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Tipologia: Manuais, Projetos, Pesquisas
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Convidam-nos amavelmente a escrever um pequeno livro sobre um tema outrora reservado ao saber dos juris tas. Perguntamo-nos a nós próprios como iremos enqua drar nos Cadernos Democráticos o tema do Estado de direito. As dúvidas começam logo no facto de, ainda hoje, o Estado de direito e a democracia responderem a dois modos de compreender a cidadania e a autodeterminação individual. Indivíduo autónomo perante o poder, eis o tema do Estado de direito; indivíduo livre através da participação autónoma na cidade, eis o lema da democracia. Mas não só isto. Estes Cadernos Demo- cráticos pretendem, ao que supomos, registar os modos e os modos outros da cidade republicana actual. Novo problema. Estado de direito e república lançam entre si olhares de mútua suspeição. Do lado republicano, vê-se o Estado de direito preocupado exclusivamente com a autonomia privada e a sua distância perante o poder, des prezando-se as virtudes Públicas. Do campo do Estado de direito, não se compreende o direito reduzido a «actos de fala» do homem público, nem sempre amigo das virtudes privadas do sujeito da sociedade civil. Por último, mais um ruído. Os Cadernos Democráticos não são indiferentes aos problemas da justiça social nas sociedades contemporâneas. Nem outra coisa seria de esperar de uma fundação cujo patrono afirma sem reti cências a bondade do socialismo. Eis uma terceira provocação. Contra o «demasiado Estado» do despotismo iluminista se lançaram os pilares de uma arquitectura política onde o Estado se configura como esquema de organização curvado e limitado pelo direito. Ora, o «Estado social» retoma, segundo alguns, o desejo do «Estado largo» por amor a uma controvertida missão econ6mico- social dos poderes públicos. Seja-nos permitido, assim, localizar o discurso na cidade republicana. Procurar os caminhos do Estado de direito hoje é, no fundo, tentar responder a algumas das mais candentes questões políticas actuais. Numa formulação recente, uma conhecida publicista francesa^1 resumia as nossas angústias. Como articular a ética e o direito? Qual o lugar que deve ter a educação cívica e moral? Como se deve reequilibrar o Estado administrativo? Como refor- mar a justiça? Como é que se reorganiza a cidadania e a selecção dos eleitos? Qual o direito do povo e das mulheres e, sobretudo, como articular os diferentes vasos do direito político republicano: o direito do Estado, os direitos do homem, os direitos do povo, os direitos do cidadão? O tema que nos é proposto é um iti- nerário de passagem destas perplexidades. Tentemos responder a algumas delas.
(^1) Cf. Blandine Kriegel, La cité republicaine des chemins de l'État, 4, Galilée, Paris, 1997, p. 5.
O tema do Estado de direito voltou a ganhar excepcional actualidade nas últimas duas décadas do nosso século. Porquê, perguntar-se-á naturalmente. E a pergunta é tanto mais incómoda e justificada quanto mais diversifi cadas e contraditórias forem as causas da ressurreição e ressurgimento do problema do Estado de direito. Para facilitarmos a compreensão da complicada génese do Estado de direito avançaremos com uma caracterização simples, pois, como sempre^2 , as caracterizações mais simples tomam-se mais impressivas. Estado de direito é um Estado ou uma forma de organização político-estadual cuja actividade é determinada e limitada pelo direito. «Estado de não direito» será, pelo contrário, aquele em que o poder político se proclama desvincu lado de limites jurídicos e não reconhece aos indivíduos uma esfera de liberdade ante o poder protegida pelo direito. Este modo abstracto de aproximação aos conceitos de «Estado de direito» e de «Estado de não direito» pouco adiantará direito» pouco adiantará às pessoas menos familiarizadas com os temas do «Estado» e do «direito». Avancemos então por um caminho mais assente na terra para se tomar a sério o Estado de direito. Tomar a sério o Estado de direito implica, desde logo, recortar com rigor razoável o seu contrário -o «Estado de não direito». Três ideias bastam para o caracterizar: (I) é um Estado que decreta leis arbitrárias, cruéis ou desumanas; (2) é um Estado em que o direito se identifica com a «razão do Estado» imposta e iluminada por «chefes»; (3) é um Estado pautado por radical injustiça e desigualdade na aplicação do direito. Explicitemos melhor estas três ideias. «Estado de não direito» é aquele em que existem leis arbitrárias, cruéis e desumanas que fazem da força ou do exercício abusivo do poder o direito, deixando sem qualquer defesa jurídica eficaz o indivíduo, os cidadãos, os povos e as minorias. Lei arbitrária, cruel e desumana