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Augusto comte e o positivismo, Notas de estudo de História

AUGUSTO COMTE E O POSITIVISMO

Tipologia: Notas de estudo

2010

Compartilhado em 08/04/2010

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REVISTA DE SOCIOLOGIA E POLÍTICA V. 17, Nº 34 : 319-343 OUT. 2009
RESUMO
Rev. Sociol. Polít., Curitiba, v. 17, n. 34, p. 319-343, out. 2009
Gustavo Biscaia de Lacerda
AUGUSTO COMTE E O “POSITIVISMO”
REDESCOBERTOS
Recebido em 11 de agosto de 2009.
Aprovado em 30 de agosto de 2009.
I. INTRODUÇÃO
É mais ou menos consensual no âmbito das
Ciências Sociais que a palavra “Positivismo” tem
um significado negativo, assim como que já pos-
suiu um significado positivo. Acompanhar a mu-
dança de valoração dessa palavra é historiar uma
parte importante da história das Ciências Sociais
no Brasil e no mundo ao longo do século XX e
início do século XXI. Por outro lado, o conteúdo
desse “Positivismo” não é algo consensual nem
muito menos preciso, variando desde a equiva-
lência à reação política da burguesia (com Lênin)
até à razão instrumental que desumaniza (com a
Escola de Frankfurt); no Brasil, também são fre-
qüentes as afirmações de que “os positivistas”
estiveram na raiz do regime militar de 1964. De
lambujem, afirma-se que o Positivismo Jurídico,
o Comportamentalismo psicológico, o Positivismo
na História são variações, ou melhor, aplicações
do Positivismo original, vinculado à Filosofia e à
Sociologia.
Em quaisquer dessas hipóteses, a origem do
“Positivismo” é atribuída ao francês Augusto
Comte (1798-1857), autor dos famosos Système
Neste ensaio abordamos algumas pesquisas que, nos últimos dez anos ou mais, têm recuperado a obra do
fundador do Positivismo, Augusto Comte. Essa recuperação consiste em perceber os trabalhos de Comte em
sua inteireza e a partir de sua lógica interna, enfatizando em particular a sua segunda grande obra, o
Système de politique positive (1851-1854), e as suas contribuições para a reflexão social e política contem-
porânea. A fim de tornar inteligível a novidade dessas novas pesquisas, apresentamos uma das narrativas-
padrão a respeito de Comte e do Positivismo – no caso, a partir dos escritos de Anthony Giddens –; além
disso, fazemos uma discussão sobre o significado da palavra “Positivismo” e as várias correntes teóricas
subsumidas em tal expressão.
PALAVRAS-CHAVE: Positivismo; Augusto Comte; Système de politique positive; Anthony Giddens; Círculo
de Viena.
FÉDI, Laurent. 2008. Comte. São Paulo: Estação Liberdade.
GRANGE, Juliette. 1996. La philosophie d’Auguste Comte. Science, politique, religion. Paris : PUF.
TISKI, Sérgio. 2007. A questão da moral em Augusto Comte. Londrina: UEL.
de philosophie positive (1830-1842) e Cathéchisme
positiviste (1852) e dos menos famosos Système
de politique positive (1851-1854), Appel aux
conservateurs (1855) e Synthèse subjective (1856),
além de algumas outras publicações menores e de
extensa correspondência. A relação que se esta-
belece entre a filosofia do francês Comte – cha-
mada de “filosofia positiva” ou “Positivismo” – e
as várias correntes denominadas de “Positivismo”
baseia-se em diversas possibilidades: a primeira,
claro, é a identidade de nome em diversas situa-
ções; em seguida, alguns vínculos históricos (te-
óricos e políticos) entre eles; por fim, mera ex-
tensão ou ampliação de sentido. Além disso, a crer
em alguns abalizados pesquisadores da história da
Sociologia – pensamos em Anthony Giddens –,
há mais continuidades que rupturas entre uma
forma e outra, sendo possível caracterizar o se-
gundo como um prenúncio do primeiro.
Essa caracterização é tanto mais incorreta
quanto a influência exercida pelo “Positivismo”
“filosófico” no Brasil foi enorme: basta pensar na
constante referência ao lema da bandeira nacio-
nal, o “Ordem e Progresso”. Ora, passar de uma
influência tal que permitiu a inscrição no pavilhão
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REVISTA DE SOCIOLOGIA E POLÍTICA V. 17, Nº 34 : 319-343 OUT. 2009

RESUMO

Rev. Sociol. Polít. , Curitiba, v. 17 , n. 34 , p. 319-343, out. 2009

Gustavo Biscaia de Lacerda

AUGUSTO COMTE E O “POSITIVISMO”

REDESCOBERTOS

Recebido em 11 de agosto de 2009. Aprovado em 30 de agosto de 2009.

I. INTRODUÇÃO

É mais ou menos consensual no âmbito das Ciências Sociais que a palavra “Positivismo” tem um significado negativo, assim como que já pos- suiu um significado positivo. Acompanhar a mu- dança de valoração dessa palavra é historiar uma parte importante da história das Ciências Sociais no Brasil e no mundo ao longo do século XX e início do século XXI. Por outro lado, o conteúdo desse “Positivismo” não é algo consensual nem muito menos preciso, variando desde a equiva- lência à reação política da burguesia (com Lênin) até à razão instrumental que desumaniza (com a Escola de Frankfurt); no Brasil, também são fre- qüentes as afirmações de que “os positivistas” estiveram na raiz do regime militar de 1964. De lambujem, afirma-se que o Positivismo Jurídico, o Comportamentalismo psicológico, o Positivismo na História são variações, ou melhor, aplicações do Positivismo original, vinculado à Filosofia e à Sociologia.

Em quaisquer dessas hipóteses, a origem do “Positivismo” é atribuída ao francês Augusto Comte (1798-1857), autor dos famosos Système

Neste ensaio abordamos algumas pesquisas que, nos últimos dez anos ou mais, têm recuperado a obra do fundador do Positivismo, Augusto Comte. Essa recuperação consiste em perceber os trabalhos de Comte em sua inteireza e a partir de sua lógica interna, enfatizando em particular a sua segunda grande obra, o Système de politique positive (1851-1854), e as suas contribuições para a reflexão social e política contem- porânea. A fim de tornar inteligível a novidade dessas novas pesquisas, apresentamos uma das narrativas- padrão a respeito de Comte e do Positivismo – no caso, a partir dos escritos de Anthony Giddens –; além disso, fazemos uma discussão sobre o significado da palavra “Positivismo” e as várias correntes teóricas subsumidas em tal expressão.

PALAVRAS-CHAVE: Positivismo ; Augusto Comte ; Système de politique positive; Anthony Giddens ; Círculo de Viena.

FÉDI , Laurent. 2008. Comte. São Paulo: Estação Liberdade.

GRANGE , Juliette. 1996. La philosophie d’Auguste Comte. Science, politique, religion. Paris : PUF.

TISKI , Sérgio. 2007. A questão da moral em Augusto Comte. Londrina: UEL.

de philosophie positive (1830-1842) e Cathéchisme positiviste (1852) e dos menos famosos Système de politique positive (1851-1854), Appel aux conservateurs (1855) e Synthèse subjective (1856), além de algumas outras publicações menores e de extensa correspondência. A relação que se esta- belece entre a filosofia do francês Comte – cha- mada de “filosofia positiva” ou “Positivismo” – e as várias correntes denominadas de “Positivismo” baseia-se em diversas possibilidades: a primeira, claro, é a identidade de nome em diversas situa- ções; em seguida, alguns vínculos históricos (te- óricos e políticos) entre eles; por fim, mera ex- tensão ou ampliação de sentido. Além disso, a crer em alguns abalizados pesquisadores da história da Sociologia – pensamos em Anthony Giddens –, há mais continuidades que rupturas entre uma forma e outra, sendo possível caracterizar o se- gundo como um prenúncio do primeiro. Essa caracterização é tanto mais incorreta quanto a influência exercida pelo “Positivismo” “filosófico” no Brasil foi enorme: basta pensar na constante referência ao lema da bandeira nacio- nal, o “Ordem e Progresso”. Ora, passar de uma influência tal que permitiu a inscrição no pavilhão

AUGUSTO COMTE E O “POSITIVISMO” REDESCOBERTOS

nacional do lema do “Positivismo” “filosófico” para a confusão corrente e a subsunção dessa “varie- dade” de “Positivismo” ao “intelectual” revela muito não apenas dos hábitos intelectuais brasilei- ros quanto indica os descaminhos da história das Ciências Sociais e da História das Idéias, de modo geral, ao longo do século XX.

