção estatal é indevida, ainda que seja necessário um arcabouço institucional mínimo (justiça e manutenção da moeda). Mas, inversamente, para Comte – e para a Sociologia – a economia não existe per se , mas somente integrando uma realidade social mais ampla, socialmente constituída e condicionada. Ora, a doutrina do laissez-faire , do ponto de vista teórico, ignora essas mútuas relações ou considera-as “externalidades”; do ponto de vista prático, afirma que os problemas econômicos resolver-se-ão sozinhos, graças a uma propriedade qualquer que o sistema eco- nômico apresentaria – a famosa e vulgarizada “mão invisível” – a longo prazo e independentemente de qualquer outra consideração sociológica, política ou mesmo moral, o que equivale à mais com- pleta omissão política, especialmente do governo, responsável pela reação de conjunto social sobre as diversas partes constituintes. No meio dessas concepções, estariam implícitas ou explícitas 1) a apologia do egoísmo, 2) a afirmação cínica de que o altruísmo é uma forma hipócrita de justificar o egoísmo, 3) a postulação de que
19 Dessa forma, diferentemente do que afirma Steiner (2008), a crítica de Comte à Economia Política não era apenas teórica e metodológica, embora uma parte importante dela fosse-o, mas era também prática.
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a propriedade é absoluta e 4) a consideração de que o bem comum é no máximo a soma das utilidades particulares^20. Essas são as críticas de Comte, elaboradas em 1838 e repe- tidas mais ou menos até sua morte, em 1857. Se considerarmos os seguidores de Comte, veremos que essas críticas podem ser desenvolvidas de maneira muito mais ampla: Pierre Laffitte, por exemplo, literalmente afirmou que a doutrina do laissez-faire é uma forma de a burguesia justificar seu domínio político e explorar o proletariado, prostituindo a palavra “progresso”, reduzida a 1) sim- ples sinônimo mudanças (sociais e, particularmente, tecnológicas) e
20 Exatamente com esse espírito, não se tornou famosa a declaração de Margareth Thatcher de que a sociedade são apenas indivíduos e empresas?