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DAMATTA - Trabalho de Campo, Notas de estudo de Cultura

Terceira parte do livro Relativizando para a disciplina Metodologia das Ciências Sociais

Tipologia: Notas de estudo

2012

Compartilhado em 02/01/2012

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cristina-barreto-2 🇧🇷

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aberto e estatístico, regido por probabilidades. No totemismo e na magia que, como estamos vendo, ainda subsistem em algumas áreas do nosso sistema, reencontramos o eterno: aquilo que não muda e, por isso mesmo, provê um sentido de coerência essencial à nossa vida. É preciso, portanto, finalizar esta parte lembrando a famosa advertência feita à Antropologia Social pelo grande historiador inglês Maitland, Dizia ele que «a Antropologia teria que escolher entre ser História ou ser coisa alguma». E junto com essa advertência confiante de Maitland, a res- posta desabusada de Evans-Pritchard que, prevendo o curso dos acontecimentos e o papel reservado no futuro à Antro- pologia Social, decretou: «ou a História escolheria ser sócio- antropologia, ou ela não seria coisa alguma». Digamos, assu- mindo uma posição sociologicamente mais correta talvez que já se pode vislumbrar uma antropologia que, num diálogo aberto e sistemático com a temporalidade vivida e concebida pelos homens de diversas sociedades, pode relativizá-la e, assim fazendo, conseguir alcançar na história tudo o que ela pode realmente nos oferecer. Foi justamente isso que pre- tendi ter aqui apresentado estudando o desenvolvimento de nossa disciplina, 142 TERCEIRA PARTE: TRABALHO DE CAMPO 1. O Trabalho de Campo na Antropologia Social A partir do momento em que a antropologia, no limiar do século XX, começou a abandonar a postura evolucionista, ficou patente a importância do trabalho de campo ou pes- quisa de campo como o modo característico de coleta de novos dados para reflexão teórica ou, como gostavam de colocar certos estudiosos de visão mais empiricista, como o laboratório do antropólogo social. Assim, se o cientista na- tural tinha o seu aparato instrumental concreto para repe- tir experiências no teste de suas hipóteses de trabalho, o etnó- logo o experimentava de modo diverso. Na sua disciplina estava fora de questão a experiência desenhada e fechada, do tipo realizado pelo psicólogo experimental na sua prá- tica, mas ficava inteiramente aberta a experimentação num sentido mais profundo, qual seja: como uma vivência longa e profunda com outros modos de vida, com outros valores e com outros sistemas de relações sociais, tudo isso em con- dições específicas. Fregientemente o etnólogo realizava sua experiência em solidão existencial e longe de sua cultura de origem, tendo, portanto, que ajustar-se, na sua observação participante, não somente a novos valores e ideologias, mas a todos os aspectos práticos que tais mudanças demandam. Enquanto o cientista natural poderia repetir seu experimen- to, introduzindo ou retirando para propósitos de controle suas variáveis; no caso do antropólogo isso não poderia ocor- rer. O controle da experiência, portanto, conforme chamou nossa atenção tantas vezes Radeliffe-Brown (cf. 1973, 1979), teria que ser feito pela comparação de uma sociedade -com 143 outra e também pela convivência com o mundo social que se desejava conhecer cientificamente. Em outras palavras, a pesquisa estava limitada pelo próprio ritmo da vida social, já que o antropólogo social seria o último a buscar sua alte- o como um teste para as suas teorizações. Nós já vimos como essa virada metodológica que se cris- taliza na pesquisa de campo e a constelação de valores que chega com ela estão profundamente associadas ao chamado «funcionalismo» ou ao que denomino, pelos motivos já men- cionados na parte anterior, «revolução funcionalista». Tal posturá conseguiu arrancar 0 pesquisador de sua confortável poltrona fixa numa biblioteca em qualquer ponto da Europa Ocidental, para lançá-lo nas incertezas das viagens em mares povoados de recifes de coral, rituais exóticos e «costumes irracionais». Tal mudança de atitude, ao fazer com que a antropologia, deixasse de colecionar e classificar curiosidades. ordenadas historicamente, transformou nossa ciência, confor- me disse Malinowski, «numa das disciplinas mais profun- damente filosóficas, esclarecedoras e dignificantes para a pesquisa científica» (cf, Malinowski, 1976: 375), justamente por levar o estudioso a tomar contato direto com seus pes- quisados, obrigando-o a entrar num processo profundamente relativizador de todo o conjunto de crenças e valores que lhe é familiar. Deste modo, a antropologia social não poderia, para Malinowski, ligar-se a nenhuma compilação de costu- mes exóticos onde o etnólogo teria como objetivo a repro- dução de uma lista infindável de «fatos», tais como: «Entre os Brobdignacianos, quando um homem encontra sua sogra os dois se agridem mutuamente e cada um se retira com um olho roxo»; ou «Quando um Brodiag: encontra um urso polar, ele costuma fugir e, às vezes, o urso o persegue»; ou, ainda, «Na antiga Caledônia, quando um nativo aciden- talmente encontra uma garrafa de uísque pela estrada, bebe tudo de um gole, após o que começa imediatamente a pro- curar outra garrafa» (cf. Evans-Pritchard, 1978: 22) o que, como disse Malinowski, «fazia com que nós antropólogos pa- recêssemos idiotas e os selvagens, ridículos» (Evans-Pritchard, 1978: 22). Tal estilo de reproduzir a experiência com os nativos, implacavelmente satirizada por Malinowski na citação