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Baixe charolles michel introducao aos problemas de coerencia dos textos e outras Esquemas em PDF para Economia de Empresas, somente na Docsity!
GRIVEL, €, Production de 'intérêt romanesque. Paris/La Haye: Mouton, 1973. | GUESPIN, L. Problématique des travaux sur le discours politique. Langages. [s.1.], n. 23, sept. 1971. JENNY, L. Stratégie de la forme. Poétique. [s.1.], n. 27, 1976. ) JAUSS, HR, Littérature médiévale et théories des genres. Poétique. [s.1.], n. 1, 1970. 38 INTRODUÇÃO AOS PROBLEMAS DA COERÊNCIA DOS TEXTOS* É (Abordagem teórica e estudo das práticas pedagógicas) Michel Charolles “Andávamos e escapavam-lhe frases quase incoerentes. Apesar dos meus esforços, mal acompanhava as suas palavras, limi- tando-me, enfim, em fixá-las. A incoerência do discurso depende de quem ouve. O espírito parece-me feito de tal forma que ele não pode ser incoerente para si mesmo. Por isso não me atrevi a classificar Teste como louco. Aliás, percebia vaga- “mente a ligação de suas idéias, não observava nelas nenhuma contradição; além do mais, eu teria temido uma solução sim- ples demais.” (Paul Valéry, “Senhor Teste”) ” INTRODUÇÃO et E ts Não é qualquer conjunto de palavras que produz uma frase. Para que uma segiiência de morfemas seja admitida como frase um locutor-ouvinte nativo, é preciso que respeite uma certa combinatória, é preciso que seja composta segundo o sis- Agma da língua. Todo membro de uma comunidade lingiiística tem “Wm conhecimento intuitivo e uma prática imediata dessas rições estruturais. A ordem da língua aparece no uso sob a na de prescrições imperativas implícitas, constituindo uma a mínima a partir da qual todo falante é capaz de realizar ânea e ingenuamente operações discriminatórias funda- is do gênero “não é português”, “uma algaravia”... Essas ificações radicais acarretam procedimentos severos de : sancionando uma falta às regras constitutivas sobre as repousa o consenso lingúístico, tem por consegiiência uma iWginalização em relação aos circuitos da troca comunicativa e marcação sociológica mais ou menos redibitória. Em todo em Larigue Française. Paris: Larousse, n. 38, 1978 39 t caso, essas desqualificações são de natureza totalmente diferente das avaliações lingúísticas pejorativas do tipo “familiar”, “vul- gar”... que remetem a infrações secundárias que não colocam em questão o sistema e que têm por efeito simples desclassificações (“inculto”, “provinciano”...). Essa ordem normativa constitutiva implícita é explicitada pela gramática (de frase) que a reproduz teoricamente, construin- do regras combinatórias sobre as quais repousa. A gramática substitui as discriminações ingênuas radicais por marcas aprecia- tivas teóricas (“gramatical/agramatical”), controláveis e eventual- mente apuráveis no interior do modelo das quais resultam. A sub- rogação teórica das avaliações pejorativas entra da mesma maneira no campo da gramática, que troca as taxinomias ingênuas por taxinomias técnicas (“não padrão”, “semifrase”...) que são igualmente derivadas do modelo de base segundo procedimentos especiais apropriados. Tanto num caso como no outro, os julga- mentos de saída, engendrados pela gramática, têm (em princípio e idealmente) a mesma abrangência empírica que os julgamentos ingênuos de entrada. As considerações que precedem foram introduzidas a partir da frase, mas têm o seu equivalente exato ao nível do texto. Da mesma maneira que um conjunto de palavras não produz uma frase, um conjunto de frases não produz um texto. Tanto ao nível do texto como no plano das frases, existe, então, critérios efi- cientes de boa formação que instituem uma norma mínima de composição textual. O uso dessa norma conduz a desqualificações maciças e ingênuas: “este texto não tem pé nem cabeça”, “esta história não tem cabimento”... muito mais poderosas que as avaliações depreciativas do tipo “mal escrito”, “mal formulado”, que só dizem respeito aos arranjos de superfície, mas não blo- queiam fundamentalmente o processo comunicativo. Essas desqualificações ingênuas são inconcebíveis se não forem rela- cionadas, elas também, com um sistema implícito de regras inte- riorizadas igualmente disponíveis para todos os membros de uma comunidade lingiiística. Esse sistema de regras de base constitui a competência textual dos sujeitos, competência que uma teoria — ou gramática — do texto se propõe a instituir como modelo. Uma tal gramática (cujo projeto é, em todos os pontos, com- parável ao das gramáticas de frases evocadas acima) fornece, no interior de um quadro formal e problemático determinado, o con- 40 E junto (em princípio exaustivo) das regras de boa formação textu- al. Dessas regras podem-se derivar julgamentos teóricos chama- é dos de coerência, abrangendo, se possível, exatamente o campo * das apreciações vernaculares de desqualificação máxima e “jul- * gamentos de não padronização” correspondendo às depreciações | de superfície.1 Numa comunidade lingúística a maioria dos sujeitos tem um * domínio perfeito das regras de boa formação frástica e textual; é, portanto, muito raro que um indivíduo tenha que produzir julga- mentos de desqualificação radical em relação às produções ver- é bais dos seus semelhantes. É quase só nas obras lingiísticas que se encontram, a título de exemplos especulativos, conjuntos de : palavras ou de frases contrariando frontalmente o sistema consti- tutivo da língua. A construção das gramáticas e, de modo mais geral, a elaboração teórica obrigam a recorrer a tais artifícios heurísticos: para se descobrir uma regra fundamental, o meio mais seguro ainda é raciocinar sobre enunciados desviantes que repre- “sentam o avesso (e, logo, também o direito) do mecanismo procu- rado. Estaríamos, contudo, errados se pensássemos que essas aberrações só ocorrem no laboratório do lingúista; existem, com efeito, situações bem reais em que um sujeito (ou um grupo) chega a considerar tal ou tal desempenho verbal como fundamen- talmente paradoxal. Essas situações são facilmente localizáveis: no interior de uma sociedade dada, é geralmente estabelecido que essas manifestações de linguagem mais ou menos teratológicas 'emanam de categorias determinadas (doentes mentais, crianças) ou referem a modos de funcionamento particulares (arte, magia...). Daí resulta, aliás, que todo indivíduo confrontado com enunciados desse tipo sabe, segundo a situação (reconhecida), 1 A fundação de uma gramática de texto repousa numa argumentação original diretamente transferida daquela a partir da qual foi constituído o projeto de uma gramática e transforma- cional (cf. CHOMSKY, 1969 e 1971). As gramáticas textuais sofrem, portanto, nas suas disposições iniciais, de insuficiência idênticas aquelas que foram detectadas nas gramáticas gerativas e