é, por exemplo, aquela que permite expe- riências científicas impostas exclusivamente a indivíduos de outras raças, de outras nacionalidades, de outras línguas e de outras religiões. Estado de não direito ─ eis a segunda ideia básica ─ é aquele que identifica o direito com a «razão do Estado», com o «bem do povo», com a «utilidade política», autoritária ou totalitariamente impostos. O «direito» é tudo ─ mas não mais do que isso ─ o que os «chefes», o «partido», a «falange», decretarem como politicamente correcto. Facilmente se intuem as consequências trágicas desta identificação do direito com uma hipotética «utilidade social» ou com uma abstracta razão de Estado. A «razão de Estado» ─ com este ou com outros nomes, como, por exemplo, «amizade do povo», «bem da nação», «imperativos da revolução», «iteresses superiores do Estado» ─ justificou campos de concentração, pavilhões psiquiátricos e mesmo genocídios colectivos para os adversários políticos ou para os povos a que estes pertencem. O «bem do povo» e os «interesses do Estado» são (e foram) invocados a torto e a direito para dar cobertura a privilégios de classes dirigentes, insinuando-se a escandalosa identificação dos interesses das castas político-govemantes com o bem comum dos cidadãos. Retomemos a terceira ideia: a da radical injustiça e da flagrante desigualdade na aplicação do direito. Nos «Estados de não direito» há dois pesos e duas medidas na aplicação das normas jurídicas (leis) consoante as pessoas em causa. Um acto idêntico é sancionado criminalmente com penas desumanas se praticado por adversários políticos, mas merece o encobrimento ou até o beneplácito político quando seja cometido por um correligionário ou por elementos das polícias secretas contra o outro, seja ele um simples adversário político, um idealista defensor dos direitos humanos ou um lutador pela democracia. De uma forma quase intuitiva, o leitor sabe o que não é um Estado de direito. É aquele ─ repita-se ─ em que as leis valem apenas por serem leis do poder e têm à sua mão força para se fazerem obedecer. É aquele que identifica direito e força, fazendo crer que são direito mesmo as leis mais arbitrárias, mais cruéis e mais desumanas. É aquele em que o capricho dos déspotas, a vontade dos chefes, a ordem do partido e os interesses de classe se impõem com violência aos cidadãos. É aquele em que se negam a pessoas ou grupos de pessoas os direitos inalienáveis dos indivíduos e dos povos. Como se poderá deduzir das considerações antecedentes, não basta a existência de leis menos justas ou de leis publicamente contestadas através de movimentos de desobediência civil ou de gestos de indignação para, de forma automática, se apodar uma organização política de Estado de não direito. Sendo assim, perguntar-se-á: a partir de que limite as leis e medidas injustas transportam maldade suficientemente intensa para que sejam legítimas as suspeitas de um Estado de não direito? Avançaremos uma fórmula
(^2) Se o leitor for daqueles que gostam de ir mais longe sobre o que se acaba de ler, a notícia aqui fica. Ninguém, a nosso
ver, caracterizou de forma tão simples e impressiva o «Estado de não direito» como o fez o filósofo do direito, de nacionalidade alemã, Gustav Radbruch, numa circular dirigida aos estudantes da Universidade de Heidelberga após a Segunda Grande Guerra. Esta circular, intitulada «Cinco minutos de filosofia do direito», pode ler-se em Gustav Radbruch, Filosofia do Direito, vol.II , trad. de Luís Cabral Moncada, Coimbra, Arménio Amado Editor, Coimbra, 1962, pp. 211 a 214. O texto segue, por vezes com proximidade textual, estes estimulantes «cinco minutos de filosofia do direito».
sintética^3. Atingir-se-á o «ponto do não direito» quando a contradição entre as leis e medidas jurídicas do Estado e os princípios de justiça (igualdade, liberdade, dignidade da pessoa humana) se revele de tal modo insuportável (critério de insuportabilidade) que outro remédio não há senão o de considerar tais leis e medidas como injustas, celeradas e arbitrárias e, por isso, legitimadoras da última razão ou do último recurso ao dispor das mulheres e homens empenhados na luta pelos direitos humanos, a justiça e o direito ─ o direito de resistência. individual e colectivo.
(^3) Para o público leitor que considere este texto um elemento de estudo forneceremos um apontamento bibliográfico
infelizmente só acessível aos que conhecem a língua alemã. O critério sumariamente avançado para caracterizar «Estado de não direito» é conhecido na literatura jurídica como «fórmula de Radbruch». Sobre esta fórmula pode ver-se o estudo de Frank Saliger integrado na colecção «Heidelberger Forum» com o título Radbruchsche Formei und Rechtsstaat, C. F. Miiller, Hei- delberga, 1995.