ante- rior, lembra o modo pelo qual os evolucionistas clássicos 144 escreviam seus relatórios de pesquisa: como uma espécie de catálogo telefônico cultural, onde a idéia de classificar e, so- bretudo, de colecionar todos os costumes era um objetivo evidente. A partir do advento do trabalho de campo siste- mático, entretanto, tornava-se impossível reduzir uma socie- dade (ou uma cultura) a um conjunto de frases soltas entre si, na listagem dos costumes humanos dispostos em linha histórica, Isso porque a vivência propriamente antropológica — aquela nascida do contato direto do etnógrafo com o grupo em estudo por um período relativamente longo — dava a perceber o conjunto de ações sociais dos nativos como um sistema, isto é, um conjunto coerente consigo mesmo. É, como vimos, essa descoberta tão simples e tão crítica que permitirá o nascimento da visão antropológica moderna, como o instrumento básico na transformação da antropologia social numa disciplina social, como um autêntico ponto de vista. Como disse Malinowski num dos seus grandes momen- tos de reflexão: «Deter-se por um momento diante de um fato singular e estranho; deleitar-se com ele e ver sua sin- gularidade aparente; olhá-lo como uma curiosidade e cole- cioná-lo no museu da própria memória ou num anedotário — essa atitude sempre me foi estranha ou repugnante». Ou Seja, o papel da antropologia é produzir interpretações das diferenças enquanto elas formam sistemas integrados. Como diz o mesmo Malinowski logo a seguir : «Há, porém, um ponto de vista mais profundo e ainda mais importante do que o desejo de experimentar uma variedade de modos humanos de vida: o desejo de trans- formar tal conhecimento em sabedoria. Embora possa- mos por um momento entrar na alma de um selvagem e através de seus olhos ver o mundo exterior e sentir como ele deve sentir-se ao sentir-se ele mesmo, Nosso objetivo final ainda é “enriquecer e aprofundar nossã o de mundo, compreender nossa própria na á-la intelectual e artisticamente, Ao captar a visão essencial dos outros com reverência e verdadeira compreensão que se deve mesmo aos selvagens, estamos contribuindo para alargar nossa própria visão» (Mali- nowski, 1976: 874). Essa sábia reflexão de Malinowski, a qual poder-se-iam somar outras feitas por antropólogos pioneiros, gente do porte 145 tiva da sociedade humana. Isso fez com que a antropologia social desenvolvesse uma tradição distinta das outras ciên- cias humanas, pois com ela ocorre a possibilidade de; recupe- rar e colocar lado a lado, para um diálogo fecundo, as expe- riências humanas. brisa Diferentemente, então, da Sociologia, da História, a Geografia Humana, da Psicologia, da Ciência Política e da * Economia, mas muito próxima da Lingiistica, a antropeloa a ' Social toma como ponto de partida a posição e o ponto de ! vista do outro, estudando-o por todos os meios disponíveis. Se existem dados históricos, eles são usados ; se existem e econômicos, isso também entra na reflexão; pe há RR político, eles não ficam de fora. Nada deve ser excluí gado processo de entendimento de uma forma de vida Ene o ferente. Mas tudo isso, convém sempre acentuar, dentro a perspectiva segundo a qual a intermediação do RR produzido é realizada pelo próprio nativo em rel qdo SR com o investigador. Ou seja, na postura às vezes tiei ser entendida, posto que se baseia, num ponto crucial; pus o nativo, qualquer que seja a sua aparência, tem paca pas a nossa teoria pode desconhecer e — freqiientemen! Ens 6 E conhece; que o «selvagem» tem uma lógica e e Ea au que é minha obrigação, enquanto antropólogo, descobrir. É, portanto, para chegar a esta postura, Hour para chegar próximo a ela) que o etnólogo empreende sua viagem e rea- liza sua pesquisa de campo. Pois é ali que ele pode vivenciar sem intermediários a diversidade humana na sua essência e nos seus dilemas, problemas e paradoxos. Em tudo, ne que permitirá relativizar-se e assim ter a esperança de trans- formar-se num homem verdadeiramente humano. 2. O Trabalho de Campo como um Rito de Passagem Nas crises socialmente programadas para dar sentido à mu- dança de posição dentro de um sistema, existem at especiais quando os noviços são tirados de suas casas E e; guem para a floresta ou zona marginal com seus instruto res. Lá, neste espaço intermediário, e longe dos olhares no bidores e protetores de seus pais e parentes, eles pai aprender a ser «homens» e «mulheres», descobrindo o valor 150 de certas regras sociais, canções, gestos, emblemas e apren- dendo a natureza das solidariedades horizontais, a unir os contemporâneos entre si por elos de responsabilidade social e política, em vez dos laços substantivos conhecidos ante- riormente, fundados no «sangue», na «carne», na «cópula car- nal», no nascimento, na amamentação e em outros processos semelhantes, situados entre o corpo naturalmente dado e o corpo como algo a ser instrumentalizado e legitimado pela coletividade. Tudo, enfim, que os jovens devem saber para que possam ter o sentimento de pertencer exclusivamente a uma dada sociedade e dela se orgulhar. Tais momentos são cruciais e o trabalho clássico de Arnold Van Gennep, bem como as elaborações modernas e decisivas de Victor Turner (cf. Van Gennep, 1978; Turner, 1974), revelaram sua importância. Aqui desejo simplesmente observar que a iniciação na antropologia social pelo chamado trabalho de campo fica muito próxima deste movimento altamente marcado e cons- ciente que caracteriza os rituais de passagem, Realmente, em ambos os casos, antropólogo e noviço são retirados de sua sociedade; tornam-se a seguir