transformacionais. Constatamos entretanto que, quaisquer que sejam as reservas que possamos emitir em relação a conceitos como competência, performance, tais genera- lizações permitem, primeiramente, constituir um quadro de sistematizações bastante operatório e certamente insubstituível. Os modelos atuais desenvolvidos pelos gramáticos do texto ultrapassam aliás consideravelmente esses limites originais, por causa notadamente de sua dimensão pragmática (CF. os trabalhos e artigos de PETÓFI e VAN DIJK citados nas referências bibliográficas). — que de forma geral, os erros não estão exatamente loca- lizados no texto, são raramente grifados mas, em geral, estão marcados por indicações gráficas colocadas na margem, ou por rasuras que riscam de maneira aproximativa passagens de dimensões variáveis; — que o vocabulário de denúncia não apresenta, freguente- mente, nenhum caráter técnico: traduz uma impressão global de leitura (“incompreensível”, “não quer dizer nada”...), uma difi- culdade de apreensão geral (“7”) e empresta as suas imagens, amplamente, do registro vernacular (isem pé nem cabeça”...); — que as práticas corretivas são muito fregiientemente brutais (“refazer”) e quase nunca acompanhadas de exercícios sis- temáticos de manipulação (a não ser para “os erros de tempo”). Dessa comparação ressalta que os professores, confrontados com enunciados transfrásticos malformados, não passam geral- mente do nível de apercepção imediata, da avaliação comum e estão relativamente sem recursos para construir segiiências de aprendizagem apropriadas. Tudo se passa então como se não dis- pusessem, no plano do texto, de um conhecimento efetivo do sis- tema de regras a partir do qual operam desqualificações. Essa situação é pedagogicamente prejudicial: o professor que não domina teoricamente um quadro normativo é reduzido a fazer respeitar, a cada vez que surge um problema, uma ordem sobre a qual não tem domínio. Disso decorre uma menor eficácia didáti- ca, o uso de práticas diretivas e sobretudo uma ausência de controle do que está realmente em jogo sob a forma imposta. Quem se remete ao uso mais ou menos cego de uma ordem normativa não tem outro caminho a não ser a censura, fica con- denado a “não compreender” e a rejeitar na a-normalidade, ou na sub-normalidade, tudo o que não está de acordo. Sem querer dizer, em relação à questão de coerência textual, que os profes- sores chegam a tais extremos, é bastante significativo observar que quando perguntados sobre os alunos que cometem erros desse tipo, confessam-se sobretudo desarmados, evocam facilmente empecilhos intelectuais profundos ( “ausência de espírito lógico”, “incapacidade de raciocinar”...) e só raramente fazem alusão ao meio familiar e cultural das crianças. Quando se considera que os mesmos professores, quando falam de alunos que têm problemas com a sintaxe e com o léxico, ao contrário, chegam muito rapida- 44 * mente a “explicar” essas dificuldades pelo nível sociocultural das crianças, é bastante tentador se fazer a ligação entre essa diferença de interpretação e o domínio teórico desigual das restrições que * operam no plano da frase e do texto. O relato empírico que precede é talvez muito esquemático e muito contestável, mas, se lhe for concedido algum valor repre- sentativo, parece que há urgência em se desenvolver pesquisas (e | informação) na área da teoria do texto, aprofundando particular- mente esta questão de coerência. É por essa razão que | gostaríamos agora de propor algumas orientações sobre esse ponto, inspirando-nos (bastante livremente, como se verá) em tra- balhos de gramáticas de texto nos quais se encontram, atualmente, os elementos de teorização, a nosso ver, mais avançados e mais consegiientes. Claro, os esclarecimentos que se podem esperar desta orientação teórica não vão de maneira nenhuma trazer “soluções” aos problemas pedagógicos do texto escrito. Tudo que * se pode esperar, num tal empreendimento, é nutrir ou provocar um movimento de reflexão que sirva para alimentar o diálogo : entre, de um lado, a pesquisa fundamental e a pesquisa pedagó- gica e, de outro, os pesquisadores e os praticantes. 2 — PARA UMA ABORDAGEM TEÓRICA DO PROBLEMA DA COERÊNCIA TEXTUAL E DISCURSIVA Não se trata, no quadro deste artigo, de dar uma idéia precisa da forma de uma gramática de texto? Na introdução, lembramos às grandes linhas do projeto que está na origem de uma tal gramática, limitando-nos a uma visão geral da abrangência do modelo, a fim de concentrarmos toda a nossa atenção sobre o * problema particular da coerência para apresentar algumas regras de boa formação textual. Dado o caráter limitado das referências formais que serão aqui levadas em conta, não será possível for- mular essas regras de maneira rigorosa e, consegientemente, nos termos do modelo. Assim, limitar-nos-emos a enunciar e discutir = quatro metarregras de coerência remetendo a uma apreensão geral, aproximativa e, ainda, pré-teórica da questão. Essas quatro “= metarregras serão chamadas: é. 3 Para uma tentativa de síntese sobre o assunto cf. CHAROLLES, 1976. — metarregra de repetição; — metarregra de progressão; — metarregra de não contradição; — metarregra de relação. Para introduzi-las, apoiar-nos-emos em enunciados fabrica- dos para esse fim e apresentando malformações típicas. No entanto, embora, cada vez que for possível, procuraremos ultra- passar este corpus ad hoc e artificial para raciocinar sobre tex- tos realmente produzidos . Recorreremos, então, aos espécimes mais representativos de nosso conjunto de textos de alunos, acompanhados eventualmente das correções do professor, o que nos permitirá: — por um lado, valer-nos das avaliações atestadas; . — por outro, verificar se as “apreciações ingênuas” dos profes- sores são uma ativação implícita das quatro metarregras apre- sentadas (o que já será uma primeira maneira de provar a sua validade). Três observações, antes de examinarmos cada uma dessas metarregras. 1) Coerência e linearidade textual Não se pode refletir sobre a coerência de um texto sem levar em conta a ordem de aparição dos segmentos que o constituem.5 Isso significa que a gramática de base, à qual referem em profun- didade as metarregras de coerência, integra relações de ordem: essencialmente a relação “preceder” (notada (<=) para indicar que a coerência do “seguido” é função do “precedente”) e acessoria- mente a relação inversa (=>), que é derivada da primeira, segun- do um processo transformacional apropriado. Essas relações de ordem que figuram no modelo são relações abstratas sem relação direta com os mecanismos de leitura concretos nos quais intervêm 4 Os textos de alunos ou trechos citados como exemplos serão apresentados com o número de ordem marcado por um círculo. 5 CE BELLERT, 1970. parâmetros de desempenhos variados e complexos de analisar (movimentos e velocidades de percepção, memorização...). 