O «Estado de direito» e o «Estado de não direito» assumem-se como categorias históricas. A contraposição entre estas duas categorias não obedece, pois, a um simples esquema abstracto ou a meras arrumações intelectuais. Existiram e existem esquemas jurídico-políticos de organização comunitária que poderemos arrumar na categoria de «Estados de direito». Existiram e existem tecnologias político- organizatórias que se enquadram na categoria de «Estados de não direito». Onde e como se desenvolveram estas categorias? Uma resposta a esta pergunta é muitas vezes dada recortando o Estado de direito como uma forma de organização jurídica e política circunscrita aos Estados em que progressivamente se foi sedimentando um determinado paradigma jurídico, político, cultural e económico. O Estado de direito perfilar-se-ia, assim, como um paradigma jurídico-político da cultura ocidental e do Estado liberal do Ocidente. Foi no «meio ambiente natural» do Ocidente o local da forja de uma arquitectónica de Estado baseada no consenso sobre princípios e valores que, no seu conjunto, formam a chamada juridicidade estatal^7_._ Avancemos já as dimensões fundamentais desta juridicidade: governo de leis (e não de homens!) gerais e racionais, organização do poder segundo o princípio da divisão de poderes, primado do legislador, garantia de tribunais independentes, reconhecimento de direitos, liberdades e garantias, pluralismo político, funcionamento do sistema organizatório estadual subordinado aos princípios da responsabilidade e do controlo, exercício do poder estadual através de instrumentos jurídicos constitucionalmente determinados. No seu conjunto e de forma tendencial, a convergência dos princípios básicos constitutivos da juridicidade estatal acabou por gerar um paradigma de organização política considerado como referência relativamente a outros esquemas organizatórios do político. Aqui vem entroncar uma das controvérsias actuais em torno do problema do Estado de direito: o da pretensão de universalidade^8 do paradigma ocidental do Estado de direito. Por outras palavras mais acessíveis: poderá este modelo político da cultura ocidental impor-se como um valor político universal? Será o «Estado de direito ocidental» a medida justa do mundo, da civilização e do desenvolvimento humano? A bondade dos seus valores, princípios e esquemas organizativos não justificará mesmo considerá-lo o último modelo possível de organização e o «próprio fim da história»? Aqui, como noutros campos da organização social e política, devem evitar-se radicalizações dicotómicas e simplificações ideológicas. Falar, por exemplo. de um «Ocidente» ─ o do Estado de direito ─ e de um «Oriente» ─ o do despotismo ─ significa esquecer que no ambiente europeu do Estado de direito se gerou o «fenómeno Hitler» e dos campos de concentração e se desenvolveram formas «não ocidentais» de organização política, como foram o «Estado Novo» português, o «Estado falangista» espanhol e o «Estado fascista» italiano. Por outro lado, desdenhar dos esquemas políticos racionais e razoáveis do Estado de direito, reduzindo-os a meras formas de domínio da «classe burguesa», acabou por justificar esquemas «soviéticos» de Estado-partido sem limites jurídicos efectivos do poder, do Estado e do partido. A proposta de leitura que se avançará neste livro partirá do seguinte tópico: o Estado de direito transporta princípios e valores materiais razoáveis para uma ordem humana de justiça e de paz. São eles: a liberdade do indivíduo, a segurança individual e colectiva, a responsabilidade e responsabilização dos titulares do poder, a igualdade de todos os cidadãos e a proibição de discriminação de indivíduos e de grupos. Para tomar efectivos estes princípios e estes valores o Estado de direito carece de instituições, de procedimentos de acção e de formas de revelação dos poderes e compe tências que permitam falar de um poder democrático, de uma soberania popular, de uma representação política, de uma separação de poderes, de fins e tarefas do Estado. A forma que na nossa contemporaneidade se revela como uma das mais adequadas para colher esses princípios e valores de um Estado subordinado ao direito é a do Estado constitucional de direito democrático e social ambientalmente sustentado. Está, assim, traçado o roteiro para aprofundarmos o Estado de direito. Trata-se: ( 1) de um Estado de direito; (2) de um Estado constitucional; (3) de um Estado democrático; (4) de um Estado social; (5) de um Estado ambiental, ou melhor, de um Estado comprometido com a susten tabilidade ambiental.
(^7) Os vários princípios jurídicos informadores desta juridicidade estatal encontram-se expostos com mais ou menos
desenvolvimento nos manuais de direito constitucional, nacionais e estrangeiros. Procuramos fazer uma síntese desses princípios no nosso Direito Constitucional e Teoria da Constituição, 2.. ed., Coimbra, 1998, pp. 235-272, que aqui seguimos de perto. (^8) Abstemo-nos, num livro de divulgação, de saturar o texto com notas eruditas. No entanto, quem tiver paciência e
curiosidade para aprofundar o tema da pretensão de universalidade do Estado de direito pode ver referências em dois livros recentes, mas não muito acessíveis. Referimo-nos ao livro de Edin Sarcevic, Der Rechtsstaat, Leipziger Universitätsverlag, Leipzig, 1996, e à colectânea de estudos organizada por Hans-Martin Pawlowski e Gerd Roellecke, Der Universalitiitsanspruch des demokra tischen Rechtsstaates. Franz Steiner Verlag Stuttgart, 1996.
Retomemos as considerações finais do número anterior. Dissemos que a pretensão de universalidade do Estado de direito se reconduz, no final do milénio, à formatação de um Estado dotado de qualidades: Estado de direito, Estado constitucional, Estado democrático, Estado social e Estado ambiental. Poucos terão hoje a ousadia de defender abertamente um Estado de não direito. As declarações internacionais de direitos do homem, os grandes pactos internacionais sobre direitos e liberdades, civis, políticas e sociais, a estruturação de novos espaços político-económicos com base no respeito e realização dos direitos fundamentais, pouca folga darão aos novos pretendentes do despotismo. Ninguém pode ficar fora da comunidade internacional, ou, como hoje se dirá num mundo anglicizado, a ninguém é reconhecido o direito de opting out da comunidade internacional. Para se estar dentro dela impõe-se a observância das regras e princípios progressivamente acolhidos pelos Estados de direito.