invisíveis socialmente, reali- zando uma viagem para os limites do seu mundo diário e, em pleno isolamento num universo marginal e perigoso, ficam individualizados, contando muitas vezes com seus próprios recursos. Finalmente, retornam à sua aldeia com uma nova perspectiva e os novos laços sociais tramados na distância e no individualismo de uma vida longe dos parentes, poden- do assim triunfalmente assumir novos papéis sociais e posi- ções políticas. Vivendo fora da sociedade por algum tempo, acabaram por ter o direito de nela entrar de modo mais profundo, para perpetuá-la com dignidade e firmeza, Antropólogos e iniciandos atualizam um padrão clássico de «morte», «liminaridade» e «ressurreição» social num novo papel, tudo de acordo com a fórmula clássica dos ritos de transição e passagem. E ambos atualizam, como já indicou Turner (em 1967), aquele processo de redução, pelo qual em plena liminaridade ficam como que transformados numa matéria-prima: um estado pré-social, extremamente propício aos novos aprendizados que precedem à mudança de status. Isolados de suas relações substantivas e individualizados, no- viços e antropólogos ficam predispostos a ser socialmente 151 moldados, antes do seu renascimento social. Nesta fase, apren- dem novos fatos e adquirem um conhecimento sociológico mais aberto e horizontalizado, quando descobrem que a dig- nidade do mundo pode também ser encontrada na amizade e no companheirismo. Assim, o que antes era dado exclusi- vamente pela família, pode agora ser realizado pelos seus contemporâneos de idade e de sexo, na união criada pela viagem ritual, na crise do isolamento e do renascimento sociológico. Com o antropólogo ocorre algo semelhante, quando des- cobre que sua pesquisa o conduziu para um mundo onde teve que recriar não só todas as relações sociais, mas sobretudo aprender o seu sentido profundo, pelo isolamento e pela res- socialização voluntária, O trabalho de campo, como os ritos de passagem, implica pois na possibilidade de redescobrir novas formas de relacionamento social, por meio de uma so- cialização controlada. Neste sentido, o processo é uma busca do controle dos preconceitos, o que é facilitado pela viagem . para um outro universo social e pela distância das relações sociais mais reconfortantes. Mas, deve-se notar, o noviço passa por tudo isso cercado por uma ideologia não raro contendo elementos religiosos e crenças mágicas; ao passo que o antropólogo engloba sua experiência iniciatória pelo uso consciente da razão, da experimentação e das hipóteses de trabalho, desenvolvidos anteriormente no seu campo. Além disso, se todo o noviço tem um «padrinho» de iniciação, o antropólogo deve descobri-lo na forma de um amigo, infor- mante, instrutor, professor e companheiro, Alguém que lhe ensinará os caminhos e desvios encontradiços na sociedade que pretende estudar e que deverá socializá-lo como uma criança muito especial. E tanto o iniciando quanto o pesqui- sador devem realizar o esforço para retornar a um estado infantil, de plena potencialidade individual, único modo de voltar à condição de seres dispostos a sofrer um novo pro- cesso de aprendizado. Finalmente, depois deste período difícil e marginal, ambos podem retornar ao sistema do qual partiram, ali assu- mindo uma nova posição, status que normalmente decorre precisamente desta vivência de provação onde puderam forjar novos conhecimentos do universo e, dialeticamente, de sua própria sociedade. Como observou em 1800 Degérando, um dos pioneiros da etnologia moderna: 152 «Esta glória, a mais doce, a mais verdadeira; ou melhor; a única e verdadeira glória, o espera e já o abrange, Você conhecerá todo o seu brilho no dia de triunfo e alegria no qual, retornando ao nosso país e sendo bem- vindo no nosso meio com deleite, você chegará nos nossos muros carregado com a mais preciosa carga e como por- tador de felizes notícias de nossos irmãos espalhados nos mais longínquos confins do universo» (Degérando, 1969). Ou seja: Degérando percebeu bem o momento recom- pensador da viagem, quando o pesquisador pode voltar e, nesta volta ao seio do seu mundo, trazer com ele à percep- ção de novas formas de relacionamento social, valores e ideo- logias, de «nossos irmãos espalhados nos mais longínquos confins do universo». ; Em Etnologia, portanto, como nos ritos de passagem, existem planos e pontos de semelhança. Em ambos os Ro conforme sugerimos, estamos diante de uma passagem Thaiok que aquela determinada por um simples deslocar-se no espa- go. Pois ela implica, realmente, num exercício que nos faz mudar o ponto de vista e, com isso, alcançar uma nova visão do homem e da sociedade no movimento que nos leva para fora do nosso próprio mundo, mas que acaba por nos trazer mais para dentro dele. ] Nesta parte, desejo apresentar alguns aspectos do plano existencial da pesquisa de campo, plano que é marcado pelas possíveis lições que podem ser extraídas do relacionamento com os chamados «informantes» no decorrer de um trabalho de investigação antropológica. Como tenho dito repetidamen- te, essa pesquisa implica em outros paradoxos, pois como será possível observar tranquila e friamente (com a roupa- gem da neutralidade científica) um certo panorama humano, se não nos relacionarmos intensamente com ele? Mas como é possível manter essa neutralidade ideal, que teoricamente nos permitiria «ver» todas as situações de todos os ângulos, se estamos tratando de fatos e de pessoas que acabam por nos envolver nos seus dramas, projetos e fantasias? Ou melhor: como poderei chegar a captar essa realidade