As vinculações indicadas acima constituem uma sugestão teórica – uma hipótese de pesquisa –, que começaria com a leitura do texto original de Comte e avançaria pelas diversas correntes auto ou heterodenominadas de “positivistas”, passan- do pelos críticos do “Positivismo”. Esse percur- so não apresenta nenhuma grande inovação metodológica, consistindo apenas no exame das perspectivas teóricas e metodológicas de uma extensa literatura filosófica e sociológica: todavia, é curioso que ele não seja realizado, sendo mes- mo desprezado. Um passar de olhos em parte importante da literatura teórica das Ciências Soci- ais contenta-se 1) em estabelecer a relação entre Comte e os demais “positivismos” a partir da co- incidência de nomes e 2) em repetir lugares-co- muns a respeito do “Positivismo” (em particular com um juízo de valor negativo).

Embora tais relatos, de boa ou de má-fé, pos- sam multiplicar-se bastante, é digno de nota que diversos pesquisadores, em vários países, têm investigado diretamente a obra de Comte e chega- do à conclusão simples de que a maior parte das relações entre o Positivismo comtiano e os “positivismos” atuais consiste apenas em coinci- dência terminológica.

Neste ensaio bibliográfico trataremos de algu- mas das mais representativas dessas pesquisas que recuperam o pensamento original de Comte: de Laurent Fédi, Comte (2008); de Juliette Grange, La philosophie d’Auguste Comte. Science, politique, religion (1996), e, de Sérgio Tiski, A questão da religião em Augusto Comte (2008). Preocupados com questões diversas mas coinci- dindo em aspectos importantes, esses livros ca- racterizam-se pelo fato de tomarem como objeto de análise o pensamento de Comte em si mesmo, sem deixarem de apresentar diálogos com ques- tões atuais e sem deixarem de lado perspectivas “críticas”.

“Recuperar” o pensamento de Comte é impor- tante por outro motivo, além de fazer justiça ao fundador da Sociologia em pesquisas de Teoria

Política e Social. Considerando que o grande arquiinimigo de várias das principais correntes teóricas nas Ciências Sociais é, precisamente, o “Positivismo”, recuperar e discutir o pensamento do próprio Comte é participar de maneira mais adequada, porque mais qualificada, das polêmi- cas teórico-metodológicas e políticas contempo- râneas. Além disso, retirada a extensa camada crí- tica sobreposta à obra comtiana, é possível per- ceber que, de fato, essa obra apresenta elementos efetivos para os debates teóricos, metodológicos e políticos atuais. Dessa forma, antes de discutirmos os livros indicados acima, é necessário examinarmos duas outras questões, intimamente relacionadas: 1) quais e o que são os “positivismos”? 2) Do que o “Positivismo” é acusado? Essas questões não são secundárias; considerando que desde há algumas décadas o “Positivismo” é “outro” teórico contra o qual por assim dizer todos batem-se, variados sentidos do “Positivismo” produzem variadas im- plicações. Este artigo terá a seguinte estrutura. Como o presente tema é a recuperação da obra de Comte, em um primeiro momento examinaremos algumas formas usuais de abordá-lo nas Ciências Sociais

  • em particular, na obra de Anthony Giddens, que apresenta um caráter paradigmático a respeito. O exame das exposições de Giddens servirá como fio condutor para uma outra discussão: o exame das variedades do “Positivismo”, ou seja, a deter- minação do que se entende por essa palavra nos debates das Ciências Sociais. Esse procedimento facilitará a compreensão e a avaliação de algumas das recentes obras que têm recuperado o pensa- mento comtiano; por fim, faremos alguns con- clusões gerais. II. UM ANTIPOSITIVISTA PARADIGMÁTICO: GIDDENS Como indicamos acima, não é novidade que a palavra “Positivismo” atualmente carrega um va- lor semântico bastante negativo. Entre a confu- são terminológica a respeito da palavra “Positivismo” e a crítica mais ou menos informa- da a respeito de Comte, várias são as correntes teóricas que se encarrega(ra)m de combatê-lo, a partir das mais variadas perspectivas, entre as quais podemos citar o marxismo, o pós-modernismo, a Sociologia Compreensiva. Como é evidente, cada uma delas mobiliza diferentes pressupostos filo-

AUGUSTO COMTE E O “POSITIVISMO” REDESCOBERTOS

reflexividade não permite uma “tecnologia social” semelhante à engenharia (que é uma forma de “tecnologia física”) 2.

Pois bem: ambas as objeções são incorretas. Não que sejam erradas em si, mas é incorreto atri- buí-las a Augusto Comte, que foi muito claro a seu respeito: por um lado, o caráter reflexivo do ser humano foi desde o início afirmado por ele e, no fundo, a lei dos três estados pressupõe-na; ali- ás, o caráter específico do ser humano em rela- ção aos outros animais consiste, acima de tudo, em seu caráter histórico, que não é dado simples- mente pela acumulação de “materiais” geração após geração, mas pela reflexividade de cada geração a respeito das anteriores e – algo fundamental para as discussões sociais contemporâneas – também a respeito das vindouras.

Por outro lado, a Sociologia existe para ter fins práticos. Esses fins “práticos” são, por um lado, intelectuais e morais: ter uma compreensão da realidade (cósmica e social) é importante para a harmonia mental de cada indivíduo; por outro lado, os fins “práticos” são políticos: para Comte, o conhecimento elaborado pelos sociólogos deve ser aplicado politicamente sob a forma de conselhos práticos , não de engenharia social. A divisão entre os poderes Temporal e Espiritual é o maior resul- tado disso: o poder Temporal – grosso modo , o Estado – deve conhecer a sociedade para saber como lidar com ela: por exemplo, respeitando as famílias, respeitando as várias tradições, permi- tindo as várias liberdades, em particular as de pen- samento e de expressão etc. Por outro lado, o poder Espiritual pode ser também chamado – lite- ralmente – de “sociedade civil” e consiste em uma série de órgãos formuladores da opinião pública, capaz de orientar a ação do Estado e, acima de tudo, de estabelecer limites para ela (o que inclui a (des)legitimação). O que é importante assinalar é que os sociólogos (ou, sendo mais correto a res- peito da terminologia comtiana, os sacerdotes) devem permanecer no poder Espiritual e não par-

ticipar do poder Temporal : essa restrição não foi feita no sentido de tornar o Estado incompetente ou irresponsável, mas para que os formuladores da opinião pública permaneçam como formuladores da opinião pública, sem confundi- rem as opiniões sob sua responsabilidade com projetos de tomada do poder – o que, não rara- mente, podem tornar-se imposição da opinião e censura; uma outra possibilidade da imposição política do saber sociológico são as tecnocracias^3

  • ou, nos termos de Comte, a “pedantocracia”^4. II.2. A retórica da loucura Vejamos outro texto de Giddens: “Augusto Comte e o Positivismo”, publicado no Brasil em 2000 (GIDDENS, 2000), mas consistindo de fato na republicação de um artigo de 1982. Esse artigo de pouco mais de 11 páginas pretende fazer uma apresentação geral da importância teórica de Comte, ajuntando aos comentários propriamente teóricos algumas observações biográficas relevan- tes. Cumpre reconhecermos desde já um argu- mento, na verdade mais uma pequena indicação, bastante iluminadora e até simpática de Giddens a respeito da obra de Comte: a contraposição estilística das duas grandes obras comtianas – o Système de philosophie positive^5 (1830-1842) e o Système de politique positive (1851-1854) 6 – re- vela uma alteração fundamental. Enquanto a

(^2) Um pouco adiante ele comenta que “[...] sociological analysis teaches sobriety. For although knowledge may be an important adjunct to power, it is not the same as power. And our knowledge of history is always tentative and incomplete” (GIDDENS, 1982, p. 15) (“[...] a análise soci- ológica ensina a sobriedade. Pois embora o conhecimento possa ser um importante adjunto do poder, ele não é a mesma coisa que o poder. E o nosso conhecimento da his- tória é sempre tentativo e incompleto”).