O Estado constitucional responde ainda a outras exigências não integralmente satisfeitas na concepção liberal-formal de Estado de direito. Tem de estruturar-se como Estado de direito democrático, isto é, como uma ordem de domínio legitimada pelo povo. A articulação do «direito» e do «poder» no Estado constitucional^9 significa, assim, que o poder do Estado deve organizar-se e exercer-se em termos democráticos. Há quem não veja com bons olhos a associação de Estado de direito e democracia e não falta mesmo quem considere antinómicos os valores e princípios transportados pelo Estado de direito e os valores e princípios conformadores da democracia. Vale a pena reconstruir esta discussão. O Estado de direito cumpria e cumpre bem as exigências que o constitucionalismo salientou relativamente à limitação do poder político. O Estado constitucional é, assim, e em primeiro lugar, o Estado com uma consti tuição lirnitadora do poder através do império do direito. As ideias do «governo de leis e não de homens», de «Estado submetido ao direito», de «constituição como vinculação jurídica do poder», foram, como vimos, tendencialmente realizadas por instituições como as de rule of law, due process of law, Rechtsstaat, principe de Ia légalité. No entanto, alguma coisa faltava ao Estado de direito constitucional ─ a legitimação democrática do poder. Nos quadrantes culturais norte-americanos é conhecido o «cisma» entre os «constitucionalistas» ( constitutionalists ) e os «democratas» ( democrats ) para significar a opção preferencial ou a favor do Estado juridicamente limitado e regido por leis («constitucionalistas») ou do Estado constitucional dinamizado pela maioria democrática («democratas»). Na Alemanha são inúmeras as controvérsias sobre as antinomias entre Demokratie e Rechtsstaat. Na França, Benjamin Cons tant celebrizou a distinção entre a «liberdade dos antigos», amiga da participação na cidade, e a «liberdade dos modernos», assente na distanciação perante o poder. O que significam, no fundo, estas persistentes angústias perante a simbiose de Estado de direito e Estado democrático no Estado constitucional? Respondem alguns que Estado de direito e democracia correspondem a dois modos de ver a liberdade. No Estado de direito concebe-se a liberdade como liberdade negativa, ou seja, uma «liberdade de defesa» ou de «distanciação» perante o Estado. É uma liberdade liberal que «curva» o poder. Ao Estado democrático seria inerente a liberdade positiva, isto é, a liberdade assente no exercício democrático do poder. É a liberdade democrática que legitima o poder. A lógica específica escondida nestas duas liberdades leva mesmo os autores a falarem de duas atitudes divergentes e irreconciliáveis, sacrificando-se a dimensão democrática por amor ao império do direito ou desvalorizando-se a dimensão de juridicidade estatal por amor à democracia. O coração balança, portanto, entre a vontade do povo e a regra do direito. Tentemos raciona- lizar este balanceamento do coração. A ideia de que a liberdade negativa tem precedência sobre a participação política (liberdade positiva) é um dos princípios básicos do liberalismo político clássico. As liberdades políticas teriam uma importância intrínseca menor do que a liberdade pessoal e de consciência. Não admirará, pois ─ como salienta um influente cultor actual da filosofia política (John Rawls) ─, que, «se alguém for forçado a escolher entre as liberdades políticas e as restantes liberdades, o governo do bom soberano que reconhecesse estas últimas e que garantisse o domínio da lei seria preferível». A segurança da propriedade e dos direitos liberais representaria neste contexto a essência do constitucionalismo. O «homem civil» precederia o «homem político», o «burguês estaria antes do cidadão». O «homem privado» que preza a sua liberdade em face do poder terá mais liberdade do que o «cidadão público» que cultiva a liberdade política. Mas como falar em liberdade sem se falar em legitimidade e legitimação do poder? O Estado constitucional carece da legitimidade do poder político e da legitimação desse mesmo poder. O elemento democrático não foi apenas introduzido para «travar» o poder (to check the power); foi também reclamado pela necessidade de legitimação do mesmo poder. Se quisermos um Estado constitucional assente em fundamentos não metafísicos, temos de distinguir claramente duas coisas: (I) uma é a legitimidade do direito, dos direitos fundamentais e do processo de legislação no Estado de direito; (2) outra é a legitimidade de uma ordem de domínio e da legitimação do exercício do poder político^10 no Estado democrático. O Estado «impoIítico» do Estado de direito não dá resposta a este último problema: donde vem o poder. Só o princípio da soberania popular, segundo o qual «todo o poder vem do povo», assegura e garante o direito à igual participação na formação democrática da vontade popular. Assim, o princípio da soberania popular concretizado segundo procedimentos juridicamente regulados serve de «charneira» entre o «Estado de direito» e o «Estado democrático», possibilitando a compreensão da moderna fórmula Estado de direito democrático.
(^9) Quem desejar aproximar-se da articulação do momento «direito» e do momento «poder» na discussão contemporânea
em torno do Estado de direito deverá ler duas obras fundamentais: Iohn Rawls, O Liberalismo Político. Editorial Presença, Lisboa, 1993, e Jurgen Habermas, Faktizitiit und Geltung, Suhakamp Verlag, Frankfurt/M, 1992 (há tradução francesa, Droit et democratie. Entre faits et normes, Gallimard, Paris, 1977, e tradução inglesa, Between Facts and Norms). (^10) l lnspirámo-nos textualmente em Iiirgen Habermas, Droit e democra tie. cit.,p.