social se não me coloco diante dela como um semelhante aos que dela tiram a honradez, a dignidade e o sentido da existên- cia? Ou seja: é preciso pensar em que espaço se move q 158 Esses são os chamados aspectos «românticos» da dis- ciplina, quando o pesquisador se vê obrigado a atuar como médico, cozinheiro, contador de histórias, mediador entre índios e funcionários da FUNAI, viajante solitário e até pa- lhaço, lançando mão destes vários e insuspeitados papéis para poder bem realizar as rotinas que infalivelmente aprendeu na escola graduada. É curioso e significativo que tais aspec- tos sejam cunhados de «anedóticos» e, como já disse, de «românticos», desde que se está consciente — e não é pre- ciso ser filósofo para tanto — de que a Antropologia Social é uma disciplina da comutação e da mediação. E com isso quero simplesmente dizer que talvez, mais do que qualquer outra matéria devotada ão estudo do Homem, a Antropologia seja aquela onde necessariamente se estabelece uma ponte entre dois universos (ou subuniversos) de significação, e tal ponte ou mediação é realizada com um mínimo de aparato institucional ou de instrumentos de mediação. Vale dizer, de modo artesanal e paciente, dependendo essencialmente de humores, temperamentos, fobias e todos os outros ingredien- tes das pessoas e do contato humano. Se é possível e permitida uma interpretação, não há dú- vida de que todo o anedotário referente às pesquisas de campo é um modo muito pouco imaginativo de depositar num lado obscuro do ofício os seus pontos talvez mais im- portantes e mais significativos. É uma maneira e, quem sabe?, um modo de não assumir o lado humano da disci- plina, com um temor infantil de revelar o quanto vai de subjetivo nas pesquisas de campo, temor esse que é tanto maior quanto mais voltado está o etnólogo para uma ideali- zação do rigor nas disciplinas sociais. Numa palavra, é um modo de não assumir o ofício de etnólogo integralmente, é o medo de sentir o que a Dra. Jean Carter denominou, com rara felicidade, numa carta do campo, os anthropological blues. Por anthropological blues se quer cobrir e descobrir, de um modo mais sistemático, os aspectos interpretativos do ofício de etnólogo. Trata-se de incorporar no campo mesmo das rotinas oficiais, já legitimadas como parte do treinamen- to do antropólogo, aqueles aspectos extraordinários, sempre prontos a emergir em todo o relacionamento humano. De fato, só se tem Antropologia Social quando se tem de algum 156 modo o exótico, e o exótico depende invariavelmente da dis- tância social, e a distância social tem como componente a marginalidade (relativa ou absoluta), e a marginalidade se alimenta de um sentimento de segregação e a segregação implica em estar só, desembocando tudo — para comutar rapidamente essa longa cadeia — na liminaridade e no estranhamento. De tal modo que vestir a capa de etnólogo é aprender a realizar uma dupla tarefa que pode ser grosseiramente contida nas seguintes fórmulas: (a) transformar o exótico no familiar e/ou (b) transformar o familiar em exótico, Em ambos os casos, é necessária a presença dos dois termos (que representam dois universos de significação) e, mais basicamente, uma vivência dos dois domínios por um mesmo sujeito disposto a situá-los e apanhá-los. Numa certa pers- pectiva, essas duas transformações parecem seguir de perto os momentos críticos da história da própria disciplina. Assim é que a primeira — a transformação do exótico em familiar — corresponde ao movimento original da Antropologia quan- do os etnólogos conjugaram o seu esforço na busca delibera- da dos enigmas sociais situados em universos de significação sabidamente incompreendidos pelos meios sociais do seu tem- po. Foi assim que se reduziu e transformou — para citar apenas um caso clássico — o kula ring dos melanésios num sistema compreensível de trocas, alimentadas por práticas rituais, políticas, jurídicas, econômicas e religiosas, desco- berta que veio, entre outras, permitir a Marcel Mauss a criação da noção basilar de «fato social total», desenvolvida logo após as pesquisas do B. Malinowski. ? A segunda transformação parece corresponder ao mo- mento presente, quando a disciplina se volta para a nossa própria sociedade, num movimento semelhante a um auto- exorcismo, pois já não se trata mais de depositar no selva gem africano ou melanésio o mundo de práticas primitivas que se deseja objetificar e inventariar, mas de descobri-las em nós, nas nossas instituições, na nossa prática política e religiosa. O problema é, então, o de tirar a capa de mem- bro de uma classe e de um grupo social específico para poder — como etnólogo — estranhar alguma regra social familiar 2. Permito-me lembrar ao leitor que Malinowski publicou o seu Argonauts of the Tosatern Pacific em 1922 e que à primeira edição francesa do Essai sur le Don 6 de 157 Rr e assim descobrir (ou recolocar, como fazem as crianças quando perguntam os «porquês») o exótico no que está pe- trificado dentro de nós pela reificação e pelos mecanismos de legitimação. j A Essas duas transformações fundamentais do ofício de etnólogo parecem guardar entre si uma estreita relação. E primeira transformação leva ao encontro daquilo que a mu - tura do pesquisador reveste inicialmente no invólucro o bizarro, de tal maneira que a viagem do etmólogo é a a viagem do herói clássico, partida em três momentos dis- tintos e interdependentes: a saída de sua sociedade, o ga tro com o outro nos confins do seu mundo social e, io mente, o retorno triunfal (como coloca Den set próprio grupo, com os seus troféus. De fato, o etnó EO ne na maioria dos casos, o último agente da Fosisdadedeo e já que após a rapina dos bens, da força de trabalho: e da terra, segue o pesquisador para completar o pa nibalístico: ele, portanto, busca as regras, os valores, as À sa — numa palavra, os imponderáveis da vida social que foi colonizada. Na segunda transformação, a viagem é como a do xamã um movimento drástico em que, paradoxalmente, não se sai do lugar. E, de fato, as viagens xamanísticas são viagens verticais (para dentro ou para cima) muito mais do que horizontais, como acontece na viagem clássica dos heróis homéricos.