(^3) Jean Lacroix (2003, p. 101) compreendeu esse aspecto do pensamento comtiano, ao comentar com clareza e sim- plicidade que “sua [de Comte] concepção de poder Espiri- tual afastava-o [...] de qualquer tendência tecnocrática” (LACROIX, 2003, p. 101). (^4) Uma das conseqüências do caráter sistêmico do pensa- mento comtiano é que, embora em cada capítulo de suas obras ele tratasse em particular de determinadas questões, essas mesmas questões eram discutidas sob outras pers- pectivas em outros capítulos, dedicados a outros temas; assim, não apenas a quantidade de citações possíveis para cada tema é enorme como a complexidade das perspectivas também é grande – o que torna a apresentação de suas idéias uma tarefa sempre exigente. Essa constatação é feita por todos os especialistas no pensamento comtiano (cf., por exemplo, GRANGE, 1996; LACROIX, 2003; GANE, 2006; FÉDI, 2008). (^5) Originalmente chamado de Cours de philosophie positive , foi alterado para “ Système ” em 1848 (cf. COMTE, 1957, p. 3). (^6) Para simplificar a redação, adotaremos as formas simplificadas de “ Philosophie ” para referirmo-nos ao Système de philosophie positive e de “ Politique ” para as referências ao Système de politique positive.

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Philosophie foi redigida em um estilo sóbrio e al- tamente impessoal, embora a vida pessoal e pro- fissional de Comte estivesse profundamente atri- bulada, a Politique foi redigida de maneira pesso- al e “apaixonada”, indicando uma grande altera- ção pessoal e profissional e, do ponto de vista te- órico, uma inflexão importante (GIDDENS, 2000, p. 223). O curioso, quase chocante, é que essa indicação notável é uma exceção em um artigo profundamente antipático; mas como ninguém é obrigado a ter simpatia por ninguém, a questão importante é outra: a antipatia de Giddens é “justificada” por deturpações e más-interpretações reiteradas.

Comecemos por um mito bastante difundido: a “loucura” de Comte. Giddens fala em “vida des- regrada” ( idem , p. 217), “períodos de loucura” (no plural) ( idem , p. 218), “estranhos excessos” da Politique ( idem , p. 221), “decadência melan- cólica de um grande intelecto” (ao referir-se no- vamente à Politique ) (Stuart Mill apud GIDDENS, 2000, p. 223). Essas quatro observações – devi- damente feitas sem referências bibliográficas – causam a profunda impressão de que a obra de Comte, em particular a de sua fase mais madura, foi o resultado da especulação de um lunático. Isso é um recurso retórico próximo ao sofisma ad hominem , em que a argumentação teórica e empírica é substituída pela crítica ao autor; além disso, esse procedimento é particularmente espe- cioso, porquanto inúmeros pensadores e teóricos das Ciências Sociais foram “loucos”, “desregra- dos”, mau-caracteres ou simplesmente tiveram sérios problemas emocionais e psicológicos. Ve- jamos alguns: o atualmente tão festejado Friedrich Nietzsche era louco ou catatônico, alternando fa- ses mais ou menos lúcidas a longos períodos anor- mais; Karl Marx tinha esposa e amante e estupra- va ambas, além de difundir mentiras a respeito de seus inimigos políticos para desmoralizá-los^7 ; Max Weber teve um colapso nervoso e desde cerca de 1900 até sua morte, em 1920, esteve incapaz de lecionar oficialmente (embora extra-oficialmente tenha lecionado em diversas instituições do mun- do germanófono); John Stuart Mill passou por uma severa depressão no meio de sua carreira intelec-

tual; foram suicidas ou homicidas Roland Barthes, Nicos Poulantzas e Louis Althusser; Georg Lukács abjurou inúmeras vezes perante Stálin e sua cor- te; Sartre fazia da promiscuidade sexual e intelec- tual um valor moral e político; last but not the least , não podemos esquecer os nazistas Carl Schmidt e Martin Heidegger, que, após a queda do III Reich , encerraram-se em silêncios obse- quiosos mas sem jamais renegarem os passados nacional-socialistas. Esses dados biográficos cos- tumam aparecer apenas a título de introdução bi- ográfica quando tratamos de cada um dos auto- res em questão, mas um exame aprofundado das condições de sanidade dos teóricos sociais ainda está por ser feito – exame que, como se pode perceber, não é nem um pouco ocioso, tal a inci- dência de problemas ou distúrbios psicológicos ou emocionais. A despeito dos problemas de to- dos esses autores, os comentadores, exegetas e discípulos de variados estilos não costumam le- var em consideração tais aspectos biográficos, pois assumem que não interferem na produção teórica ou até mesmo que, se interferirem, não têm im- portância negativa para a sua validade intelectual. Assim, apresenta-se com clareza a seguinte ques- tão: por que a gritante duplicidade de critérios em que se considera que a “loucura” de Comte é pre- judicial mas os sérios problemas emocionais e psicológicos de todos os demais autores não o é? Parece-nos que a resposta é simples: além de sim- ples hipocrisia, trata-se do recurso sistemático ao já citado sofisma ad hominem como estratégica retórica para desqualificar o pensamento de Augusto Comte 8. Mas, a despeito de sua irrelevância para a prá- tica intelectual, é importante considerar a tese da loucura em si mesma, pelo que ela revela e devido às clivagens que surgem a partir dela na avaliação da obra de Comte; para isso, é necessário apre- sentarmos um pequeno resumo biográfico do pen- sador francês.

(^7) Referências úteis sobre a biografia de Marx podem ser encontradas nas obras dos anarquistas, adversários políti- cos e teóricos de Marx quando este vivia; cf., por exemplo, Bakunin (2001).

(^8) Talvez a observação acima cause espanto ou estranheza. Mas, parece-nos, isso é mais devido a uma sistemática ausência de uma Sociologia das Ciências Sociais que por qualquer outro motivo. De qualquer forma, tal empreendi- mento não seria difícil de realizar: do ponto de vista teóri- co-metodológico, uma combinação entre alguns estudos de Pierre Bourdieu (2004) e de Quentin Skinner (2002, espe- cialmente cap. 2-6) permitiriam um excelente ponto de partida.

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acaso, de “produto de loucura” tudo aquilo que foi escrito depois da separação conjugal. O resul- tado desse longo litígio foi que, com base em lau- dos médicos, em testemunhos e na análise do tes- tamento, a Justiça da França deu ganho de causa aos executores-testamenteiros, recusando assim a tese da loucura (cf. LACERDA NETO, 2004, p. 211-219).

Retomando a discussão anterior: o que Giddens (2001) faz, ao retomar o tema da loucura de Comte, é adotar um discurso que visa a desqualificar de maneira rápida e superficial a obra religiosa de Comte, pois que não a examina em momento algum, e reduzindo o corpus comtiano à Philosophie – e, ainda por cima, a partir de um relato sórdido^10.

II.3. Filosofia das Ciências

Vimos acima que várias das opiniões atribuí- das por Giddens a Comte não procedem; essas opiniões supostamente se refeririam à obra valo- rizada com a acusação de loucura, ou seja, refe- rem-se à Philosophie. Em que consistiu essa vo- lumosa obra escrita em 12 anos e seis volumes? Em um exame sistemático das ciências abstratas constituídas até então, de acordo com a “escala enciclopédica” de Comte; a seqüência seria a se- guinte: Matemática, Astronomia, Física, Química e Biologia. Esse exame das ciências não era um fim em si mesmo, mas um meio para um fim ambicioso: a constituição da ciência da socieda- de, inicialmente chamada de “Física Social” e de- pois renomeada para “Sociologia”. Os três pri- meiros volumes foram dedicados a essa progres- são de ciências preliminares; já os três últimos trataram da definição do objeto e do método da nova ciência, incluindo aí as tentativas anteriores e as principais questões teóricas (especificamen- te, a Estática e a Dinâmica sociais).

