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UNIVERSIDADE FEDERAL DE SANTA CATARINA Reitor Lúcio José Botelho Vice-Reitor Ariovaldo Bolzan EDITORA DA UFSC Diretor Executivo Alcides Buss Conselho Editorial Eunice Sueli Nodari (Presidente) Cornélio Celso de Brasil Camargo Carmen Silvia Rial João Iernesto Weber José Rubens Morato Leite Maria Cristina Marino Calvo Nilcéa Lemos Pelandré Regina Carvalho Paul Claval 3F edição Tadução de Luíz Fugazzola Pimenta e Margareth de Castro Afeche Pimenta Editora da UFSC Florianópolis 2007 Sumário introdução ... Primeira Parte Gênese e evolução das interpretações culturais na geografia 19 20 Capítulo 1: Nascimento e primeiros desenvolvimentos . 1/Os primórdios da geografia cultural de língua alemã 2.A geografia cultural americana: Carl Ortwin Sauer e a escola de Berkeley ..... enenees .. 29 3 A dimensão cultural da geografia humana francesa: gêneros de vida e paisagens 33 Conclusão ... 40 Capítulo 2: Aprofundamento, crise e renovação ... ..41 1 Os esforços de aprofundamento 41 2 Crise e declínio da geografia cultural. 46 3 (Um novo contexto para a geografia cultural. 49 4 A reconstrução da geografia cultural “55 Segunda Parte Cultura, vida social e domínio do espaço Capítulo 3: Transmissão da experiência coletiva e gênese das eulturas 1 A cultura como herança, À transmissão 2 Transmissão e códigos de comunicação 30 que é transmitido 4 A memória e suas formas... 5 Os códigos, as regras e a plasticidade da cultura .. Capítulo 4: Uma geografia do próprio homem 1 A cultura e as etapas da vida . 2 Do indivíduo à pessoa ..... 3 Complexidade social, cultura e estratégias individuais .............. 102 Conclusão ... Capítulo 5: Cultura e vida social... 1 Cultura e relações sociais institucionalizadas 2 Cultura e coesão social. A comunidade . 3 Cultura e estruturas de base da vida social: os sistemas de parentesco 4 Cultura e funcionamento da sociedade . 5 A cultura e as margens da sociedade Capítulo 6: Instituição da sociedade e mitos fundadores ........ 137 1A cultura como ordem instituída .. 2 O outro lugar, 0 além e a construção da ordem dos valores . 3 As relações do nosso mundo com outros mundos Capítulo 7: As relações entre diferentes culturas . 10 papel da distância na formação das áreas culturais . 2. As barreiras culturais: mudanças de códigos e barreiras políticas . 3 As barreiras culturais: identidade e recusa dos empréstimos .... 178 4 Os componentes da cultura Terceira Parte Cultura, meio e paisagem Capítulo 8: Orientar-se e reconhecer-se. Marcar, recortar, institucionalizar e apropriar-se do espaço ... « 189 189 194 . 201 207 .216 1 Reconhecer-se 2 Orientar-se... 3 Nomear os lugares, qualificar os espaços .... 4 Institucionalizar lugares e territórios . 5 Apropriar-se do espaço e marcá-io 3 As sociedades modernas, ou a unidade reencontrada através da generalização da escrita eres . 342 4 Culturas de massa e culturas eruditas ou técnicas: uniformização e ruptura .... « 349 Capítulo 13: Modernização e ocidentalização .. 351 1 A idéia de transição cultural . 351 2 A modernização: as interpretações econômicas .. 360 3 A modernização: a abordagem cultural... 365 4 A ocidentalização do mundo e seus limites 371 Conclusão ..... 384 Capítulo 14: Os desafios culturais do mundo atual ............. 387 1A perseguição e os fracassos da modernização « 387 2 (ma nova transição cultural.......... 392 3 Questionamento da cultura ocidental e pós-modernidade .. 397 4A ampliação da vida de relações e a multiplicação dos choques culturais... nero x .. 406 5 As recusas de ocidentalização .. 6 Situações de tensão e estratégias de coexistência ... Conclusão Bibliografia Introdução Desde Heródoto, os geógrafos questionam-se sobre a extrema diversidade dos povos e suas culturas. Ela se lê nas paisagens campestres: patamares dos luzentes arrozais da Ásia, imenso tabuleiro de lavouras do Middle West, faixas das terras lorenas... As cidades são também muito variadas, largas avenidas retilneas aqui, dédalo de ruas cegas acolá. Os grandes monumentos em louvor aos deuses e aos príncipes exprimem sempre a especificidade orgulhosa de um povo. A diversidade estende-se ao sotaque e à melodia das línguas e das músicas variadas. Ela é sentida no odor ácido ou condimentado das cozinhas. Torna-se inquietante, quando se trata de um abismo que separa as populações desprovidas e esforneadas de certos países, e os lugares transbordantes de riquezas. Por que esses contrastes? Respostas simples satisfizeram durante muito tempo: t É a natureza que impõe aos povos a maneira de se alimentar, de se vestir, de construir suas casas. Transforma-os em sedentários pacíficos ou nômades agressivos. O Norte temperado é rico. O Sul tropical é quente e pobre. É a natureza! Este determinismo sumário não resiste à comprovação. 