As considerações anteriores permitem também compreender a fórmula escrita do artigo 2.º da Constituição da República Portuguesa de 1976: «A República Portuguesa é um Estado de direito democrático.» Isso significa que o Estado de direito é democrático; é democrático e só sendo-o é que é Estado de direito; o Estado democrático é Estado de direito e só sendo-o é que é democrático. Há, assim, uma democracia de Estado de direito e um Estado de direito de democracia. Em termos concretos ─ e tendo em conta a Constituição da República Portuguesa de 1976 ─, a dimensão do Estado de direito encontra expressão jurídico-constitucional num complexo de princípios e regras dispersos pelo texto constitucional. Indicaremos, a título exemplificativo: o princípio da constitucionalidade (artigo 3º); O controlo judicial da constitucionalidade de actos normativos, a começar pelos actos de valor legislativo (artigos 277º. e seguintes); o princípio da legalidade da administração (artigo 266º); O princípio da responsabilidade do Estado por danos causados aos cidadãos (artigo 22º); O princípio da independência dos juízes (artigo 218º); os princípios da proporcionalidade e da tipicidade no domínio de medidas de polícia ( artilgo 272º). Acrescente-se a isto o regime garantístico dos direitos, liberdades e garantias (artigos 17º, 18º,24º e seguintes), o direito de acesso aos tribunais (artigos 20º e 268º), a reserva de lei em matéria de restrição de direitos, liberdades e garantias (artigo 18º, nº 3). No seu conjunto, estes princípios e regras concretizam a ideia nuclear do Estado de direito ─ sujeição do poder a princípios e regras jurídicos, garantindo às pessoas e cidadãos liberdade, igualdade e segurança. Mas o Estado constitucional é também um Estado democrático. A legitimidade do domínio político e a legiti mação do exercício do poder radicam na soberania popular (artigos 2.º e 3º) e na vontade popular (artigo 9º). Instrumentos desta soberania popular são, por exemplo, o exercício do direito de voto através do sufrágio universal, igual, directo e secreto (artigos 10º., 117º. e 118º), a participação democrática dos cidadãos na resolução dos problemas nacionais [artigo 9º, alínea c) ] através do exercício do poder local e do poder regional (artigo 227º). Globalmente considerados, estes princípios ─ e recorde-se que eles são apenas exemplificativos ─ revelam que o Estado constitucional só é constitucional se for democrático. Daí que, tal como a vertente do Estado de direito não pode ser vista senão à luz do princípio democrático, também a vertente do Estado democrático não pode ser entendida senão na perspectiva do Estado de direito. Tal como só existe um Estado de direito democrático, também só existe um Estado democrático de direito, isto é, sujeito a regras jurídicas 11.
A articulação das dimensões de Estado de direito e de Estado democrático no moderno Estado constitucional democrático de direito permite-nos concluir que, no fundo, a proclamada tensão entre «constitucionalistas» e «democratas», entre Estado de direito e democracia, é um dos mitos do pensamento político moderno. Saber se o «governo de leis» é melhor do que o «governo de homens», ou vice-versa, é, pois, uma questão mal posta: o governo dos homens é sempre um governo sob leis e através de leis. É, basicamente, um governo de mulheres e de homens segundo a lei constitucional, ela própria imperativamente informada pelos princípios jurídicos radicados na consciência jurídica geral. A teorização do Estado de direito democrático centrou-se até aqui em duas ideias básicas: o Estado limitado pelo direito e o poder político estatal legitimado pelo povo. O direito é o direito interno do Estado; o poder democrático é o poder do povo que reside no território do Estado ou está sujeito à soberania do Estado. Hoje os limites jurídicos impostos ao Estado advêm também, em medida crescente, de regras e princípios jurídicos internacionais. Estes princípios e regras são, em grande número, recebidos ou incorporados no direito interno, fazendo parte do direito português (CRP, artigo 8º, nº s^ 1 e 2). Nenhum Estado pode permanecer fora da comunidade internacional. Por isso, deve submeter-se às normas de direito internacional, quer nas relações internacionais, quer no próprio actuar interno. A amizade e abertura ao direito internacional é uma das dimensões caracterizadoras do Estado de direito. Em termos mais concretos, a vinculação do Estado ao direito internacional começa, desde logo, pela observância e cumprimento do chamado direito imperativo (jus cogens) internacional. Embora a doutrina ainda não tenha recortado de forma clara e indiscutível o núcleo duro deste «direito cogente», existem alguns princípios inquebrantavelmente limitativos do Estado. Referiremos, por exemplo, o princípio da paz, o princípio da independência nacional, o princípio do respeito do direito dos povos à autodeterminação, o princípio da independência e igualdade entre os povos, o princípio da solução pacífica dos conflitos, o princípio da não ingerência nos assuntos internos de outros Estados. Estes princípios constam de textos internacionais (declarações, resoluções, tratados) e nos textos constitucionais mais recentes também não deixam de ter acolhimento como normas de conduta e como limites jurídicos do actuar estadual. Para citarmos apenas as constituições dos países da Comunidade de Países de Língua Portuguesa (CPLP), é o caso da Constituição da República Portuguesa de 1976 (artigo 7º, nº I), da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 (artigo 4º), da Constituição da República Democrática de São Tomé e Príncipe de 1989 (artigo 12º), da Lei Constitucional da República de Angola de 1992 (artigo 15º), da constituição da República de Moçambique de 1990 (artigos 62º e 63º), da Constituição
(^11) Precisamente nestes termos, J.J Gomes Canotilho/Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa, Anotada,
Coimbra Editora, Coimbra, 1993 (anotações aos artigos 1º e 2º).