Convém notarmos que, a propósito da mudan- ça de nome da Sociologia, Giddens afirma que foi devida ao projeto de estatística social de Quetélet,

vista por Comte “com desdém” (GIDDENS, 2001, p. 222). A referência à proposta de matematização da sociedade é correta, mas o “desdém” afirmado por Giddens sugere algo como ciúme profissio- nal, ou seja, uma motivação mesquinha, além de intelectual e teoricamente pobre. Essa insinuação é incorreta: ao insistir em seu projeto específico de ciência da sociedade, a preocupação de Comte era preservar a especificidade teórico-metodológica da Sociologia, indicando que ela é irredutível às demais ciências tanto em termos de objeto quanto de método – o que, no caso da proposta de Quételet, a intenção era evitar que a ciência social fosse reduzida, desde o início, à sociometria. Mais ainda: em vez de a Sociologia (e, por extensão, as Ciências Humanas) dever subordinar-se às Ciên- cias Naturais, seriam estas que deveriam subordi- nar-se teoricamente à Sociologia, a partir de uma perspectiva que hoje chamaríamos de transdisciplinar, radicalmente humanista (esse é o sentido da “síntese subjetiva” de Comte). A Politique assume que a Sociologia já foi cri- ada e, a partir disso, consiste em um aprofundamento sistemático dessa perspectiva humanista (COMTE, 1890, v. I, Préface; v. III, Préface), por assim dizer “subjetivista” e “qualitativista”, das teorias sociológicas. Tal aprofundamento considera, por um lado, as insti- tuições comuns a todas as sociedades humanas (religião, família, linguagem, propriedade, gover- no) – é a Estática Social, apresentada no volume II – e as mudanças por que essas instituições pas- saram ao longo da história e suas inúmeras interações (“reflexivas”, para usar o jargão de Giddens) – é a Dinâmica Social, do volume III da Politique. O volume I da Politique apresenta, em suma, considerações epistemológicas diversas; já o volume IV apresenta um quadro geral do que seria a sociedade ideal, em que o ser humano pode realizar-se ao máximo de acordo com as suas potencialidades reveladas historicamente: é, lite- ralmente, a utopia positivista. Nesses livros Comte discute concepções de justiça social, de liberda- des públicas e assim por diante (cf., por exemplo, LACERDA, 2004; 2008a; 2008b; 2009a). Essa digressão foi necessária para indicar qual o sentido dos relatos de Giddens: é afirmar um Augusto Comte “cientificista”, “naturalista”, mes- mo “quantitativista”. Veremos em detalhes na pró- xima seção que, para Giddens, qualquer “Positivismo” tem necessariamente tais caracte- rísticas; aqui ainda importa contrapor algumas das

(^10) Pode parecer estranho o uso de expressões como “sór- dido” em um artigo científico de Teoria Social; entretanto, não apenas não é possível qualificar de outra forma o epi- sódio como, por outro lado, o próprio Comte afirmava que não se pode conhecer a realidade social sem a referência a valores (COMTE, 1890, v. II, cap. 1, 4); por fim, a com- preensão das várias fases da carreira comtiana não é possí- vel sem a adoção de juízos de valor (como mesmo Giddens implicitamente admite).

AUGUSTO COMTE E O “POSITIVISMO” REDESCOBERTOS

perspectivas sociológicas que Giddens atribui a Comte com o que o próprio Comte dizia. Assim, a respeito de Filosofia da Ciência: “O Curso [a Philosophie ] apresenta uma extensa análise do desenvolvimento das ciências como preâmbulo necessário ao seu programa prático por meio da tese de que a evolução progressiva, porém ordei- ra, da ciência fornece o modelo para uma evolu- ção paralela da sociedade como um todo. O que diria Comte à moderna filosofia da ciência que, nos trabalhos de Bachelard, Kuhn e outros, su- plantou a evolução com a revolução bem no âma- go da própria ciência natural?” (GIDDENS, 2001, p. 224-225; grifo no original). Esse trecho apre- senta duas questões: por um lado, atribui a Comte um relato da evolução das ciências segundo o qual ela teria sido “ordeira” e que, além disso, serviria como modelo para o desenvolvimento social; por outro lado, contrapõe uma perspectiva “evolucionista” (Comte) a uma outra “revolucio- nária” (Bachelard, Kuhn) do desenvolvimento ci- entífico. Vejamos cada uma delas em separado.

Para Comte, o desenvolvimento das ciências não é “ordeiro”, isto é, isento de conflitos ou so- bressaltos. Deixando de lado o fato de que atri- buir a Comte um desenvolvimento “ordeiro” é uma forma de torná-lo um apologeta da “ordem”, isto é, um conservador ou mesmo um reacionário (cf. GIDDENS, 2001, p. 222) 11 , a narrativa comtiana do desenvolvimento das ciências é muito clara e muito rica ao tratar dos conflitos teóricos entre autores, escolas e “epistemes”. Antes de mais nada, a lei dos três estados indica que as concepções humanas passam por três fases (teológica, metafísica e positiva) e que há, precisamente,

conflitos entre as várias tradições: esses conflitos são solucionados de acordo com as condições sociais gerais e também com o confronto com a realidade cósmica. A relação causal geral, portan- to, não é da ciência para a sociedade, mas, ao contrário, da sociedade para a ciência: ou seja, os conhecimentos humanos desenvolvem-se confor- me as condições e as necessidades sociais. Os conflitos sociais não deixam de ser refletidos nos conflitos teóricos; além disso, o surgimento das ciências, embora tenha obedecido a uma seqüên- cia histórica e lógica muito clara, nem por isso foi “contínuo”: basta ver que a Matemática e a Astro- nomia surgiram na Antigüidade (egípcia e grega) e só foram decididamente retomadas após o Renascimento, havendo um enorme lapso que compreende o Império Romano e a Idade Média entre ambos os extremos. O comentário ligeiro de Giddens apresenta ainda dois problemas teóri- cos: em primeiro lugar, ele mistura a constituição de corpos teóricos abstratos a respeito de fenô- menos específicos com o desenvolvimento da sociedade, ou, o que dá no mesmo, mistura o abs- trato com o concreto; em segundo lugar, ele pre- tende invalidar uma observação teórica (abstrata) apenas porque a realidade prática (concreta) é múltipla e variada – o que equivale a negar a (pos- sibilidade de) teoria com a platitude de que a “re- alidade é inesgotável”. A respeito da concepção de ciência de Comte face à concepção “moderna”. Deixando de lado os fatos de que Giddens propõe um evolucionismo canhestro (em que o que vem depois é sempre melhor do que o que veio antes) e de que as con- cepções “modernas” têm sempre um quê de sim- ples modismo, tanto a concepção comtiana não é “evolucionista” quanto o caráter “revolucionário” atribuído às mudanças paradigmáticas é discutí- vel. Vimos acima que para Comte há uma estreita relação entre as condições sociais gerais e o de- senvolvimento do conhecimento em cada socie- dade; mas, além disso, as passagens das concep- ções teológicas para as metafísicas e destas para as positivas são sempre “revolucionárias”, pois que envolvem amplas visões de mundo. Basta pensar na passagem do modelo geocêntrico para o heliocêntrico: para Comte, o deslocamento do centro do universo teve conseqüências radicais, tendo sido o responsável direto pela decadência intelectual da teologia. Mas, de maneira mais de- cisiva, a passagem das fases teológica e metafísica para a positiva é muito mais importante; ela con-

(^11) No seguinte trecho, temos a clara impressão de que, segundo Giddens, Comte era um teórico exclusivamente da “ordem”, um conservador, talvez um reacionário: “[...] o tipo de sociedade previsto por Comte com a garantia de ambos, ordem e progresso, dava grande importância às ca- racterísticas constantes dos trabalhos da ‘escola retrógra- da’ [...], ainda que destituídas de associação específica com o catolicismo” (GIDDENS, 2001, p. 222); aqui e ali Giddens usa a expressão “progresso com ordem” no mesmo senti- do. Essas observações são chocantes à luz da defesa dou- trinária que Comte fez dos direitos trabalhistas (incluindo o direito de greve), a radical liberdade de pensamento e de expressão, do fim dos impérios coloniais (a começar pelo da França, em relação à Argélia), da defesa da justiça social e do combate ao liberalismo laissez-faire e “burguesocrata”, do apoio aos proletários parisienses que se sublevaram no início de 1848 e diversas outras medidas.