2) Coerência microestrutural e coerência macroestrutural Certo número de gramáticos de textof estabelece uma dis- tinção muito importante entre dois níveis de organização textual, * que qualificam de macroestrutural e microestrutural. Para medir com precisão a abrangência dessa distinção seria necessário recolocá-la no contexto do modelo que a sustenta. Sem chegar a isso, pode-se entretanto dar uma idéia da sua pertinência partindo das seguintes constatações que são, aliás, relativamente triviais. “Seja o texto seguinte: (1) Oscar partiu para São Paulo. Deixou cedo seu escritório para tomar o trem das 16 horas. Seu carro ficou no estacionamento da estação de Campinas. Em São Paulo, Oscar deve encontrar alguns amigos com os quais tenciona preparar um número de uma revista de cinema. Vai trabalhar com eles para organizar um sumário coerente. E Esse texto compreende dois parágrafos cujo recorte parece «corresponder, numa primeira aproximação, a uma mudança de «perspectiva espaço-temporal e temática. Esses dois parágrafos “constituem duas segiiências (S1 e S2) incluídas na unidade supe- «rior e última formada pelo texto inteiro. Conforme se considera o iplano seqiiencial ou o textual, os problemas de coerência colo- ““cam-se em termos mais ou menos diferentes: — num nível local ou microestrutural, a questão incide exclusi- vamente nas relações de coerência que se estabelecem, ou não, entre as frases (sucessivamente ordenadas) da sequência; — num nível global ou-macroestrutural, a questão incide, ao contrário, nas relações que se estabelecem entre as sequências consecutivas. Com relação a esses dois níveis de articulação problemática, «sadmitir-se-á: po . 156. Em particular VAN DJIK, 1972, 1973, 19754, 19769, 1976b. Segundo nos consta, I. Bellert? foi a primeira a formular de maneira rigorosa essa restrição. Em “On a condition of the cohe- rence of texts”, escreve (p. 336): “a repetição constitui uma condição necessária — embora evidentemente não suficiente — para que uma segiiência seja coerente.” Essa afirmação corresponde bem, a nosso ver, à idéia intuitiva que temos de um enunciado coerente, a saber: o seu caráter sequencial, seu desen- volvimento homogêneo e contínuo, sua ausência de ruptura (sem “alhos com bugalhos”). Para assegurar essas repetições, a língua dispõe de recursos numerosos e variados: pronominalizações, definitivações, referenciações contextuais, substituições lexicais, recuperações pressuposicionais, retomadas de inferência... Todos esses proce- dimentos permitem ligar uma frase (ou uma segiúência) a uma outra que se encontra no seu contexto imediato, lembrando pre- cisamente tal ou tal constituinte num constituinte vizinho. a) As pronominalizações. Sabe-se que a utilização de um pronome torna possível a repetição, à distância, de um sintagma ou de uma frase inteira. No caso mais fregiiente da anáfora, a retomada se efetua de frente para trás: (3) Uma velhinha foi assassinada na semana passada em Campinas. (<=) Ela foi encontrada estrangulada na banheira. No caso mais raro da catáfora o pronome antecipa (=>) sobre seu referente: o termo de retomada, primeiro vazio, só recebe interpretação semântica depois de um feedback de restabeleci- mento. 10 , (4) “Vou confessá-lo (=>): este crime me perturbou.” As pronominalizações resultam da aplicação de processos transformacionais sobre os quais pesam restrições. A mais conhecida é a proposta por Langacker!l, que estipula que um pronome não pode, na representação sintagmática intermediária, ao 9 BELLERT, 1970. 10 Cf. MAILLARD, 1974, e COMBETTES, 1975. 11 Cf FAUCONNIER, 1974. mesmo tempo preceder e comandar o grupo ao qual refere. Toda infração a essa regra conduz a enunciados aberrantes do gênero: (5) “Ele (1) (=>) sabe muito bem que Pedro (2) não estará de acordo com Mário (1).” Num enunciado como (5) não é possível interpretar “ele” como representando “Mário”; diante de uma tal ocorrência, a única solução consiste então em recuperar o pronome da 3º pes- soa como remetendo (exoforicamente) a um indivíduo diferente de Pedro (2) e Mário (1), o qual deve-se supor que foi citado ante- riormente ou que é perfeitamente conhecido do emissor e do receptor. Se tal interpretação não for possível, “ele” é percebido como um afórico puro cuja aparição abre um vazio na seqiiência e quebra seu desenvolvimento contínuo. As falhas desse tipo não são raras em textos escritos dos alunos: O Em seguida os palhaços entrou na cabine e os três números reapareciam e os espectadores diziam — bravo bravo”. Em seguida o apresentador voltou e disse: “crianças vocês podem pegar eles, tem de todas as cores.” (sublinhado por nós no texto — anotações do professor: “7” na margem) A menção de palavras relatadas conduz fregiientemente a empregos pseudocatafóricos: um pronome de início introduzido como um exofórico situacional é reavaliado a posteriori segundo um sistema de recuperação com ingerência enunciativa. O) “A outra mulher lhe disse: “põe ela no chão”, é a maleta que tem que pôr no chão.” Às vezes a elucidação do que veio antes é comprometida pelo afastamento. (8) “Eu digo a Paulo “olha esse pássaro”. Ele me disse preste muita atenção pois se ela (=>) se agarra nos teus cabelos, preci- sará cortar eles rente para poder enterrar ela. No dia seguinte, quando voltei, queria pôr um chapéu pois tinha medo que a guandira se emaranhasse nos meus cabelos.” Outra malformação muit ii À o fregiiente nas redações alunos: as ambigiidades referenciais. é dos (2) “Pedro e minha irmã estavam nadando no rio. Um dia, um hoómem estava tomando banho; como ele sabia nadar, ensinou Sem verdadeiramente romper a continuidade segiencial, ésses disfuncionamentos introduzem “zonas de incertezas” no exto; certas ambigiiidades são recuperáveis contextual ou estrate- gicamente (cf. MR3), outras, ao contrário, são insuperáveis, crian- N do um vazio interpretativo comparável uele que resulta dos Ip: aq que resul b) As definitiviações e as referenciações dêiticas contextuais. Como as pronominalizações, as definitivações permitem retomar declarada ou virtualmente!2 um substantivo de uma frase para outra ou de uma segiiência para outra: º (10) “Minha avó tem duas cabras. Todos os di i 7 A . las, a gente ia ao O jardim à 3 Km. As cabras (<=) passeiam em volta” n Certas restrições de proximidade, relativamente difíceis de ' ar Parecem pesar sobre o emprego dos determinantes eiinidos; assim, quando o nome repetido se encontra no contex- to imediato que o precede, o emprego dos dêitic: contextuais é i - ipregy Biticos contextuais (11) “Jerônimo acaba de co: o ara mprar uma casa. À casa é grande e (12) “Jerônimo acaba de comprar um: anime Ip) a casa. Esta casa é grande Entretanto, quando o substantivo inici i . , tivo inicial é introduzid« - Juntamente com outros como em “eo com (13) “Jerônimo acaba de adquiri j ACé 'quirir uma casa com celeiro.” a retomada pela definitivação não coloca nenhum problema: (13) (continuação) “A casa é grande e tem estilo.” 