O Estado de direito não pode nem deve ser vermelho. O Estado de direito não pode nem deve ser um Estado social. O Estado de direito não pode nem deve ser um Estado-providência. O Estado de direito não pode nem deve ter tarefas ou fins económicos, sociais e culturais. Por estas e outras palavras pretende- se deslegitimar qualquer Estado que se autoproclame Estado programaticamente vinculado à realização da justiça social, da igualdade, da solidariedade, dos direitos económicos, sociais e culturais. Não seria uma simples coincidência que os Estados totalitários e autoritários se revelassem sempre sensíveis à constituição do social (Constituição soviética de 1936; Fuero del Trabajo de 1938 e Fuero de los Espanoles de 1945, ou seja, as leis fundamentais franquistas, Carta del lavoro de 1927, a lei social do fascismo italiano; Constituição portuguesa de 1933). A «crítica do social» formulada a pretexto do Estado de direito retoma a crítica do totalitarismo, não hesitando mesmo algumas correntes políticas em ver no Estado de bem-estar ou no Estado-providência uma manifestação clara da deriva totalitária. O Estado, sob a máscara de Estado-providência, alarga as suas malhas interventoras e asfixiantes, constituindo o perigo maior das liberdades. Se o direito do Estado de direito serve para alguma coisa, essa é a de constituir uma espécie de «linha Maginot» contra o «totalitarismo social» disfarçado em providência do Estado. Numa palavra: o «direito contra o Estado» obriga a pensar o Estado sem cargas ou encargos sociais. Perguntará o leitor: quem pensa assim? Muita gente, mas com especial relevo para os novos «filósofos» que invocam o direito a favor das liberdades e contra o «arquipélago Goulag», que produziu, não a felicidade, mas «pavilhões psiquiátricos» e «dissidentes». Os direitos sociais realizam-se ─ argumenta-se ainda ─ melhor sem o Estado do que através do Estado. A experiência demonstrou que a efectivação dos próprios direitos económicos, sociais e culturais através da ordem livre do mercado é a única forma de garantir a justiça distributiva sem pôr em perigo a liberdade. Não é ao Estado, e muito menos a um Estado de direito, que pertence impor e realizar fins sociais. Não é ao Estado, e muito menos a um Estado de direito, que pertence a regulação da ordem dos bens. O direito, o verdadeiro direito, é mais uma auto-regulação social do que uma regulamentação estatal. Quem discorre assim?, perguntará também o leitor. Muita gente, mas sobretudo os pensadores e economistas neoliberais. O Estado de direito pressupõe uma sociedade civil onde desabrochem as potencialidades da inovação e criatividade. O Estado de direito reclama o indivíduo autónomo e não o administrado igual e submisso à máquina estatal. Como talvez se intuirá das palavras precedentes, o Estado de direito converteu-se em tema de filosofia polí tica, em postulado de economia política e em palavra de combate de luta ideológica. O direito contra o Estado e o direito sem Estado são as fórmulas linguísticas condensadoras das principais. Apesar de tudo, a maior parte dos Estados de direito do mundo ocidental ─ designadamente da Comunidade Europeia ─ insistem na bondade do Estado social. Algumas das críticas ─ cumplicidade do Estado-providência com construções autoritárias e totalitárias, superioridade da economia de mercado sobre a economia planificada ─ afiguram-se hoje como inquestionavelmente pertinentes. Mas uma coisa é um «Estado social ou Estado socialista» de não direito e outra, muito diferente, é um Estado social de direito. Os princípios básicos do Estado social continuam incontornáveis: equilíbrio das clivagens sociais, estímulos regulativos e materiais do Estado a favor da justiça social, reajustamento das condições reais prévias à aquisição de bens materiais e imateriais indispensáveis ao próprio exercício de direitos, liberdades e garantias pessoais, estabelecimento de regras jurídicas em prol do emprego e dos direitos dos trabalhadores. O ideal de uma ordem espontânea ─ quaisquer que sejam as fórmulas linguísticas para a revelar, como «mão invisível», «equilíbrio cibernético», «auto-regulação» ─, que do direito reclama apenas as regras proces suais do jogo e em tudo o mais repousa no senhorio das vontades individuais e da prossecução dos respectivos interesses, é estranho à ordem constitucional portuguesa e mesmo europeia. Justifiquemos porquê. No ordenamento jurídico-constitucional português não há excesso de estatalidade social. Pelo contrário. há défice. Se por estatalidade social se entender o grau de intervenção estatal na esfera do bem-estar das popula çõess, então o que pode dizer-se é que o Estado de direito
social só será Estado de direto se for social. As tentativas para recriar um «Estado absentista» ou um «Estado subsidiário» numa época de «agressividade social» e de globalitarismo ideológico escondem a razoabilidade e justiça do Estado social de direito. Como escreveu recentemente um ilustre constitucionalista italiano^12 , este tipo de Estado é a tentativa qualitativa para tornar compatível o desenvolvimento económico com uma ordem social justa na qual se definam antecipadamente as dimensões constitucionais e essenciais dessa ordem, em vez de se acreditar nos acertos resultantes da
(^12) Quem quiser ir mais longe encontrará uma breve mas excelente exposição destes problemas num livro em língua
francesa de autoria de Iac- Jacques Chevallier (Cf. Iacques Chevallier, L' État de droit, Montchrestien, 2~ ed., Paris, 1994).