2) É a raça, pretendem alguns, daí as diferenças biológicas fundamentais de ordem física (força ou aptidão ao trabalho) e sobretudo intelectuais, que provocam as diferenças culturais maiores. Os brancos são superiores a todos os outros. Nada de surpreendente no fato de que tenham descoberto o fuzil, a estrada de ferro e a escravatura! Teoria dramática, formalmente desmentida pelo bom senso e pela ciência. Reafirmou-se a idéia de unicidade da espécie humana, do homem universal possuindo em todas as partes o mesmo metabolismo e as mesmas capacidades intelectuais. Mas então, por que estas diferenças de cultura? São elas devidas a açelerações da história em alguns lugares e a atrasos em outros? introdução mn ambiência apaixonada e frequentemente agressiva. A supremacia indiscutível da cultura ocidental na direção de um futuro melhor é posta em questão. Outros modelos, imbuídos frequentemente de nostalgia passadista da idéia de retorno a uma idade de ouro mais ou menos mítica, seduzem contingentes consideráveis, ressuscitam velhos antagonismos e conduzem a confrontos sangrentos. Como identificar uma cultura? Como compreender os limites de sua extensão e as formas que têm sua inserção no espaço? Qual a natureza e a importância das barreiras e fronteiras culturais, e suas relações com as fronteiras políticas? O objetivo desta obra é contribuir à reflexão destes problemas de uma atualidade candente. A cultura é um campo comum para o conjunto das ciências humanas. Cada disciplina aborda este imenso domínio segundo pontos de vista diferentes. O olhar do geógrafo não dissocia os grupos dos territórios que organizaram e onde vivem; a estrutura e a extensão dos espaços de intercomunicação, a maneira como os grupos vencem o obstáculo da distância e algumas vezes 'o reforçam estão no cerne da reflexão. A geografia humana estuda a repartição dos homens, de suas atividades e de suas obras na superfície da terra, e tenta explicá-la pela maneira como os grupos se inserem no ambiente, o exploram e transformam; o geógrafo debruça-se sobre os laços que os indivíduos tecem entre si, sobre a maneira como instituem a sociedade, como a organizam e como a identificam ao território no qual vivem ou com o qual sonham. O peso da cultura é decisivo em todos os domínios: como os homens percebem e concebem seu ambiente, a sociedade e o mundo? Por que os valorizam mais ou menos e atribuem aos lugares significações? Que técnicas os grupos adotam, no sentido de dominar etornar produtivo ou agradável o meio onde vivem? Como imaginaram, atualizaram, transmitiram ou difundiram o seu knotu-how? Quais são os elos que estruturam os conjuntos sociais e como são legitimados? De que maneira os mitos, as religiões e as ideologias contribuem para dar um sentido à vida e ao contexto onde ela se realiza? Estas pesquisas colocam, uma após a outra, a tônica sobre aspectos diferentes da cultura: 12 Ageografia cultural 1 A cultura é mediação entre os homens e a natureza Os homens não estão jamais em relação direta com a natureza: vivem num meio artificial que eles mesmos criaram; o vestuário e a casa os protegem das vicissitudes do clima; os caminhos e as vias facilitam a circulação. A vegetação natural é destruída e substituída pelas florestas cuja composição é controlada, pelas pastagens ou planícies para alimentar os animais, e pelos campos onde se desenvolvem as culturas. As forças humanas foram há muito tempo substituídas pela energia fornecida pelos animais, a madeira, o vento e as águas correntes. Os combustíveis fósseis e hoje o átomo servem para acionar as máquinas e as ferramentas que multiplicam a produção e asseguram aos grupos um controle cada vez mais reforçado -- mas nunca total — sobre os meios onde vivem e sobre aqueles que contribuern para a satisfação de suas necessidades. : A cultura que interessa aos geógrafos é, pois, primeiramente constituída pelo conjunto dos artefatos, do know-how e dos conhecimentos através dos quais os homens mediatizam suas relações com o meio natural. 