12 Sobre essa distinção cf. MILNER, 1976. * A respeito dos exemplos (10), (11) e E ) (12), note-se que o artigo ter is t £o em português do que em francês (N, do T). o tm tl mari 52 As crianças do primeiro grau parecem dominar bem esses ocedimentos de retomada que utilizam, aliás, abundantemente, smpre contra a vontade dos professores que caçam repetições. 5) As substituições lexicais. O uso dos definitivos e dos dêiticos êntextuais é acompanhado frequentemente de substituições lexi- jis. Esse procedimento permite evitar as retomadas lexemáticas “ão mesmo tempo em que se garante uma retomada estrita: - (14) “Houve um crime na semana passada na cidade: uma ve- lhinha foi estrangulada na banheira. Este assassinato é odioso.” Também nesse caso, certas restrições (semânticas) regula- mentam rigorosamente o emprego das substituições!3; por exem- lo, numa língua como o português, o termo mais genérico não ' pode preceder seu representante: (15) “Um homem desertou em Poços de Caldas, em 1932. O Paulista refugiou-se numa fazenda onde foi bem acolhido.” (16) “Um Paulista desertou em Poços Caldas em 1932. O homem refugiou-se numa fazenda, onde foi bem acolhido.” Por difícil que seja analisar essas restrições, elas não colo- cam problemas maiores no quadro de uma gramática de textos com base semântica. Mais problemática é a questão de saber se o emprego simultâneo de um determinante definido com um lexe- ma de substituição é suficiente para estabelecer uma co-referência estrita. Evidentemente, enquanto se consideram exemplos como (14), (16) ou (17), não há nenhum problema: (17) “Picasso morreu faz um ou dois anos. O artista deixou sua coleção pessoal para o museu de Barcelona.” Pois imagina-se facilmente que o componente lexico-enci- clopédico da gramática!4 fornece definições nas quais o termo de retomada figura sob a entrada do seu referente. Entretanto, ao refletir sobre (18): 13 Cf. COMBETTES, 1975, e MILNER, 1976. , 14 Sobre esse problema, cf. VAN DIJK, 1972, e, sobretudo, PETÓFI, 1973, 1976a, 1976b. dominam completamente. Mas queremos chamar a atenção para um outro ponto. Quando se analisam certos temas de redação que são propostos às vezes aos alunos, observa-se que veiculam infor- mMações pressupostas que as crianças são obrigadas a aceitar (e portanto reconhecer), visto que, como foi notado várias vezes, é impossível contestar essas informações sem recolocar em questão a oportunidade mesma do ato de linguagem que as suporta, o que não é muito concebível quando se trata, em situação escolar, de um ato professoral. Eis um exemplo, entre outros: (24) “Três crianças passeiam num bosque. Brincam de explo- radores. Chegam diante de um riacho muito largo e muito pro- fundo. O que é que vão fazer” A interrogação final pressupõe que as três crianças vão fazer alguma coisa e que um aluno ignorando isso e contando, por acaso, que as folhas voam com o vento e que os pássaros cantam, ver-se-ia severamente punido por não ter respeitado o tema, isto é, no fundo, por ter fornecido uma narração incoerente com relação à questão colocada. Dado um enunciado, sabemos que se pode tirar dele um número bastante considerável de proposições. As proposições assim inferidas devem ser distinguidas das pressuposições: as Pressuposições fazem parte consubstancialmente do enunciado, elas são “inalienáveis” e resistem a certas provas lingiiísticas (negação, interrogação, encadeamento);!7 as inferências são menos fortes (elas não se mantêm sob negação), às vezes estão ligadas ao léxico (cf. as implicações em R. Martin), !8 remetem fregiientemente ou a conhecimento de mundo (cf. as quase-impli- cações em I. Bellert),!º ou a leis do discurso (cf. os subentendidos em O. Ducrot).20 Na prática, não é fácil operar uma divisão rigorosa entre o conjunto das Pressuposições e o conjunto das inferências ligadas a um enunciado; entretanto, se ficarmos nos critérios habitualmente admitidos como distintivos, percebemos que no nível segiiencial as retomadas de inferência são, como as 17 Cf. DUCROT, 1972, e 1973 18 MARTIN, 1976. 19 BELLERT, 1971. 20 DUCROT, 1972. recuperações pressuposicionais, fortes fatores de coerência. Seja * a segiiência seguinte: (25) “Alice matriculou-se na Universidade. Desde que terminou seus estudos secundários, não sabe mais para que profissão ori- entar-se.” A primeira frase permite deduzir “Alice terminou seus estudos secundários”, pois, no mundo que conhecemos (e que neste «setor infelizmente só admite poucas exceções), estabele- ceu-se que “para que uma pessoa possa matricular-se no ensino superior, é preciso (e em geral é suficiente) que passe no vestibular depois de ter completado os estudos secundários”. A repetição dessa proposição inferida reforça indiscutivelmente a coerência da seqiiência. Aliás, alguém que não se encontrasse capacitado a efetuar a dedução mencionada estaria no direito de pedir ao emissor de (25) que precisasse a ligação (para ele ausente) entre as duas frases. No exercício escolar, que consiste em imaginar a continua- ção de um texto, os professores esperam dos alunos sobretudo que forneçam expansões que sejam pelo menos coerentes com a segiiência introdutória, encontrando então problemas de repetição em todos ôs níveis (retomada dos nomes próprios, definiti- vações...).2! A ativação das inferências tiradas do texto inicial coloca sempre problemas ãos alunos já que essa operação envolve conhecimentos de mundo (ou de mundos) aos quais as crianças podem não ter acesso. Assim, supondo um trecho escolhido como ponto de partida no qual seria dito que um personagem mora numa mansão, anda de Rolls-Royce e tem muitos empregados, parece-nos normal inferir que um tal indivíduo é rico e, sem dúvi- da, acharíamos errado, a partir disso, toda prolongação na qual esse homem seria logo de início considerado como miserável (cf. MR3) ou doente (cf. MR4). A incoerência ou a esquisitice de cer- tos textos de alunos provêm, às vezes, do fato de que algumas inferências que supomos poderem se efetuar legitimamente não são assumidas ou, pior, acham-se contraditadas (cf. MR3) no próprio texto. É o que acontece no relato seguinte, que, conforme se remeta ao começo ou ao final, parece autorizar duas inferências 21 CHARROLES, 1977. opostas: “o cachorrinho morreu” (já que ele está “no lugar” do coelho, “trazido” pelo cão de caça...) e “o cachorrinho está vivo” (já que os dois animais se tornam amigos): (26) “Era uma vez um caçador que andava na floresta para procu- rar um coelho. Então, o caçador atira no coelho, depois seu cão vai buscar e, no lugar dele, traz um cachorrinho. O