mera concorrência de forças económicas. Se quiséssemos adoptar uma fórmula de síntese, poderíamos dizer que o Estado social de direito só será Estado de direito se, como reclamavam os liberais e exigem agora os neoliberais, reconhecer a função estruturante dos princípios fundamentais do direito civil assente nos direitos da vontade dos sujeitos económicos (ou seja, dos proprietários, empresários) e dos princípios norteadores desses direitos (a livre iniciativa económica e a autonomia contratual). Contudo, o Estado de direito só será social se não deixar de ter como objectivo a realização de uma democracia económica, social e cultural e só será democrático se mantiver firme o princípio da subordinação do poder económico ao poder político. As tentativas de expurgação do social com o intuito de destilar um Estado de direito quimicamente puro, isto é, um Estado sem o compromisso da socialidade, mais não são do que coberturas ideológicas para políticas económicas e sociais onde não cabem deveres de solidariedade e de inclusão do outro
marginalização social cria marginalidades no direito: defende melhor os seus direitos quem tiver possibilidades materiais. A exclusão social é também exclusão do direito e um Estado de direito que se pretenda um Estado de justiça tem de ser algo mais do que um Estado que encarcera os excluídos «fazendo justiça» ou um Estado que exclui os excluídos da justiça (os estrangeiros, as comunidades migrantes).
Começa a divulgar-se na literatura política a fórmula alemã Estado de direito de ambiente (Umweltrechts- staat). Esta expressão dá guarida às exigências de os Estados e as comunidades políticas conformarem as suas políticas e estruturas organizatórias de forma ecologicamente auto-sustentada. De qualquer forma, o Estado ambiental terá de ser um Estado de direito. Isto tem grande relevo prático. Afasta- se de qualquer fundamentalismo ambiental que, por amor ao ambiente, resvalasse para formas políticas autoritárias e até totalitárias com desprezo das dimensões garantísticas do Estado de direito. A qualificação de um Estado como «Estado ambiental» aponta para duas dimensões jurídico-políticas particularmente relevantes. A primeira é a obrigação de o Estado, em cooperação com outros Estados e cidadãos ou grupos da sociedade civil, promover políticas públicas (económicas, educativas, de ordenamento) pautadas pelas exigências da sustentabilidade ecológica. A segunda relaciona-se com o dever de adopção de comportamentos públicos e privados amigos do ambiente de forma a dar expressão concreta à assumpção da responsabilidade dos poderes públicos perante as gerações futuras. O «Estado ambiental» estrutura-a, como já se sugeriu, em termos de Estado de direito e em termos democráticos. Estado de direito do ambiente quer dizer indispensabilidade das regras e princípios do Estado de direito para se enfrentarem os desafios impostos pelos desafios da sustentabilidade ambiental. Mesmo que haja necessidade de algumas novidades no esquema de instrumentos jurídicos ─ mais limitações à propriedade em prol de reservas ecológicas, mais provisoriedade e precariedade nos actos administrativos justificados pelas vigilâncias ecológicas, mais retroactividade eventualmente lesiva de situações subjectivas em nome da protecção do ambiente contra cargas poluentes acumuladas ─, tudo isso pode e deve ser feito sem postergação das regras básicas da juridicidade estatal. Não nos admirará também a inseparabilidade do Estado ambiente do princípio democrático. A afirmação desta nova dimensão do Estado pressupõe o diálogo democrático, exige instrumentos de participação, postula o princípio da cooperação com a sociedade civil. O Estado de ambiente constrói-se democraticamente de baixo para cima; não se dita em termos iluminísticos e autoritários de cima para baixo. Finalmente, o Estado de ambiente é um Estado de justiça ambiental. De novo, a justiça aponta para exigências de igualdade, sob pena de os riscos ambientais representados por indústrias, resíduos, descargas, serem deslocados para zonas deprimidas ou para Estados sem defesas ecológicas. As fórmulas plásticas utilizadas nos direitos do ambiente, na legislação interna, internacional e comunitária, como as do «poluidor-pagador», «produtor- -poluidor-pagador», «proibição de turismo de resíduos», pretendem condenar algumas normas de conduta ambiental onde, justamente com exigências técnicas e científicas, não são alheios princípios materiais de justiça ambiental.