AUGUSTO COMTE E O “POSITIVISMO” REDESCOBERTOS

  1. Positivism 6 is a theory of knowledge according to which the natural science of sociology consists of the collection and statistical analysis of quantitative data about society (Durkheim).
  2. Positivism 7 is a theory of meaning, combining phenomenalism and logicistic method, and captured by the principle of verifiability, according to which the meaning of a proposition consists in its method of verification (logical positivism 1 ).
  3. Positivism 8 is a programme for the unification of sciences both syntactically and semantically (logical positivism 2 ).
  4. Positivism 9 is a theory of knowledge according to which science consists of a corpus of interrelated, true, simple, precise and wide-ranging universal laws that are central to explanation and prediction in the manner described in the D-N [deductive- nomological] schema (Hempel).
  5. Positivism 10 is a theory of knowledge according to which science consists of a corpus of causal laws on the basis of which phenomena are explained and predicted.
  6. Positivism 11 is a theory of scientific method according to which science progresses by inducting laws from observational and ex- perimental evidence (Bacon).
  7. Positivism 12 is a theory of scientific method according to which science progresses by conjecturing hypotheses and attempting to refute them, so that false conjectures are eliminated and corroborated ones retained (Popper)” ( idem , p. 114-115; sem grifos no original)^12.

A relação acima é bastante esclarecedora; em- bora apresente alguns problemas sérios 13 , Halfpenny esclarece que há inúmeras formas de “Positivismo” que não se referem (diretamente) a Augusto Comte – no caso, oito em 12, isto é, dois terços. Além dos sentidos 1 a 4, poderíamos tam- bém incluir na rubrica comtiana o nono, relativo às leis naturais. Parece claro que a relação acima está longe de esgotar o assunto; além dos sentidos habituais re- lativos à Sociologia e à Filosofia das Ciências, po- demos incluir alguns outros. Nesse sentido, é ne-

(^12) No original, essa relação consiste de apenas um único e longo parágrafo, que dividimos para facilitar a compreen- são. Tradução livre: “O Positivismo 1 é uma teoria da his- tória em que os desenvolvimentos do conhecimento são tanto o motor da história quanto a fonte da estabilidade social (Comte 1). O Positivismo 2 é uma teoria do conheci- mento de acordo com a qual o único tipo são de conheci- mento disponível para a humanidade é o da ciência baseada na observação (Comte 2). O Positivismo 3 é uma tese da unidade da ciência segunda a qual todas as ciências podem ser integradas em um único sistema natural (Comte 3). O Positivismo 4 é uma religião secular da Humanidade devo- tada à veneração da sociedade (Comte 4). O Positivismo 5 é uma teoria da história em que o motor do progresso que

garante o surgimento de formas superiores de sociedade é a competição entre indivíduos crescentemente diferenciados (Spencer). O Positivismo 6 é uma teoria do conhecimento de acordo com a qual a ciência natural da Sociologia consis- te na coleção e na análise estatística de dados quantitativos sobre a sociedade (Durkheim). O Positivismo 7 é uma teo- ria do significado, combinando métodos fenomenológicos e lógicos e obtida pelo princípio da verificabilidade, de acor- do com o qual o significado de uma proposição consiste em seu método de verificação (Positivismo Lógico 1). O Positivismo 8 é um programa para a unificação das ciênci- as, tanto sintática quanto semanticamente (Positivismo Lógico 2). O Positivismo 9 é uma teoria do conhecimento de acordo com a qual a ciência consiste em um corpus de leis universais interrelacionadas, verdadeiras, simples, pre- cisas e de amplo alcance que são centrais para a explicação e para a previsão, à maneira descrita pelo esquema DN [dedutivo-nomológico] (Hempel). O Positivismo 10 é uma teoria do conhecimento de acordo com a qual a ciência consiste em um corpus de leis causais, a partir dos quais os fenômenos são explicados e previstos. O Positivismo 11 é uma teoria do método científico de acordo com a qual a ciência progride por meio de leis indutivas a partir de pro- vas observacionais e experimentais (Bacon). O Positivismo 12 é uma teoria do método científico de acordo com a qual a ciência progride conjecturando hipóteses e tentando refutá- las, de modo que as conjecturas falsas são eliminadas e as corroboradas são retidas (Popper)”. (^13) Por exemplo: afirmar que a Sociologia de Durkheim é particularmente quantitativa, o que é verdade em particular para O suicídio , mas deixando de lado todas as demais grandes obras ( A divisão do trabalho social , As formas elementares da vida religiosa e mesmo As regras do método sociológico ). No que se refere a Comte, podemos indicar o seguinte: na definição 1, o que garante a estabilidade social não é o conhecimento (de uma perspectiva estritamente intelectual), mas os sentimentos (em particular, os altruístas); na definição 3, a escala enciclopédica é concluída pela Sociologia e pela Moral e são elas que devem orientar esse conjunto; na definição 4, o objeto de culto da Religião da Humanidade não é a “sociedade”, mas uma abstração relativa ao conjunto dos seres humanos altruístas, historicamente constituída.

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cessário distinguirmos duas variedades “discipli- nares” de Positivismo que guardam poucas rela- ções com o que nos interessa aqui; são elas o Positivismo Jurídico e o Histórico. O primeiro, também chamado de “Juspositivismo”, é obra do austríaco Hans Kelsen, que no início do século XX afirmou, grosso modo , que as fontes do Di- reito têm que ser buscadas apenas no próprio Di- reito 14 , excluindo-se as fontes extrajurídicas, como hábitos e costumes compartilhados, além de valores disseminados socialmente. Sem nos de- termos em uma extensa crítica a seu respeito, im- porta notar que essa perspectiva, se abre a possi- bilidade de uma Sociologia do Direito a partir da consideração do Direito como um sistema fecha- do em si mesmo, em seus próprios termos nega a possibilidade de considerar na prática o Direito como integrante de um sistema maior (o sistema social), que o informe com outros princípios juri- dicamente aplicáveis. Como veremos adiante com maiores detalhes, esse raciocínio não integra o pensamento comtiano, pois que este estava preo- cupado fundamentalmente em constituir um sis- tema de valores socialmente compartilhado capaz de regular as relações sociais e dirimir os confli- tos sociais; secundariamente, convém notar que Augusto Comte simplesmente não tratou do Di- reito e as suas referências aos juristas eram, de modo geral, negativas, devido ao caráter metafísico deles, que negava precisamente as con- siderações sociológicas^15.

O Positivismo na História seria aquela corren- te iniciada com a obra do historiador alemão Leopold von Ranke, que no século XIX definiu que “os documentos falam por si próprios”, con- sistindo o trabalho do historiador em apresentar os “fatos” indicados pelos documentos. Assim,

além de carecer de interpretações e de hipóteses de fundo, essa historiografia caracterizar-se-ia por ser dedicada aos fenômenos políticos, isto é, aos atos dos “grandes líderes” e à vida (política) das nações, sem dúvida aí incluídas as guerras. O Positivismo comtiano afasta-se dessa modalidade em primeiro lugar porque a historiografia por ele sugerida não consiste, metodologicamente, na acumulação de fatos ou na ausência de hipóteses interpretativas; em segundo lugar, porque em ter- mos teóricos a historiografia proposta por Augusto Comte é de caráter sociológico, vinculada a “gran- des durações”: de fato, desde o início da carreira Comte afirmou que é necessário o pensamento social ultrapassar a crônica mais ou menos anedótica da vida política e passar para uma pers- pectiva totalizante da vida social (em que o políti- co não ocupa o nível fundamental) e em que os acontecimentos sociais engendram a si mesmos, continuamente, no método por ele denominado, com precisão, de “filiação histórica” (cf. COMTE, 1890, v. III; 1895; 1972). Nesse sentido, não é difícil de perceber nem de sugerir uma continui- dade teórico-metodológica entre Comte e a Esco- la dos Anais 16. Enquanto as duas variedades de Positivismo acima indicadas são disciplinares , uma outra ver- tente é por assim dizer substantiva, isto é, consti- tui uma corrente filosófica, correspondendo aos sentidos 7 e 8 de Halfpenny: é o “Positivismo Ló- gico”, também conhecido por “Neopositivismo”, “Empirismo Lógico” e “Círculo de Viena”. De- marcar a diferença dessa corrente com o Positivismo comtiano exige maiores comentári- os. Antes de mais nada, enquanto a expressão “Cír- culo de Viena” indica a origem dos pensadores agru- pados em torno de um determinado projeto intelec- tual, “Empirismo Lógico” designa com grande pre- cisão o conteúdo desse projeto intelectual; já “Neopositivismo” é uma expressão menos descri- tiva e que apresenta o demérito de ser profunda- mente elusiva para o nosso presente fim. Na ver- dade, mesmo os “neopositivistas” desgostavam dessa expressão, tanto por ser pouco descritiva de suas preocupações intelectuais, como porque as remetia às idéias de Comte – com quem, aliás, não