caçador diz por que você trouxe o cachorrinho no lugar do meu coelho. O cão diz para seu dono eu encontrei o cachorro no lugar dele então o dono diz ao cão vai levar ele onde pegou e o cão não quer, quer ficar com ele e no final os dois cachorrinhos se tor- nam amigos.” As pronominalizações, as definitivações, as referências dêiticas contextuais, a substituições lexicais, as recuperações pressuposicionais e as retomadas de inferência contribuem de maneira determinante para o estabelecimento de uma coerência tanto microestrutural quanto macroestrutural. Esses mecanismos de repetição favorecem o desenvolvimento temático contínuo do enunciado, permitem um jogo, submetido a regras, de retomadas a partir do qual se encontra estabelecido “um fio textual condu- tor”, Quando um elemento de conteúdo é introduzido de forma absoluta (no início do texto ou de uma segiência) ou em corre- lação com um outro já colocado, o texto o reproduz regularmente, segundo vias diretas ou indiretas, e constrói, assim, um fundo de referência temática contínua (texto de progressão. temática constante) ou derivado (texto de progressão linear, dissociado...).22 2º) Metarregra de progressão (MR2): Para que um texto seja microestruturalmente ou macroestruturalmente coerente, é pre- ciso que haja no seu desenvolvimento uma contribuição semânti- ca constantemente renovada. Essa segunda metarregra completa a primeira, no sentido de que ela estipula que um enunciado, para ser coerente, não pode simplesmente, como acontece no texto que segue, repetir indefinidamente seu próprio assunto: 22 Sobre esse problema, cf. COMBETTES, 1975 e 1977; DANES, 1974; PETÓFI, 1976; VAN DIJK, 1976c. 58 (27) “As viúvas só recebem a metade da aposentadoria de seus finados maridos. As mulheres não casadas recebem uma pensão igual à metade daquela que recebia seu marido falecido. Elas têm só cingienta por cento das indenizações que recebiam seus maridos quando estavam vivos. No tempo em que eles estavam aposentados, as esposas dos aposentados desfru- tavam com seu marido a totalidade de sua pensão.” A exigência da progressão semântica é evidentemente das mais elementares e, à medida que o próprio ato de comunicar supõe “alguma coisa a dizer”, concebe-se que ela só muito rara- mente não seja satisfeita. Acontece, entretanto, de se encontrar certos textos de alunos que transgridem com toda evidência MR2. Aqui está, por exemplo, um trecho de uma redação na qual o aluno deveria descrever uma fotografia representando um ferreiro trabalhando (Os textos dos alunos apresentavam as rasuras e acréscimos feitos pelo professor, que nada assinalou na margem): (8) “O ferreiro está vestido com uma calça preta e um chapéu claro e com um paletó cinza e marrom escuro. Tem na mão a ponta da picareta e bate em cima com um martelo, sobre a ponta da picareta. Os gestos que fez, tem a ponta da picareta e com seu martelo bate sobre a ponta da picareta. A ponta desta fer- ramenta que se chama a ponta da picareta é pontuda e a outra ponta é quadrada. Para tornar ela vermelha com a ponta da picareta colocou ela no fogo e as mãos estão vermelhas.” (texto original) (28) “O ferreiro está vestido com uma calça preta, com um chapéu marrom claro e com um paletó cinza escuro. Tem na mão a ponta da picareta e bate em cima com um martelo. A ponta desta ferramenta é pontuda e a outra extremidade é quadrada. Para torná-la vermelha, colocou-a no fogo e as mãos estão vermelhas.” (texto corrigido) O que chama a atenção nessa redação é a flagrante circula- ridade do discurso, como se o aluno (sem dúvida pelo temor do vazio) acabasse produzindo uma lenga-lenga em que o discurso está quase sempre voltado para si próprio. Existe nesse texto uma desproporção muito grande entre a taxa de contribuição informa- 59 de duas frases enuncie, por exemplo, que um mesmo objeto X goze, ao mesmo tempo, das propriedades “&” e “- &”. Certamente podemos citar aporias do gênero: (30) “A luz é de natureza ondulatória... A luz não é de natureza ondulatória...” Todavia, em tais segiiências, a contradição é plenamente assumi- da e representada: o discurso contradiz-se com toda evidência para manifestar, retoricamente, para fins argumentativos, uma situação cujo caráter (provisoriamente) problemático se quer jus- tamente enfatizar. Se esses textos não são de nenhuma maneira incoerentes, outros são, ao contrário, portadores de contradições não controladas que os tornam mais ou menos aberrantes. Estudaremos sucessivamente as contradições enunciativas, as contradições inferenciais e pressuposicionais e as contradições de mundo(s) e de representações do(s) mundo(s). Esse recorte é bastante superficial, já que para análise de cada um desses tipos seremos levados a fazer considerações que, de alguma maneira, remetem aos outros. a) Contradições enunciativas. Toda manifestação frástica ou tex- tual fixa seu próprio quadro enunciativo pelo menos de duas maneiras: de um lado, produzindo seu sistema de referência tem- poral e, de outro, instaurando um modo de funcionamento discur- sivo determinado. Seja a segiiência seguinte: 3 1) “Malko entrou sem bater no escritório do chefe da CIA. Vestia uma roupa escura e trazia na mão uma magnífica maleta de crocodilo.” (640) comporta um certo número de marcas lingiiisticamente identificáveis que fazem com que a segiiência seja percebida globalmente: — como fazendo referência a um certo momento (“tl” anterior ao momento “t;” do ato de comunicação): — como transparente do ponto de vista modal, isto é, virgem de todo índice formal significando a ingerência do sujeito da enun- ciação no enunciado, 2 Essas características definem um regime enunciativo que não pode ser modificado, sem precauções especiais. Assim, se |, acrescentarmos inopinadamente (32) ou (33) a (31): (32) “Malko senta e acende um havana.” (33) “Não me lembro mais se Malko trazia consigo uma caixa de havanas.” ' resulta um efeito de contradição tal que as sequências compostas * tornam-se incoerentes.?3 Nos textos escritos dos alunos das primeiras séries, encon- |. tram-se fregientemente contradições desse tipo. Eis dois exem- * plos escolhidos entre vários: (4) “Ontem, fomos ver o desfile da Gazeta de Pinheiros. Subimos a rua Teodoro Sampaio. Daí ficamos na calçada em frente à loja do Sr. Barata. Passado algum tempo os carros pu- blicitários chegaram. Eles jogam para a gente papéis de pro- paganda. Em baixo e em cima da avenida, os policiais dirigem o tráfego.” (35) “Antonio sai para um passeio com o Sr. Esnobe. Chegando perto de uma árvore, nós paramos para conversar. Francisco e Julia querem jogar um jogo.” ; No (8) o professor restabeleceu diretamente o passado nos * dois últimos verbos e assinalou na margem “atenção com a “mudança de tempo”, enquanto que, na frente de (4), consta um “ simples ponto de interrogação. Essa diferença no modo de inter- “ venção explica-se, se pensarmos que as contradições temporais, por oposição às contradições de modalidade discursiva, só tornam “a texto incoerente de maneira punctual. Tudo leva, , à pensar «que em geral os professores (como o que corrigiu = essas malformações temporais a falhas de desempe: (falta de * atenção) ou a um domínio imperfeito das formas de conjugação, mas só excepcionalmente as interpretam como erros de coerência. Inversamente as contradições de modo enunciativo são, geral- 73 Esses dois tipos de contradição não têm, certamente, a mesma origem e o mesmo alcance. Os elementos de reflexão aqui levantados são naturalmente bastante embrionários e seria preciso desenvolver as pesquisas nesse nível levando em conta os numerosos trabalhos já realizados sobre essc assunto. 