º E não é por outra razão que todos aqueles que realizam tais viagens para dentro e para cima são xamãs, curadores, profetas, santos e loucos; ou seja, os que de algum modo se dispuserem a chegar no fundo do poço de Eus pró- pria cultura. Como consegiiência, a segunda transformação conduz igualmente a um encontro com O outro e ao estranhamento. ) À As duas transformações estão, pois, intimamente relacio- nadas e ambas sujeitas a uma série de resíduos, não sendo nunca realmente perfeitas. De fato, o exótico nunca pode passar a ser familiar; e O familiar nunca deixa de ser exótico. h Aqui, é necessário fazer uma pausa para examinar com mais cuidado as noções de exotismo e familiaridade, termos 3. Foi Peter Rivitre, da Universidade de Oxford, quem me sugeriu esta idéia da viagem xamanística, 158 problemáticos e passíveis de múltiplas interpretações, confor- me assinalou já por duas vezes Gilberto Velho (cf. Velho, 1978a e 1978b), numa crítica atenciosa de um trabalho ante- rior em que tais expressões foram usadas, De fato, como chama atenção Velho, será preciso ser mais cuidadoso ao se utilizar os termos acima indicados, já que ambos implicam na noção de distância — uma expressão igualmente complexa — além de conterem muitas camadas de significado. Quando usei (e ainda estou usando) a noção de exotis- mo e de familiaridade, busquei exprimir exatamente isso, ou seja, a idéia de que fatos, pessoas, categorias, classes, segmen- tos, aldeias, grupos sociais etc., poderiam ser parte de meu universo diário; ou não. O exótico, como termo inverso, sig- nificaria precisamente o oposto: um elemento situado fora do meu mundo diário, do meu universo social e ideológico do- minante. Mas Velho tem razão ao indagar a que tipo de fa- miliaridade estamôs nos referindo. Afinal, «o que sempre vemos e encontramos pode ser familiar mas não é necessa- riamente conhecido», sendo o oposto igualmente verdadeiro: pois «o que não vemos e encontramos pode ser exótico mas, até certo ponto, conhecido» (cf. Velho, 19784: 39). Estou inteiramente de acordo com Velho, mas isso so- mente se fizermos como ele, ou seja: equacionarmos o fa- miliar com o conhecido, num sentido direto, continuando nossa equação para fazer com que ela também englobe o íntimo e o próximo. Assim, teríamos: tudo o que é familiar é conhecido, é próximo, é íntimo, o que, sem dúvida, é um exagero e um engano. A equação simétrica inversa, a ligar o exótico com o desconhecido, também seria exagerada, pecan- do pela mesma abrangência. Minha intenção ao utilizar os termos em pauta, porém, foi no sentido apontado acima. Meu objetivo não foi o de fazer com que eles sugerissem essa idéia do conhecido, do íntimo ou do próximo, conforme chama aten- ção Gilberto Velho nos citados trabalhos. De fato, o uso que faço dos dois termos é no sentido de evitar esse emprego mecânico das noções de familiaridade e exotismo, muito embora tenha deixado de elaborar melhor as minhas pala- vras. Se pequei, como talvez tenha ocorrido, pequei por omis- são e não por imputar a essas palavras uma extensão des- mesurada de significado. 159 nesta área ete. é muito mais «natural» e muito mais «ló- gico» Em outras palavras, do mesmo modo que existem graus e modalidades de familiaridade, como estou buscando situar aqui, há também graus e modos de diferenciação, ou de desigualdade. Quando falo em familiaridade, estou me re- ferindo a essa noção de modo dinâmico, como algo que deve ser transformado e assim transcendido para que a perspec- tiva do trabalho de campo, a postura antropológica na aparecer. Não estou dizendo que o familiar possa ser estu- dado porque o conhecemos bem. Digo apenas ii a que o familiar possa ser percebido amtropologicamen e, Es tem que ser de algum modo transformado no exótico, o mesmo modo que insisto na transformação do exótico em familiar para que possamos ter uma análise verdadeiramente sociológica. É claro que existem dificuldades em cada E desses processos de transformação, mas, quando falo em ag miliaridade, utilizo a noção como um modo de on reflexão para a dúvida, No sentido preciso de fase ape se perguntar: mas, Deus meu, tudo o que me é ei! iar Ea meu conhecido? Tudo o que me é familiar é íntimo? no o que me é familiar está realmente próximo de tenho RE zendo a si mesmo tais perguntas, encontrará na apo mete dade social respostas diversas, mas, fazendo isso, estará pra- ticando de alguma forma a dúvida antropológica, base do trabalho de campo, É evidente — e nisso eu não poderia estar mais de acordo com Velho — que a familiaridade, o exotismo e o acordo final sobre eles é mantido por estrutu- ras que podem ser chamadas de «poder». Mas o ponta é que, e muitas coisas podem ser negociadas e desconheci e nem tudo é realmente negociado. Entre os Gay ões do Esta lo do Pará, em 1961, eu tinha que negociar minha. própria presença na aldeia, bem como uma forma de comunicação com os índios. Ora, esse tipo de relacionamento não é ne- gociado entre