(^14) Como o Direito escrito é o chamado “Direito Positivo”, a afirmação de que ele é a única fonte do Direito é o “positivismo jurídico”. (^15) A confusão entre os positivismos, no presente caso, surge também por um outro motivo: o juspositivismo bate- se contra as várias escolas de Direito Natural, que são percebidas como ilegítimas e, segundo a terminologia comtiana, como metafísicas, isto é, inválidas. Entretanto, Comte não nega o Direito Natural para reduzir o Direito ao que está escrito: ele informaria pesadamente o Direito com a sua Sociologia e também, nos dias atuais, com a Antropologia. Para uma exposição pormenorizada do Positivismo Jurídico, cf. Bobbio (2001).

(^16) Para uma distinção mais pormenorizada sobre o Positivismo em História, cf. Reis (2004).

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co, elaborando uma visão de conjunto dessa mes- ma realidade mas atendendo também a necessida- des psicológicas não apenas intelectuais, mas afetivas e por assim dizer psíquicas: essa visão de conjunto, essa síntese, é obra da filosofia^21. Des- sa forma, em Comte há claras, embora pouco co- nhecidas, distinções entre, de um lado, ciência e positividade e, por outro lado, ciência e filosofia: a positividade é maior que a ciência, embora ba- seie-se nela; a filosofia não se reduz à ciência e, embora baseie-se nela, tem seu âmbito de pesqui- sas irredutível ao da ciência.

De maneira semelhante, o Círculo de Viena ti- nha em alta conta a ciência e em péssima conta a teologia e a metafísica^22. Teologia e metafísica, não se referindo a questões de fato – empíricas, isto é, sujeitas a comprovação sensorial – eram percebidas como afirmações sem sentido. Por outro lado, sendo a ciência o estudo da realidade, as afirmações científicas tinham que ter uma es- trutura lógica a que se faria correspondência com a realidade^23. Considerando as obras de pensado-

res como Platão, Espinoza, Hegel etc., a filosofia era percebida como sinônima de metafísica; para ter algum sentido intrínseco, ela deveria mudar de objeto e de procedimento e referir-se à análise das afirmações científicas, o que resultou em análise lingüística e lógica das afirmações – ou, de ma- neira mais precisa: a filosofia foi reduzida à aná- lise lógica e lingüística das proposições científi- cas. Não é difícil perceber as diferenças entre Comte e o Círculo de Viena no que se refere à teologia e à metafísica – e, por extensão, também à filoso- fia. Não se trata de afirmar que há em Comte uma “reabilitação” delas; o que ocorre é que o pensa- dor francês reconhecia seu inevitável papel histó- rico para o ser humano, de modo que a simples e direta afirmação de que elas são sem sentido não cabe no sistema comtiano; muitas das obras e das idéias teológicas e metafísicas conservariam seu valor no caso de serem “traduzidas” para o espí- rito positivo^24. Afirma-se que à negação da teolo- gia e da metafísica corresponde a “morte da filo- sofia”: se deixarmos de lado a estreita definição de “filosofia” como sendo “metafísica” (ou tam- bém “teologia”), perceberemos que tanto no caso de Comte como no do Círculo de Viena isso é incorreto, embora possamos perfeitamente con- ceder que o papel da filosofia é bastante reduzido e empobrecido para o Círculo de Viena – mas não para Comte, que lhe concede uma grande digni- dade 25. No que se refere à afirmação da empiria, há que se diferenciar as perspectivas de cada qual,

(^21) A partir de uma perspectiva kantiana, os conceitos de “analítico” e “sintético” esposados pelo Círculo de Viena diferiam marcadamente dos de Comte: Comte considera que o sintético é aquilo que apresenta uma visão de conjun- to, ou seja, são as observações concretas e também a elabo- ração filosófica de conjunto; o analítico corresponde às perspectivas que estudam questões específicas dos fenô- menos (cf. COMTE, 1934); a perspectiva kantiana, por outro lado, considera que uma afirmação analítica é pura- mente intelectual (as verdades matemáticas, por exemplo), ao passo que as afirmações sintéticas são aquelas originári- as das observações concretas, ou seja, todas as que não são puramente originárias da inteligência (cf. SALMON, 1969, p. 131-135). (^22) Convém notarmos que o uso da expressão “Círculo de Viena” é um tanto arriscado: afinal, as perspectivas espo- sadas por seus membros não eram necessariamente con- cordantes entre si (chegando mesmo, em alguns casos, a serem contraditórias) – embora, por questões de propa- ganda intelectual e, daí, de um certo corporativismo, afir- massem alguns que havia uma unidade de pensamento en- tre eles (cf. AYER, 1959; HALLER, 1990, cap. 2; DUTRA, 2005, seções 2.2-2.3). (^23) Dessa preocupação, é importante notarmos, desenvol- veu-se um dos mais profícuos e importantes programas de pesquisas filosóficas e epistemológicas do século XX, in- vestigando-se as condições de correspondência entre enun- ciados e fatos, a estrutura de obtenção e de checagem dos fatos, a comprovação ou refutação de teorias científicas e assim por diante.

(^24) Dois exemplos marcantes disso: em primeiro lugar, Comte recomendava a leitura da obra do místico medieval alemão Tomás de Kempis, A imitação de Cristo , substitu- indo as referências teológicas (“deus”, “Cristo” etc.) por expressões positivas, isto é, humanas e humanistas. Um esforço nesse sentido foi realizado pelo psiquiatra paulista Paulo de Tarso Monte Serrat (1983). Em segundo lugar, Comte afirmava que a “plena racionalidade positiva” exige a incorporação da primeira etapa da teologia – o fetichismo

  • no Positivismo (COMTE, 1890, v. III passim ). Essa incorporação equivale ao reconhecimento de méritos lógi- cos, práticos e afetivos do fetichismo – o que chegou a receber o elogio expresso de Lévi-Strauss (2008, cap. VIII). (^25) Contraste-se a discussão acima com a seguinte afirma- ção de Giddens (1998, p. 183): “Quando Comte e Mach falaram da preservação da filosofia, tratava-se da ‘filosofia positiva’: aqui filosofia era o esclarecimento lógico da base da ciência”.

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novamente. Vimos há pouco que, para o Círculo de Viena, a correspondência das afirmações lin- güísticas com fatos empíricos era uma exigência; todavia, essa exigência revelou-se com o passar do tempo, com o avançar das discussões internas ao grupo, mais como um postulado a ser investi- gado que como uma profissão de fé. No caso de Comte, a necessidade da empiria consiste muito mais na exigência da verificação das afirmações teóricas que na postulação de “fatos puros” e na descoberta da dinâmica da realidade pela simples inspeção dessa realidade e/ou pelo acumular de informações isoladas. Nesse sentido, Comte era bastante explícito: sendo a ciência o conjunto de leis abstratas, o acúmulo de informações esparsas é qualquer coisa menos útil; mas, de maneira mais decisiva, o conhecimento da realidade consistin- do nas representações teóricas verificadas na rea- lidade, só é possível saber o que procurar na rea- lidade a partir de uma teoria prévia^26 , de tal sorte que o ser humano, para conhecer a realidade, cons- tantemente “oscila” entre a postulação teórica e a observação empírica. Afirmando que a diferença metodológica entre a teologia e a metafísica, de um lado, e a ciência, de outro lado, é a subordina- ção (e não supressão) da imaginação à observa- ção pela ciência, Comte considerava que a razão normal é sempre próxima ao bom senso comum e eqüidistante de dois vícios intelectuais opostos: o misticismo e o empirismo. O misticismo é a tendência a considerar que as teorias bastam por si sós e que os fatos empíricos são desnecessári- os; já o empirismo – que, para evitar ambigüida- des, poderíamos chamar por meio do anglicismo “empiricismo” – consiste em considerar que a mera coleção de fatos é suficiente para conhecer a realidade^27.