63 : mente, avaliadas como aberrações de coerência. Elas são desig- nadas em termos teóricos e raramente dão texto para exercí- d. Ói Er dão pretexto par: f- dao ntradições inferenciais € pressuposicionais. Existe uma con- o ção inferencial quando, a partir de uma proposição, pode-se uzir outra que contradiz um conteúdo semântico posto oi Pressuposto numa proposição circundante. Em (36) e (37): º (36) “Mi ; = , . a inha tia é viúva. Seu marido coleciona máquinas de (37) “Pedro nã i a não tem carro. Vai vender o dele para comprar um Dn ferências autorizadas por “viúva” e “vender” não só não são : maes nas frases seguintes como também são expressamênte ontraditas por essas. O efeito de incoerência resulta aqui de incom- Patibilidades semânticas profundas às quais é preciso acrescentar Considerações temporais, já que, como se vê, basta pôr no passado coleciona e “vai vender” para suprimir as contradições. Apesar de existirem, as incoerências desse tipo ainda são bem E aco fr ' quentes nos textos escritos de alunos. As que são encontradas pod m incidir sobre uma segiiência de duas frases consecutivas: o 68 “O equilibrista sobe na corda e sem a vara anda sobre a corda ele se segura com uma mão só sobre a corda.” ou aparecer no plano segiencial como is últi n grafos do tento shgia E os dois últimos pará- 69) “Sábado Passado quando eu voltava para casa o gato da empregada do correio estava sentado na beira da estrada. Um vara estava chegando o gato se jogou. Ele bateu uma primeira by xo do carro. A segunda vez foi a camioneta. É ar perna do correio veio pegar ele. Ela me disse vamos ntar cuidar dele. Colocou ele d do ele estao e E entro do cesto, e estava acaba- Ela veio à tarde ela nos disse coloquei ele dentro do cesto e ela nos disse eu subi no quarto para ir ver se meu gato estava dor- mindo.” As contradições pressuposicionais são, em todo os pontos ista, comparáveis às contradições inferenciais, exceto pelo & de que é um conteúdo pressuposto que entra em con- lição com uma proposição ulterior. Partindo de verbos fac- s24 pode-se construir inúmeros exemplos que apresentam tradições desse tipo. No exemplo seguinte, a segunda frase que a mulher de Júlio é fiel, enquanto que a primeira pres- de o inverso: (40) “Júlio ignora que sua mulher o engana. Sua esposa lhe é completamente fiel.” Em certos enunciados, há ao mesmo tempo contradição ssuposicional e inferencial: (41) “Se Maria me tivesse escutado, ela não teria recusado definitivamente Paulo que queria casar com ela. Agora que é sua mulher se arrepende.” A primeira frase de (41) é uma condicional irreal (contrafac- “tual). Pressupõe que Maria repeliu definitivamente as propostas ' de Paulo, logo, que ela não se casou com ele; mas subentende, - além disso, que Maria teria tido razão (não se teria arrependido) q de tornar-se a mulher de Paulo. A segunda frase contradiz tanto a : pressuposição (ela é sua mulher) quanto a inferência subentendi- - da (“ela se arrepende”). Tais exemplos são evidentemente bas- ' tante superficiais; são difíceis de analisar justamente porque os . mecanismos pressuposicionais e inferenciais funcionam neles de maneira bastante sutil. Poder-se-ia pensar que as crianças têm muita dificuldade em dominar esse gênero de sutileza. Ora, é sur- preendente constatar que, no final das contas, encontram-se pou- cas contradições desse tipo nos seus textos. Se, na lógica, os homens são ou sábios ou não sábios, na “realidade” as aposições dão-se sempre muito menos clara- mente e, logo, nos discursos naturais que fatam dela. No que se refere a certos assuntos, estamos aliás perfeitamente dispostos (preparados) a admitir a existência de contradições de fatos que se manifestam de maneira mais ou menos patente através dos 24 Cf. entre outros KARTTUNEN, 1973. 65 : discursos que falam deles. Numerosos são os estudos que mostram como um mesmo discurso, perfeitamente coerente na superfície, assenta-se sobre proposições completamente opostas mais ou menos explícitas; são assim, por exemplo, as famosas ambivalências em Psicanálise (“digo erepito que amo meu pai, mas também digo e repito que o odeio”...). A con- tradição não é, portanto, um fator absoluto de incoerência. Os problemas, desse ponto de vista, são evidentemente muito com- plexos e não entraremos em detalhes nessa questão. Entretanto, talvez possamos propor a idéia de que, se certas contradições tornam os discursos que as contêm incoerentes — enquanto outras não produzem esse efeito —, é porque estamos prontos a reconhecer (através das nossas representações de mundo, cf. item c, abaixo) que em pontos mais ou menos determinados, “a realidade” é (ou pode ser) contraditória, enquanto que em ou- tros lugares não o é (ou não pode ser): aqui, um gato é um gato, lá, amar é odiar... Um dos recursos, aliás freqiientemente uti- lizados nos textos, para assegurar a atenção do receptor, consiste justamente num jogo sobre as contradições. Seja a sequência seguinte: (42) “Pedro, como todo mundo, não gosta de apanhar. Quando batem nele, não fica contente.” (42), embora quase tautológico, não deixa de ser progressivo, já que a segunda frase instancia a afirmação geral contida na primeira. Sua contribuição informativa é contudo muito pobre, pois a segunda proposição não vai muito além da repetição de uma inferência imediata da primeira. Seja agora: (43) “Pedro, como todo mundo, não gosta de apanhar. Fica contente quando sua mulher o chicoteia.” (43), se bem que aparentemente contraditório, não é (ao menos para nós-eu) incoerente, pois, num mundo que nós (eu) conhe- cemos bem, sabemos que certos indivíduos sentem prazeres ines- perados em certas circunstâncias. Comparada com (42), (43) é, apesar da sua aparência contraditória, “semanticamente mais interessante”, pois, trazendo mais informações, situa-se num grau superior na dinâmica comunicativa. É muito fregiiente que, em 66 nunciados do gênero de (43), o emissor “solucione” a con- lição com a ajuda de conectores como “mas”, “entretant , contudo”, indicando com isso que a percebe, a assume e, final- nte, a anula aproveitando-se dela. Esses conectores25 de recu- ação de coerência desempenham um papel fundamental do to de vista da coerência, já que, afinal de contas, recuperam enunciado que, sem eles, poderia eventualmente ser percebido no contraditório. Mas não permitem efetuar toda e qualquer uperação e sua ação não é sem limites. Assim, “entretanto” luciona a contradição inferencial em (44), mas não a con- ção pressuposicional em (45). (44) “João detesta viajar. Entretanto está muito contente de par- tir para os E.U.A, pois...” (45) “João imagina que seu pai quer denunciá-lo à polícia. Entretanto é verdade pois...” pas a É claro que seria necessário examinar outros exemplos para “verificar que tais limitações estão de fato ligadas aos fenômenos ide inferência e de pressuposição. Pode-se no entanto considerar “que certos conectores contribuem de maneira determinante para *estabelecer, ou restabelecer, a coerência dos discursos. Et | 16) Mundo(s), representações do mundo (e dos mundos) e con- radição. Um grande número de contradições naturais não pode “ser explicado fora de uma problemática que integra as noções de mundo(s) e de representação. Tal problemática ultrapassa eviden- temente o quadro habitual do campo lingúístico, embora, em tálguns de seus aspectos, diga respeito diretamente a fenômenos de E tinguagem. Nas páginas precedentes, já utilizamos várias vezes os * térmos de mundo e de representação, mas de maneira totalmente - intuitiva, e gostaríamos de aproveitar esta parte para trazer alguns “esclarecimentos sobre este assunto e tentar prosseguir numa “perspectiva mais teórica, que será, aliás, retomada e aprofundada “Ba exposição da MRA4 e na última parte deste artigo. Para a clareza -“da exposição, mas também, e sobretudo, por razões teóricas, dis- tinguiremos as contradições de mundo(s) e as contradições de ECA 26 Entre à abundante literatura sobre os conectores, cf. em particular, DUCROT, 1972 é 1973, FILLMORE, 1975, VAN DUK, 1975b e 1977. representação de mundo. Embora essa distinção seja, em nossa opinião, relativamente fundada, ela permanece discutível em relação a mais de um ponto que, infelizmente, deixaremos de lado por falta de espaço. * Contradições de mundos. Vindo da lógica modal,26 a noção de mundo foi recentemente introduzida em Lingiística por alguns Pesquisadores dos quais utilizaremos amplamente as análises e os exemplos, em particular o famoso enunciado tirado de J. Morgan??. (46) “Pedro sonha que é alemão e que ninguém sabe disso.” em que interpretaremos “disso” como substituindo “que é alemão”. (46) comporta dois verbos principais: de um lado, “sonhar”, que consideraremos numa Primeira aproximação como um implicativo negativo e, de outro, “saber”, que é um factivo. A partir de “sonhar”, infere-se “Pedro não é alemão”, que contradiz a pressuposição “Pedro é alemão”, resultante do factivo. Esse raciocínio aparentemente consegiiente é, entretanto, inexato, pois leva a concluir que (46) é contraditório, o que não é de fato. Para ultrapassar essa dificuldade, existe outra solução, que é tratar o verbo “sonhar” (em torno do qual, como se vê, tudo gira) não como um implicativo negativo, mas como um predicado especial capaz, num nível muito profundo, de instaurar uma diversificação dos universos de referência. Baseando-se neste verbo dito “criador de mundo”, opor-se-á então: — um mundo MO (mundo enunciativo atual, a partir do qual predica-se de Pedro que ele sonha) no qual é falso que Pedro seja alemão; — um mundo MI (alternativa acessível de MO, que é “o mundo do sonho de Pedro”) no qual é verdadeiro que ele é alemão. Em (46), o campo do verbo “sonhar” estende-se ao mesmo tempo sobre “ser alemão” e “todo mundo saber”, o que elimina toda possibilidade de contradição (há consistência no interior de 26 Para uma introdução, cf. HUGHES & GRESSWELL, 1972, NEF, 1976, ALEXAN- DRESCU, 1976. 27 Citado e discutido em KARTTUNEN, 1973, 68 * MI). Seria perigoso pensar, dado o sentido que atribuímos habi- * tualmente a um substantivo como “mundo”, que somente verbos * do gênero de “sonhar” têm as propriedades que acabam de ser * mencionadas. Na realidade, um grande número de verbos, de sig- nificação fregiientemente muito variada, se comporta como “sonhar”: “pretender”, “crer”, “pensar”, “gostar”... E não Só ver- bos têm essa propriedade de serem criadores de mundos; pode-se é Citar ainda expressões como “no caso de”, “na hipótese em que”... * Construções particulares: contrafactuai > expressões intro- - dutórias como “seja”, “era uma vez”... Quando se trabalha com | essa noção de mundo, os problemas de delimitação adquirem uma importância primordial. Pelo que sabemos, ainda subsiste muitas incertezas em torno dessa questão; assim, quando se examina (47) * * suas expansões, podem-se constatar alguns fenômenos bastante surpreendentes e dificilmente explicáveis: po 47) “Pedro acha que tem câncer e que ninguém Ê 181 (47) sabe” ' :s2 (47)-2 sabe que tem uma doença grave.” [A É is (473 | sabe que está condenado.” lt 184 (47)-4 sabe que tem um fusca.” Nas segiiências St, S2, S3 O campo do verbo “achar” “abrange (47)-1, (47)-2, (47)-3, mas na S4 não recobre completa- mente (47)-4. S4 pressupõe, com efeito, que é verdadeiro em MO * que Pedro tem um fusca, enquanto que S1 não pressupõe que ele * tem câncer em MO, o que é o caso também em S2 e S3. Podemos : dar conta deste “fato inesperado” fazendo valer que (47)-1, (47)- 3 retomam, sob uma forma ou outra, “Pedro tem câncer”, por Oposição a (47)-4, que não tem relação (cf. MR4) com essa * idéia; todavia, seria necessário verificar. essa hipótese com s9 Limitado a esse plano, a instanciação dos mundos remete a mecanismos puramente lingúísticos: as coisas começam a adquirir um caráter pragmático quando o receptor ultrapassa esse nível para interpretar M1 como idêntico ao mundo [MI] ordinário no qual não existe árvore nos corredores do metrô. À especifi- cação de Mi em um mundo ordinário (Mi]baseia-se nas “infor- mações descritivas” contidas no enunciado enquanto tal, mas ela é função, em última instância, de um processo de reconhecimen- to puramente subjetivo. Tudo leva a pensar, aliás, que os esque- mas representativos,30 a partir dos quais o sujeito desenvolve sua atividade de reconhecimento, não são (totalmente) subjetivos, mas de preferência culturalmente (sobre)determinados. O indiví- duo não inventa livremente (todas) suas convicções sobre o esta- do do mundo ou dos mundos, ele os constrói através de práticas sociais, recebe-os do seu meio. Como bem o demonstram as pesquisas atuais sobre a inteligência artificial,3l qualquer sociedade “impõe” a seus membros quadros cognitivos a partir dos quais se constitui, no seio de uma comunidade, um