O Estado de direito é um Estado de direitos fundamentais. O leitor ficará, porventura, e uma vez mais, intrigado. Não será óbvio que um Estado de direito tem no sistema de direitos fundamentais o seu próprio coração? Acontece, neste domínio, aquilo que se verificou durante muitos anos com a democracia e que levou um autor inglês à conhecida ironia relativamente ao Estado de direito continental: eles ─ os «continentais» ─ pensam ser possível um Estado de direito sem democracia! Do mesmo modo, gerações e gerações de juristas glosaram o tema do direito no Estado de direito sem nunca terem encontrado os direitos fundamentais. Verdade seja dita, a filosofia do constitucionalismo sugeria precisamente o contrário, ou seja, a indissociabilidade de Estado de direito e direitos fundamentais. Tracemos uma breve história. A Declaration of Rights da Virgínia, de 1776, ergue os direitos e liberdades a base e fundação do governo. No mesmo sentido, a Declaração de Independência dos Estados Unidos, do mesmo ano, localiza também os direitos e liberdades do indivíduo numa esfera jurídica que está antes e está sobre o direito criado ou posto por qualquer legislador. Mesmo que esse legislador se considere e esteja democraticamente legitimado. Mais do que isso: os direitos valem como direito positivo, ou seja, como direito juridicamente vigente, garantido quer pela constituição, quer pela lei. Na qualidade de património subjectivo indisponível pelo poder, são os direitos e liberdades que limitam a lei, não é a lei que cria e dispõe dos direitos fundamentais. Se necessário for, os tribunais deverão desaplicar as leis violadoras de direitos fundamentais constitucionalmente garantidos (fiscalização da constitucionalidade). Isso passou-se nos Estados Unidos. No continente europeu também se proclamaram solenemente os direitos do homem e do cidadão. A evolução dos esquemas Político-constitucionais conduziria, porém, os direitos do homem e do cidadão a uma situação deveras paradoxal. Os direitos do homem e do cidadão transportavam, também aqui, os pilares da fundação do Estado de direito moderno ao ponto de se ter escrito que um país sem declaração de direitos (a divisão de poderes) não tinha sequer constituição. Como tantas vezes aconteceu, as grandes declarações de direitos e o catálogo de direitos fundamentais plasmados nas constituições bastaram-se com a bondade das suas mensagens e descuraram os modos, os procedimentos e os processos de garantir efectivamente os direitos. Isto conduziu a dois modos de erosão da força normativa dos direitos e liberdades. Por um lado, as declarações de direitos atingiam as alturas das proclamações filosóficas, eternas e imorredoiras, esquecendo que os homens e os cidadãos eram indivíduos bem situados no terreno da cidade. Além de serem reconduzidos à categoria de exortações retóricas, os direitos e liberdades caíam, por outro lado, e também por isso, nos braços criadores do legislador. Expliquemo-nos. «Sendo mais filosofia do que direito», os direitos e liberdades não valiam de per si, não radicavam posições subjectivas individuais juridicamente garantidas. Só quando o legislador fizesse um código ou uma lei onde se regulamentassem os direitos, então sim, os particulares beneficiavam de protecção jurídica. É esta a célebre doutrina da regulamentação das liberdades. As consequências práticas parecem evidentes ─ os direitos são criados pela lei e só depois de regulamentados por ela poderão ser juridicamente invocados. O centro do sistema de posições subjectivas não se localiza nos direitos, mas nas regulamentações do legislador. O Estado de direito, em rigor, reconduzia-se a um Estado legicêntrico e os direitos e liberdades, longe de serem considerados direitos constitucionalmente fundados à semelhança dos direitos e liberdades americanos, degradavam-se a direitos criados por leis: as leis e os códigos iam reflectindo os esquemas de domínio, bem podendo dizer- se que durante muito tempo se protegeram mais os direitos dos privados do que os direitos dos cidadãos. O indivíduo dispunha de leis razoáveis para a defesa da sua propriedade, da sua indústria, do seu estado civil, dos seus contratos, mas faltavam-lhe os espaços de respiração para exercer direito de associação, de reunião, de demonstra- ção, de sufrágio, de liberdade de imprensa. O Estado de direito podia ser um Estado de liberalismo civil, mas não era um Estado de liberalismo político. Este breve excurso tornou-se necessário para compreendermos hoje o Estado de direito como Estado de direitos fundamentais. Não vale a pena discutir ─ embora isso constitua um dos temas mais frequentados da filosofia política actual ─ se o Estado de direito dá guarida apenas a direitos fundamentais de cariz liberal e se é apenas com base nestes que se legitima um Estado. Já vimos que a nossa opinião não é essa. O Estado de direito só pode ser Estado de direito se for também um Estado democrático e um Estado social. Nesta perspectiva, o Estado de direito transformou-se em Estado de direitos pessoais, políticos e sociais. Dizer que o Estado de direito é um Estado de direitos significa, desde logo, que eles regressam ao estatuto de dimensão essencial da comunidade política. Não admira, por isso, a sua constitucionalização. Estarem os direitos na constituição significa, antes de tudo, que beneficiam de uma tal dimensão de fundamentalidade para a vida comunitária que não podem deixar de ficar consagrados, na sua globalidade, na lei das leis, ou lei suprema (a constituição). Significa, em segundo lugar, que, valendo como direito constitucional superior, os direitos e liberdades obrigam o legislador a respeitá-los e a observar o seu núcleo essencial, sob pena de nulidade das próprias leis. A constitucionalização dos direitos revela a fundamen talidade dos direitos e reafirma a sua positividade no sentido de os direitos serem posições juridicamente garantidas e não meras proclamações filosóficas,
servindo ainda para legitimar a própria ordem constitucional como ordem de liberdade e de justiça. Uma outra dimensão deve, porém, ser revelada: não basta a consagração de direitos numa qualquer constituição. A história demonstra que muitas constituições ricas na escritura de direitos eram pobres na garantia dos mesmos. As «constituições de fachada», as «constituições simbólicas», as «constituições álibi», as «constituições semânticas», gastam muitas palavras na afirmação de direitos, mas pouco podem fazer quanto à sua efectiva garantia se os princípios da própria ordem constitucional não forem os de um verdadeiro Estado de direito. Isto conduz-nos a olhar noutra direcção: a dos princípios, bens e valores informadores e conformadores da juridicidade estatal.