Um outro elemento que, segundos alguns, aproxima Comte e o Círculo de Viena é a idéia de uma ciência unificada. Mais uma vez, a referên- cia ideal para essa aproximação é Giddens (1998,

p. 181-182); mas, novamente, tal aproximação é superficial e baseada em uma apreciação ligeira e desinformada dos projetos teóricos específicos. A proposta do Círculo de Viena era efetivamente unificar as ciências por meio de um linguajar por assim dizer neutro (isto é, axiologicamente neu- tro), capaz de expressar pelos mesmos símbolos e pelas mesmas operações lógicas os mais dife- rentes fenômenos. (Não é difícil de entender, com isso, a justiça do nome “Empirismo Lógico” auto- atribuído ao grupo por alguns de seus membros.) Para Comte, a única possibilidade de “unificação” da ciência é por meio de um método geral adota- do pelas diversas ciências particulares – a já refe- rida subordinação da imaginação à observação – e por meio de teorias homogêneas, isto é, que pos- sam comunicar-se entre si, relevando as relações dos vários fenômenos (das diversas ciências) en- tre si: qualquer coisa além disso é, segundo as palavras de Comte, “abusiva” (COMTE, 1890, v. I passim ; v. II passim ). Aliás, as intromissões indevidas de teorias de uma ciência em outra re- cupera um termo usado anteriormente: cada ciên- cia tem sua dignidade própria, devendo preser- var-se tanto do misticismo (explicar um fenôme- no mais grosseiro por um mais nobre) quanto do materialismo (explicar um fenômeno mais nobre por um mais grosseiro) 28. A síntese filosófica, por outro lado, consiste na coordenação dos princi- pais resultados de cada ciência necessários para que o ser humano possua uma visão de mundo (cosmológica e humana) coerente, capaz de con- ferir harmonia mental a cada um e também de permitir que cada um aja em sociedade: em outras palavras, consiste em um humanismo forte. Retornemos a Giddens. Para argumentar que há uma relação entre Comte e o Círculo de Viena, Giddens apresenta Ernst Mach como mediador entre eles (GIDDENS, 1998, p. 181) e cinco ca- racterísticas comuns aos três: 1) “a reconstrução

(^26) Essa necessidade, aliás, é o que justifica o fato de a teologia e a metafísica serem o início necessário da marcha do espírito humano, pois que fornecem uma teoria atrativa o suficiente para manter a atenção humana concentrada em questões específicas por longos períodos de tempo – ainda que essas teorias revelem-se falsas e seus objetivos, inatin- gíveis. (^27) Bem notadas as coisas, o jogo entre teoria e empiria é uma das maiores conquistas do movimento epistemológico chamado, ironicamente, de “pós-positivismo”.

(^28) A palavra “misticismo” é utilizada ainda em uma tercei- ra oposição por Comte: agora entre misticismo e idiotismo, isto é, excesso de subjetividade e excesso de objetividade (ou seja, o “empiricismo” que comentamos há pouco). Sem dúvida alguma, Comte estabelece uma identidade profunda entre os três usos da palavra “misticismo” e seus três pares de oposições (materialismo, empiricismo e idiotismo). Convém notar, mais uma vez: esses extremos intelectuais e psicológicos constituem pólos de que a razão normal deve manter-se distante – e a razão normal baseia-se no senso comum, como um meio-termo entre a teoria e a observação, entre a subjetividade e a objetividade.

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Todavia, é necessário indicar que no capítulo I do volume IV da Politique , Comte distingue de maneira clara os “elementos sociais” (famílias, pátrias, humanidade e grupos intermediários) dos “agentes sociais”. Essa distinção já fora esboçada no capítulo III do volume II, dedicado às famílias como elementos sociológicos, mas no volume IV Comte é formal na distinção entre uns e outros. O que caracteriza os “elementos sociais” é o fato de serem homogêneos em relação às sociedades, ou melhor, serem sociedades em escalas diversas: é por esse motivo que as famílias são a unidade so- ciológica e não os indivíduos. Já os “agentes so- ciais” são os responsáveis pela existência objetiva das sociedades e, mais do que isso, pelas ações concretas; o que caracteriza esses “agentes” é o exercício das suas “vontades” (“ volontés ”), que, embora livres em si, são submetidas às diversas condições e fatalidades sociológicas, biológicas e cosmológicas. Da mesma forma que nas teorias sociológicas contemporâneas (em que se incluem as do próprio Giddens), esses “agentes” são os indivíduos, com a particularidade de que, para Comte, a ação desses indivíduos deve conjugar a liberdade individual (a que se associa, necessaria- mente, a responsabilidade) e a convergência, isto é, a busca do benefício coletivo, direto ou indire- to (cf. COMTE, 1890, v. IV, p. 30-40). Sem for- çar o argumento, e ao contrário do que afirma Giddens, é possível afirmar que em Comte há ao mesmo tempo a solução para uma forma de dualidade entre “agência” e "estrutura" e a defini- ção de um indivíduo que, capaz de agir autono- mamente, não se define pelo egoísmo, a partir dos modernos conceitos metafísicos (e, portanto, em última análise, teológicos) 31.

A última característica que Giddens atribui a Comte é a íntima vinculação entre a ciência, por um lado, e o desenvolvimento moral e material da sociedade. Essa é uma mais ou menos elegante de afirmar que Comte foi um “cientificista” e, acima de tudo, um tecnocrata: quanto mais ciência, me- lhor desenvolvida a sociedade e mais “moraliza- da” ela será; a “moralidade” consistirá em varia- das formas de intelectualismo, a serem racional- mente controladas. Vimos anteriormente como,

do ponto de vista político, Comte rejeitava o que chamamos atualmente de tecnocracia; contudo, importa aqui desfazer o nó que vincula ciência e desenvolvimento da moralidade. Para isso, cum- pre definir o que é a moralidade, ou melhor, a moral para Comte: é o conjunto de atributos “afetivos” dos seres humanos, voltados para o benefício in- dividual e, acima de tudo, coletivo. De modo mais específico, Comte determina dez “instintos” que originam as ações humanas, sete egoístas (volta- dos para a satisfação individual) e três altruístas (voltados para a colaboração e a satisfação dos outros); esses instintos são ordenados de acordo com sua força decrescente e sua dignidade cres- cente: instintos nutritivo, sexual, materno, destrutivo, construtivo, orgulho e vaidade (como egoístas), apego, veneração e bondade (como al- truístas) 32. Para Comte, todo ser humano é um indivíduo e um membro de uma sociedade; cada sociedade, por sua vez, estimula mais alguns ins- tintos e desenvolve menos (ou reprime) outros. O desenvolvimento moral, nesse quadro, consiste no fortalecimento dos instintos altruístas e na com- pressão (e nunca na extinção) dos instintos ego- ístas – ou, nos termos de Comte, no desenvolvi- mento da ternura (altruísmo) e da pureza (com- pressão do egoísmo). Do ponto de vista histórico, o relacionamento entre egoísmo e altruísmo variou. De uma pers- pectiva de longuíssima duração, o desenvolvimen- to material permite que a pressão das necessida- des individuais diminua e, portanto, que o altruís- mo seja desenvolvido. Sem dúvida alguma que a ciência, como conhecimento da realidade, tem um papel central nisso, mas o longo acumular de pro- dutos humanos (materiais, intelectuais, artísticos etc.) é o fator-chave aí, de modo que o desenvol- vimento moral é possível e até se realiza antes de a ciência constituir-se como tal. De acordo com a filosofia da história de Comte, o Ocidente apresenta uma inversão im-

(^32) Esses dez “instintos” somam-se a cinco funções inte- lectuais e a três da ação prática; esse conjunto de 18 fun- ções cerebrais constitui a “alma”, na teoria comtiana. Note- se que o móvel das ações são os instintos, que visam à sua satisfação; a inteligência (modernamente representada de maneira sintética pela ciência) ocupa um papel apenas ins- trumental aí. Não é difícil de perceber que essa teoria da alma – desenvolvida no longo capítulo III do volume I da Politique (COMTE, 1890, v. I, cap. III) – é uma teoria da agência humana.