classes sociais numa sociedade como a TQssa. Mas isso, como ficará mais claro adiante, não significa ausência de conflito ou, inversamente, intimidade entre os grupos sociais ou segmentos. E a pe, Chegamos agora a um último ponto, cuja importância é fundamental para o entendimento da minha posição no que diz respeito a esse assunto. Trata-se da própria noção de sociedade. Quando eu me refiro a exotismo e familiaridades, 162 parto da idéia de que uma sociedade é um sistema com um mínimo de coerência interna. Devo, entretanto, notar que coerência não significa absolutamente uma supressão ou au- sência de conflitos, de contradições ou de posições divergen- tes e diferenciadas. Muito ao contrário, não creio que possa existir uma coisa chamada «sociedade», sem que nela existam conflitos, divergências e contradições. Isso é parte e parcela da própria constituição social, impresso que está no seu te- tido, todo ele feito de grupos, regras, segmentos, categorias e, finalmente, indivíduos que podem ter múltiplos interesses — isso para não falarmos de situações em que o próprio sistema é, no nível mesmo de suas regras, contraditório. Mas, entre termos divergências empiricamente dadas e divergên- cias ideologicamente legitimadas e elaboradas, há um enorme fosso. Por outro lado, existe a questão do diagnóstico destas divergências. Um sociólogo pode assistir a uma disputa mor- tal entre grupos de uma sociedade e dizer que aquilo é uma guerra causada por fatores econômicos e demográficos; ao passo que os membros da sociedade implicados no conflito podem dizer que a tal «guerra» era apenas um ritual de vingança, destinado a limpar a honra do grupo local amea- cado pelos seus irmãos de uma outra aldeia. A causa final para a sociedade em estudo, nada tendo a ver com um con- flito aberto e violento (que nós chamamos de «guerra»), mas com o comportamento dos mortos em relação aos vivos e dos membros de duas comunidades que estavam se juntando. Per- gunto: quem tem razão? Se reduzirmos todos os conflitos mortais à categoria de «guerras», então o trabalho de campo e o conhecimento antropológico da diferenciação humana é algo totalmente inútil. Vendo o conflito, já supomos uma familiaridade com ele. Sem transformarmos o familiar em exótico, atribuímos a ele um dado valor, sem nos interes- sarmos pelos motivos sociais que, conduzem os membros da- quele sistema. O problema, portanto, é poder situar o nível, o grau e a modalidade das divergências e dos conflitos. A resposta da antropologia social, resposta que chegou sobre- tudo com o trabalho de campo intensivo, é a de que pri- meiramente devemos «ouvir» as motivações e as ideologias daqueles que praticam o costume, crença ou ação. É assim fazendo que podemos entender o sistema ideológico em estudo percebendo sua tessitura interna, descobrindo seus pontos 163 contraditórios e como tais conflitos são vivenciados, justifi- cados e percebidos pelos seus membros. Questionando os membros do sistema, teremos condições de situar o nível e de descobrir o lugar da divergência e do conflito como uma categoria sociológica dentro daquele sistema, Essa é uma consideração absolutamente fundamen- tal, porque sem ela jamais poderemos transcender o empi, rismo que a antropologia social tem sistematicamente aju- dado a superar ao longo dos últimos anos, graças — SO- bretudo — à prática do trabalho de campo. Pois a percep- ção do que é uma divergência ou conflito, como procurei mostrar com o exemplo acima, exemplo incidentalmente ba- seado no sistema social dos índios Tupinambá (cf. Fernan- des, 1949), é efetivamente variável. Antes de termos aferido o evento pelo nosso sistema de classificação, é preciso saber como a sociedade em estudo o faz. E o primeiro problema é descobrir se aquilo é, efetivamente, um conflito ou uma disputa. Na nossa sociedade, uma disputa entre marido e mulher é, do ponto de vista masculino, uma «briga», uma «tolice», uma «chateação» ; frequentemente decorrente da «na- tureza estúpida» e «teimosa» da mulher. Não é uma disputa no mesmo sentido atribuído a uma discussão entre homens. Mas nos Estados Unidos contemporâneos essas «tolices» po- dem ocasionar processos jurídicos, pois o seu peso naquele sistema é muito maior. Tais disputas são simplesmente clas- sificadas de outro modo por lá. Tudo isso nos leva à considerar que a sociedade (o sis- tema) é anterior à multiplicidade de referências que existem socialmente no seu meio, Deste modo, não é a discussão fun- dada num ponto de vista individual que cria o fato diver- gente, mas é à sociedade com suas ideologias que abre den- tro dela tal espaço: seja para O indivíduo e para o espaço individual, seja para à discussão a partir destes espaços, seja ainda para à divergência e seu reconhecimento como algo legítimo. Existem sistemas sociais que toleram e até mesmo tomam o conflito como um alimento social básico para sua própria existência enquanto conjunto saudável e íntegro. Mas existem também sociedades cujo temor ao con- flito e à divergência é muito grande, daí certamente a sua dificuldade em reconhecer lutas e oposições que, para muitos, são evidentes. Há sistemas que dão prêmios aos divergentes, 164 pe so vistos como criativos e como figuras geni há e E Fu is pe lades que dão prêmios aos pacificadores, ou seja: os q Ep são fas de buscar um ponto comum na divergência so co ito. Creio que no Brasil, conforme já procurei Es nstrar em outro lugar (cf. Da Matta, 1979), buscamos pre encorajar esses pacificadores, que tomam a ordem e a totalidade como sagrados. et air dos seros Fondementalo em