fundo de crença totalmente estável e fixado investido constantemente nos discursos que nela circulam; e é precisamente porque essas crenças são estruturadas é que é possível constituir a análise além do lingiiístico (até mesmo desenvolvê-la mecanicamente, como no tratamento automático dos textos). O campo das estruturas de crença não se limita ao mundo (percebido como) ordinário. Assim, “bater numa árvore nos corredores do metrô” não é mais contraditório ou aberrante, ao que nos parece, em: (55) “Oscar saiu do metrô. Os corredores pegajosos desen- volviam um intestino esplêndido e exuberante. Como ele corria olhando para o chão, numa passagem, bateu com toda força numa árvore em flores.” porque a maior parte dos indivíduos, numa cultura dada, dispõe de referências cognitivas que lhes permite interpretar o mundo de (55) como um mundo, digamos, de fantasia ou surrealista no qual estão 30 Para todos esses problemas de representação, ver os trabalhos de GRIZE, 1974, 1976 e 1976b sobre a noção de esquematização. 31 Cf. SKYVINGTON, 1976, para uma introdução sugestiva, assim como DENHIERE, 1975, SCHANK, 1974 e VAN DIK, 1976d. 72 postos a acreditar que “existem” meios de comunicação dotados é qualidade muito especiais. Quando se considera (56): (56) “Oscar saiu do metrô magnético. Mergulhou num módulo aspirante e encontrou-se logo confortavelmente instalado num “> ovo de relaxamento.” 57), que apresenta, aos mesmos olhos, uma certa forma de tradição: . = (57) “Oscar saiu do metrô magnético. Mergulhou num módulo aspirante e encontrou-se logo num elevador de carga lotado.” até que nós (eu?) temos a possibilidade de estimar a ia de um mundo, apesar de tê-lo reconhecido como sendo ção,32 porque, no interior desse universo imaginário, ativa- estruturas de crença (mais ou menos específicas) em relação is O julgamos consegiente ou inconsegiiente. - Em situação pedagógica, não é raro que as avaliações for- ladas pelos professores façam intervir suas “próprias” repre- s de mundos. Vejamos, por exemplo, o começo de uma ativa na qual um aluno conta um programa de pesca realiza- em companhia dos pais: fo (58) “... Chegamos à beira do rio. Meu tio arruma as pontas das “varas de pescar, desenrola a linha que é fina, prende ela na eeponta da vara e a deixa cair. Nesta linha tem uma bóia quatro -«chumbos e o anzol que tem a isca, isso é, a minhoca. Procuramos uma sombra não muito perto de uma árvore para *.; gue o anzol não sc prenda na árvore e num lugar trangiilo. Jogo = ..8 linha” O trecho que vai de “procuramos” a “canto trangiilo” está alado pelo professor, que anotou na margem “não aqui”. correção é bastante surpreendente à primeira vista, mas o or nos explicou que era contraditório (“que não tinha nem nem cabeça”) “pretender” (dixit) que, quando se vai à pesca, se a linha antes de procurar um lugar onde jogá-la. O sim- Niúrha perspectiva lógica, cf. WOODS, 1973. ples fato de poder contestar tal afirmação ilustra perfeitamente, A (60) “Maria está doente.” (* parece-nos, que ela provém de uma visão do mundo ordinário Ê (61) “Maria logo vai dar à luz.” (“q”) mais ou menos pessoal. Dada a imaginação habitualmente atribuí- : (62) “Os cantores românticos desagradam aos intelectuais.” da às crianças e os conselhos de liberdade que lhes são dados para (1) certos exercícios de expressão escrita, os professores são muito : fregiientemente confrontados com produções para cuja avaliação o Considerando a hipótese em que [M] = mundo ordinário, “p” sabem logo situar-se num universo de referência não ordinário: | e “q” sendo (como se admitirá) congruentes, a sequência formada . . * por (60) e (61) é percebida como coerente, enquanto que, sendo “p” “A casa vê uma flor e gostaria muito de apanhá-la. E a flor ep aAnni ' o Sktaria o de apanhar Es falo de sol É a ol dormiu então É e“r incongruentes, a segiiência (60) + (62) é julgada incoerente. à flor não pode pegar o raio.” q Nos discursos naturais, as relações de relevância factual são * geralmente manifestadas por conectores que as explicitam seman- à ticamente: Esse texto extraído de P. Clanché?3 (que o batiza de “lúdico” por oposição a outros, qualificados de “verossímil”) seria evidente- mente um tecido de contradições se fosse interpretado como referindo ao mundo ordinário, mas é perfeitamente coerente desde que relacionado a um mundo de ficção (“poética”) no qual constrói um desenvolvimento consistente, isto é, conforme ao que pensamos que se possa dizer que acontece nele quando se é um aluno das primeiras séries escrevendo para um professor numa escola de hoje. (63) “Maria está doente porque logo vai dar à luz.” (64) “Maria logo vai dar à luz mas está doente.” É A impossibilidade de ligar duas frases por um conector “natural é, aliás, um bom teste para revelar uma incongruência: (65) “Maria logo vai dar à luz portanto os cantores românticos 4º) Metarregra da relação (MR4): Para que uma seqiiência ou desagradam aos intelectuais.” um texto sejam coerentes, é preciso que os fatos que se denotam no mundo representado estejam relacionados. Essa quarta regra é também de natureza fundamentalmente pragmática; enuncia simplesmente que, para que uma segjiiência seja admitida como coerente, é necessário que as ações, estados ou even- tos que ela denota sejam percebidos como congruentes no tipo de mundo reconhecido por quem a avalia. A avaliação de congruência é uma relação bastante frouxa (por oposição à da não-contradição exposta em MR3), no sentido que repousa unicamente sobre a per- cepção de uma relação de fatos. Dir-se-á que, num mundo represen- » dois estados de coisas “p” e “q” são congruentes se e somente se “p” é pertinente (“relevante” ) para “q”, ou melhor, se e somente se “p” é uma causa, condição, consegiiência pertinente para “q'” 34 Tomemos um exemplo. Sejam as três frases seguintes, deno- tando respectivamente em [M]os fatos “p”, “q” e “r”: > Evidentemente sabemos que, no mundo ordinário (por | exemplo), as disponibilidades de fatos são muito abertas e temos mpre o recurso de construir um curso de eventos inter- diários no qual uma segiiência, embora aparentemente “esquisita” como: (66) “Maria está doente porque os intelectuais detestam os can- tores românticos.” ontra-se recuperada nos fatos: (67) “Maria adora as canções de um artista de variedades da moda, e está apaixonada por um professor universitário que não os suporta, portanto (66).” 33 CLANCHÉ, 1976-1977. Notar-se-á contudo que (66) só é aceitável se é justificada 34 Sobre esse ponto, cf. VAN DIJK, 1974, que contém análises particularmente detalhadas ediatizada) por um enunciado prévio (como em (67)), ou se o e uma abundante bibliografia. Para uma introdução aos problemas lógicos da “relevância”, “ x : : : cf. WOODS, 1964, 1966. Conteúdo desse enunciado de explicação remete a fatos perfeita- 75