2 A cultura é herança e resulta do jogo da comunicação Nem todas as sociedades dispõem do mesmo arsenal de conhecimentos e técnicas, e do mesmo registro de interpretações e de motivações. Os indivíduos e os grupos são condicionados pela educação que receberam: a cultura aparece, assim, como uma herança. As modalidades segundo as quais a cultura é transmitida de uma geração a outra ou de um lugar a outro, favorecida pelas trocas, pelos deslocamentos de curta duração ou pelas migrações, dependem do meio e do nível técnico; elas contribuem amplamente para a diversidade das sociedades. Como se forma a memória coletiva que identifica um grupo? Como a informação passa de uma geração a outra? Como a comunicação se estabelece e é capaz de superar o distanciamento e a distância? A diversidade cultural está relacionada essencialmente aos obstáculos físicos, ou às realidades e barreiras psicológicas? Os geógrafos que se especializam nas realidades culturais prendem-se, assim, aos caminhos que seguem as informações no interior dos grupos e analisam todos os aspectos da comunicação. 14 Ageografia cultual A cultura é constituída de realidades e signos que foram inventados para descrevê-la, dominá-la e verbalizá-la. Carrega-se, assim, de uma dimensão simbólica. Ao serem repetidos em público, certos gestos assumem novas significações. Transformam-se em rituais e criam, para aquetes que os praticam ou que os assistem, um sentimento de comunidade compartilhada. Na medida em que a lembrança das ações coletivas funde-se aos caprichos da topografia, às arquiteturas admiráveis ou aos monumentos criados para sustentar a memória de todos, o espaço torna-se território. 5 A cultura é um fator essencial de diferenciação social A aventura pela qual cada um se impregna da cultura do grupo onde vive é fundamentalmente individual. Nem todo mundo recebe a mesma bagagem, não a interioriza da mesma maneira e nem a utiliza para os mesmos fins. A cultura é um dos fatores essenciais da diferenciação das situações sociais e do status que é reconhecido a cada um. Nas sociedades complexas, nem todos compartilham da mesma herança: existe um modelo aceito por muitos e cuja ascendência é tal que é reconhecido pela maioria da população — chamado dominante — mas este é contrabalançado pelas dissidências, pelas contraculturas e pelos movimentos de revolta, 6 A paisagem carrega a marca da cultura e serve-lhe de matriz: objeto privilegiado dos trabalhos de geografia cultural, sua interpretação é fregiientemente ambígua A paisagem traz a marca da atividade produtiva dos homens e de seus esforços para habitar o mundo, adaptando-o às suas necessidades. Ela é marcada pelas técnicas materiais que a sociedade domina e moldada para responder às convicções religiosas, às paixões ideológicas ou aos gostos estéticos dos grupos. Ela constitui desta maneira um documento-chave para compreender as culturas, o único que subsiste frequentemente para as sociedades do passado. As crianças assimilam conhecimentos, atitudes e valores observando o que se faz à sua volta e imitando-os; as lições recebidas Introdução 15 dos adultos destacam os símbolos dos quais são portadores os lugares. A paisagem torna-se, assim, uma das matrizes da cultura. As paisagens constituem um objeto de estudo fascinante para aqueles que se interessam pela geografia cultural, mas a sua interpretação nunca é fácil: falam dos homens que as modelam e que as habitam atualmente, e daqueles que lhes precederam; informam sobre as necessidades e os sonhos de hoje, e sobre aqueles de um passado muitas vezes difícil de datar. A geografia cultural foi criada a partir do início do século: seguindo as etapas de seu desenvolvimento, compreende-se suas sutilezas, as dificuldades encontradas e a maneira como foram superadas. A evocação dos progressos da reflexão (primeira parte) prepara a análise dos componentes da démarche cultural. A segunda etapa é dedicada à maneira como a cultura interfere na estrutura espacial das sociedades. Os desenvolvimentos da terceira parte evocam a marca das sociedades sobre o ambiente onde vivem e as paisagens onde evoluem. Nem todas as culturas inscrevem-se no mesmo nível de desenvolvimento: é o que objetiva a quarta parte deste ensaio. Primeira Parte Gênese e evolução das interpretações culturais na geografia A geografia cultural nasceu da diversidade dos gêneros de vida e das paisagens (capítulo 1). Aparentemente condenada ao declínio pela uniformização técnica, reencontra seu dinamismo, ligando-se às representações e aos sentimentos de identidade que lhe estão vinculados (capítulo 2).