relação à crítica ao cha- onalismo» foi supor que E izi « ele apenas di to a sistemas i Pad coerentes, no sentido nm i a g n ormativo que está im- ae Pes nétÃO de «coerência». O outro erro foi supor que a idéia de «funcionalidade» isti à a existia apenas n: b: antropólogo e que ã ea ela não era, na realid: ão di ) pé a ade, uma noção di- prudida onde quer que exista uma sociedade de RE psi, á sistemas mais «funcionais» que outros e isso nada RE ae sem os ps ideologias e preferências teóricas a pólogos. Pois a despeito d: z a elas sabemos perfeit; mente que sociedades 0) ERRO ? SOC: s onde o todo tende a pr i bei à ? edominar sob as partes (as sociedades tradicionai É ; E jo s tradicionais), o conflito tende a pouco tolerado e reconheci. si DAS O a ! ecido. Nestes sistemas, divergênci são vistas e traduzidas idi = da heresia é s a s no idioma do pecado, d: i. Ee É ed é ado, da heresia e E loucira e assim expressos de forma totalizante, o que ale por sua negação social. Mas em sistemas onde E parte o pd idus) vale mais que o todo, as coisas se passam á contrário, pois aqui, conflitos, divergências e opiniões são far quéiros e fazem parte do mundo diário. Conforme fa- aros no a popular: «em cada cabeça, uma sentença» Nestas sociedades onde o indivídu: ) , Í o tem um lugar, confli poRcURc caro i U g itos, putos, divergências e diferenciações são elementos dados. no se pode esquecer que tudo indica serem eles parte ante do próprio sistema social, d ópri. j social, das próprias regr: moldam a estrutura da sociedade. o a o a problema dos graus de «divergência e de familiari- fede de cada sistema, tal como a questão dos graus de di h: penciação, heterogeneidade e divergência interna, para vol- ps aos po poRdantes pontos levantados por Velho, dizem o a níveis de análise e de observaçã : Te á rvação que são de fato E : : ç e fai papers. Não creio que possamos solucionar todos esses Ro emas aqui, mas estou convencido de que eles nos aju- am a levantar algumas questões básicas a respeito da con- cepção de sociedade a partir de uma perspectiva verdadei- 165 realizada fundamentalmente por meio de apreensões Pesa tivas) ao passo que, no segundo caso, é ado nm ligamento emocional, já que a familiaridade o cos! ã foi obtida via intelecto, mas via coerção socializa« pia assim, veio do estômago para a cabeça. Em ambos os : o porém, a mediação é realizada por um corpo pe ss guias (as chamadas teorias antropológicas) e conduzi e labirinto de conflitos dramáticos que servem como pe E fundo para as anedotas antropológicas e para acen as e toque romântico da nossa disciplina. Deste ae se a se insight está correto, é no processo de trans ormação Eee que devemos cuidar de buscar a definição cada vez mais P' cisa dos anthropological blues. . o . Seria, então, possível iniciar a demarcação da área bá- sica dos anthropological blues como aquela do elemento gas se insiníta na prática etnológica, mas que não estava sendo esperado. Como um blue, cuja melodia ganha força Ba petição das suas frases de modo a cada vez mais se E perceptível. Da mesma maneira que a tristeza e ON E (também blues) se insinuam no processo do Es alho a campo, causando surpresa ao etnólogo. É quando se se e gunta, como fez Claude Lévi-Strauss, «que viemos EA aq pi Com que esperança? Com que fim?» 8 a partir des! ra mento, pode ouvir claramente as intromissões de um ro j Es estudo de Chopin, ficar por ele obsediado e se abrir à tel Tá vel descoberta de que a viagem apenas despertava sua pró- pria subjetividade: «Por um singular paradoxo, diz Lév -Strauss, em lugar de me abrir a um novo universo, minha vida aventu- rosa antes me restituía o antigo, enquanto aquele ne eu pretendera se dissolvia entre os meus dedos. Quan o) mais os homens e as paisagens a cuja conquista eu partira perdiam, ao possuí-los, a significação que a deles esperava, mais essas imagens decepcionantes ainda que presentes eram substituídas por outras, epa reserva por meu passado e às quais eu não dera nenhum valor quando ainda pertenciam à realidade que me a deava» (Tristes Trópicos, São Paulo: Anhembi, 1956: 40288). 168 Seria possível dizer que o elemento que se insinua no trabalho de campo é o sentimento e a emoção. Estes seriam, para parafrasear Lévi-Strauss, os hóspedes não convidados da situação etnográfica. E tudo indica que tal intrusão da subjetividade e da carga afetiva que vem com ela, dentro da rotina intelectualizada da pesquisa antropológica, é um dado sistemático da situação. Sua manifestação assume várias formas, indo da anedota infame contada pelo falecido Evans- Pritchard, quando diz que estudando os Nuer pode-se facil- mente adquirir sintomas de «Nuerosis» *, até as reações mais viscerais, como aquelas de Lévi-Strauss, Chagnon e Maybury- Lewis * quando se referem à solidão, à falta de privacidade e à sujeira dos índios, Tais relatos parecem sugerir, dentre os muitos temas que elaboram, a fantástica supresa do antropólogo diante de um verdadeiro assalto de emoções. Assim é que Chagnon descre- ve sua perplexidade diante da sujeira dos Yanomano e, por isso mesmo, do terrível sentimento de estar penetrando num mundo caótico e sem sentido de que foi acometido nos seus primeiros tempos de trabalho de campo. E Maybury-Lewis guarda para o último parágrafo do seu livro a surpresa de se saber de algum modo envolvido e capaz de envolver seu informante, Assim, no último instante do seu relato é que ficamos sabendo que Apowen — ao se despedir do antropó- logo — tinha lágrimas nos olhos, É como se na escola pós- graduada tivessem nos ensinado tudo: espere um sistema matrimonial prescritivo, um sistema político segmentado, um sistema dualista etc. e jamais nos tivessem prevenido de que a situação etnográfica não é realizada num vazio e que, tanto lá quanto aqui, se pode ouvir os anthropological blues! Mas junto a esses momentos cruciais (a chegada e o último dia), há dentre as inúmeras situações destacá- veis — um outro instante que ao menos para mim se con- figurou como crítico: o momentê da descoberta etnográfica. Quando o etnólogo consegue descobrir o funcionamento de uma instituição, compreende finalmente a operação de uma regra antes obscura, No caso da minha pesquisa, no dia em que descobri como operava a regra da amizade formali.. 4. Cf. Evans-Pritchard, Os Nues 5. Para Lévi-Strauss, veja o já citado Tristes Trópicos; para Chagnon e Maybury- Lewis, confira, respectivamente, Yanomano: The Fierce People, Nova Torque: Holt, Rinchart e Winston, 1068, e The Savage and The Innocent, Boston: Bencon Press, 169 zada entre os Apinayé, escrevi no meu diátio em 18 de se- tembro de 1970: «Então ali estava o segredo de uma relação social muito importante (a relação entre amigos formais), dada por aca- so, enquanto descobria outras coisas. Ela mostrava de modo iniludível a fragilidade do meu trabalho e da minha ca- pacidade de exercer o meu ofício corretamente, Por outro lado, ela revelava a contingência do ofício de etnólogo, pois os dados, por assim dizer, caem dc céu como pingos de chuva. Cabe ao etnólogo não só apará-los, como conduzi-los em enxurrada para o oceano das teorias correntes. De modo muito nítido verifiquei que uma cultura e um informante são como cartolas de mágico: tira-se alguma coisa (uma regra) que faz sentido num dia; no outro, só conseguimos fitas coloridas de baixo valor... Do mesmo modo que estava preocupado, pois havia man- dado dois artigos errados para publicação e tinha que corrigi- log imediatamente, fiquei também eufórico. Mas minha eufo- ria teria que ser guardada para o meu diário, pois não havia ninguém na aldeia que comigo pudesse compartilhar de minha descoberta. Foi assim que escrevi uma carta para um amigo e visitei o encarregado do Posto no auge da euforia. Mas ele não estava absolutamente interessado no meu trabalho. E, mesmo se estivesse, não o entenderia, Num dia, à noite, quando ele perguntou por que, afinal, estava ali estudando índios, eu mesmo duvidei da minha resposta, pois procurava dar sentido prático a uma atividade que, ao menos para mim, tem muito de artesanato, de confusão e é, assim, totalmente desligada de uma realidade instrumental, E foi assim que tive que guardar o segredo da minha descoberta. E, à noite, depois do jantar na casa do encarre- gado, quando retornei à minha casa, lá só pude dizer do meu feito a dois meninos Apinayé que vieram para comer comigo algumas bolachas. Foi com eles e com uma lua ama- rela que subiu muito tarde naquela noite que eu comparti- lhei a minha solidão e o segredo da minha minúscula vitória». Esta passagem me parece instrutiva porque ela revela que, no momento mesmo que o intelecto avança — na ocasião da descoberta — as emoções estão igualmente presentes, já que é preciso compartilhar o gosto da vitória e legitimar com os outros uma descoberta. Mas o etnólogo, nesse mo- 170 mento, está só e, deste modo, terá que guardar para si pró- prio o que foi capaz de desvendar. E aqui se coloca novamente o paradoxo da situação etno- gráfica: para descobrir é preciso relacionar-se e, no momen- to mesmo da descoberta, o etnólogo é remetido para o seu mundo e, deste modo, isola-se novamente, O oposto ocorre com muita fregiiência: envolvido por um chefe político que deseja seus favores e sua opinião numa disputa, o etnólogo tem que calar e isolar-se. Emocionado pelo pedido de apoio e temeroso por sua participação num conflito, ele se vê obri- gado a chamar à razão para neutralizar os seus sentimentos e, assim, continuar de fora. Da minha experiência, guardo com muito cuidado a lembrança de uma destas situações e de outra, muito mais emocionante, quando um indiozinho, que era um misto de secretário, guia e filho adotivo, ofereceu- me um colar. Transcrevo novamente um longo trecho do meu diário de 1970: «Pengy entrou na minha casa com uma cabacinha presa a uma linha de tucum. Estava na minha mesa remoendo dados e coisas. Olhei para ele com o desdém dos cansados e explorados, pois que diariamente e a todo o momento minha casa se enche de índios com colares para trocas pelas minhas missangas. Cada uma dessas trocas é um pesadelo para mim. Socializado numa cultura onde a troca sempre implica numa tentativa de tirar o melhor partido do parceiro, eu sempre tenho uma rebeldia contra o abuso das trocas propostas pelos Apinayé: um colar velho e mal feito por um punhado sempre crescente de missangas. Mas o meu ofício tem desses logros, pois missangas nada valem para mim e, no entanto, aqui estou zelando pelas minhas pequenas bolas coloridas como se fosse um guarda de um banco. Tenho ciúme delas, estou apegado ao seu valor — que eu mesmo estabeleci... Os índios chegam, oferecem os colares, sabem que eles são mal feitos, mas sabem que gu vou trocar. E assim fa- zemos as trocas. São dezenas de colares por milhares de missangas. Até que elas acabem e a notícia corra por toda a aldeia. E, então, ficarei livre desse incômodo papel de comerciante. Terei os colares e o trabalho cristalizado de quase todas as mulheres Apinayé. E eles terão as missangas para outros colares. Pois bem, a chegada de Pengy era sinal de mais uma troca. Mas ele estendeu a mão rapidamente: 171