(^31) A respeito da gênese teológico-metafísica do individua- lismo moderno e de seu caráter egoísta, cf. Laffitte (1897, lições 5-6) e Dumont (1992, cap. 2).

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portante. Após a Grécia ter desenvolvido a inte- ligência (a arte, a filosofia e a ciência), os roma- nos desenvolveram a atividade prática (subordi- nando a inteligência à ação e criando uma vasta civilização pacificada, ao redor do Mediterrâneo), faltava o desenvolvimento da moralidade – o que se realizou na Idade Média, católico-feudal, mais por meio dos hábitos cavalheirescos que por meio do dogma católico. Independentemente das rela- ções estabelecidas entre egoísmo e altruísmo nesse período, é fácil perceber como não houve relação direta entre desenvolvimento científico e desenvolvimento moral no período. Aliás, para Comte – e bem ao contrário do que afirma Giddens –, o período posterior à Idade Média (chamado por Comte de “modernidade”) con- siste em um desenvolvimento contínuo da inteli- gência em reação à moralidade católica; consi- derando que, para Comte, a moral católica é ego- ísta, até certo ponto faz sentido essa reação, mas o combate ao catolicismo tornou-se combate generalizado à moral como um todo. Além disso, inúmeras teorias científicas afirmam o materia- lismo, que é a subordinação de fenômenos mais nobres aos mais grosseiros: além de negarem as particularidades do ser humano (em termos so- ciais e morais), há teóricos que afirmam o cará- ter intrinsecamente egoísta do homem, negando o altruísmo (Hobbes é um bom exemplo, mas também os “economistas políticos”). Dessa for- ma, não há relação causal entre “desenvolvimen- to da ciência” e “desenvolvimento moral” da hu- manidade, no pensamento comtiano.

Como se vê, portanto, a argumentação de Giddens é frágil e enviesada; baseado em uma lei- tura superficial de apenas uma obra de Comte (a Philosophie ), o conjunto da argumentação de Giddens cria um Augusto Comte cientificista e tecnocrático; caso considerasse com seriedade as outras obras de Comte (em particular, a Politique ), seria difícil sustentar tais opiniões: é essa a gran- de virtude dos autores que recuperam Comte, de que trataremos em seguida^33.

IV. O RECUPERAR DE COMTE

Em um artigo que visa a tratar de obras recen- tes sobre Augusto Comte, talvez tenha causado estranheza as longas observações feitas acima. Esse procedimento justifica-se pelo seguinte mo- tivo: enquanto as obras de que trataremos na se- qüência apresentam esse pensamento social (em todo ou em partes), sem considerar as críticas anteriores – mas sabendo que elas existem –, as críticas correntes teriam que ser, em algum mo- mento, enfrentadas. Além disso, o valor da “recu- peração” aumenta quando se tem em mente a en- vergadura da “perda”. Compreender o pensamento de Augusto Comte em si mesmo e em sua inteireza (ainda que sem tratar de todo ele), deixando de lado o rótulo fácil de “positivista”, conforme o senso comum aca- dêmico contemporâneo estabelece, e perceber os elementos que o fundador do Positivismo apre- senta para as questões atuais – em outras pala- vras, não incorrer nos diversos problemas teóri- cos e metodológicos discutidos até aqui: esses são os elementos que unem os livros de Juliette Grange (1996), Sérgio Tiski (2007) e Laurent Fédi (2008). A procedência nacional dessas pesquisas é signi- ficativa: a maior parte delas é francesa (Grange e Fédi), enquanto poucos são brasileiros (Tiski); embora não tratemos de nenhum anglófono aqui, o fato é que autores de língua inglesa ocupam uma posição intermediária^34. Evidentemente, esses três livros não esgotam a fortuna crítica relativa a Comte; da segunda metade do século XX para cá poderíamos também indicar diversos pesquisado- res que consideraram o “Positivismo” sem a ca- mada crítica apontada antes: Kremer-Marietti (1980), Aron (1999), Arnaud (1969), Bastide (1990), Lacroix (2003) e, no Brasil, Soares (1999), Ribeiro Jr. (2006) e Trindade (2007). O que dis- tingue dos demais os três livros que nos interes- sam aqui, além das datas de publicação mais re- centes, é a consciência das críticas com que lida- mos há pouco; é tendo essas críticas como pano de fundo que os autores de que nos ocuparemos

(^33) Embora já tenhamos indicado, na primeira seção deste artigo, que Giddens não é o único autor a criticar de maneira sistemática Augusto Comte, convém realçar aqui tal fato; as críticas elaboradas pela Escola de Frankfurt, em particu- lar as surgidas durante e após a “polêmica do Positivismo na Sociologia alemã”, exigem uma análise toda própria.

(^34) Podemos incluir no rol anglófono o pequeno mas inte- ressante livro de Mike Gane (2006), que historia as várias formulações da “lei dos três estados”, e as muitas pesqui- sas de Mary Pickering, responsável por uma alentada bio- grafia intelectual de Comte, cujo volume segundo está pres- tes a ser lançada pela editora de Cambridge, embora o volu- me primeiro seja de 1993.

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mado em sentido geral), para indicar que, para Comte, essa historicidade refere-se, mais que a um caráter temporário (como em certo sentido insis- tiu, por exemplo, Weber, em A ciência como voca- ção (WEBER, 1977)), às vinculações que o co- nhecimento tem com as sociedades que o produz, assim como à necessidade de acumular observa- ções, teorias e perspectivas^35.

Mas o mais interessante no livro de Grange é que a discussão epistemológica não se confina em si mesma, mas é apresentada – de acordo com o espírito da obra comtiana – como condição inte- lectual para considerações sociológicas e políti- cas mais amplas: o que chamamos hoje de “Epistemologia” e de “Filosofia das Ciências (So- ciais)” integra um exame mais geral da realidade humana, com vistas à intervenção nessa mesma realidade. Assim, não apenas esse gênero de dis- cussão ocupa apenas entre um quarto e um terço do livro, como ele subordina-se sempre às consi- derações sociais. Talvez afirmar a “subordinação às considerações sociais” pareça óbvio para um cientista social, mas é necessário ter em mente o senso comum a respeito de Comte ou do “Positivismo”, em que ambos são percebidos ape- nas em termos epistemológicos e estritamente “cientifistas”.

Dessa forma, a autora tem em mente as idéias profundas da Sociologia e da política comtianas, mostrando o sentido da “lei dos três estados” como sendo, mais que propor a “morte de deus”, a afir- mação de uma sociedade plenamente humana e caracterizada pelo conhecimento científico e imanente da realidade, além de pacífica e globalizada ( idem , p. 8-41, 421-423 et passim )^36. A partir des- sa perspectiva, outros aspectos são comentados, alguns deles com bastante insistência: a incorpora- ção do fetichismo no Positivismo, que a autora de- nomina de “neofetichismo” ( idem , p. 129-136, 357-

370), as relações entre indivíduo e sociedade ( idem , p. 267-276), a regulação prática (isto é, política) da sociedade ( idem , parte II, cap. V-VI). A conclu- são geral da autora é que, embora vários aspectos epistemológicos, científicos, sociológicos e políti- cos de Comte sejam inevitavelmente datados e embora seu estilo dificulte, sem dúvida, a compre- ensão, o seu pensamento, isto é, a inspiração pro- funda e as questões que ele formulou são atuais, são as nossas ( idem , p. 19-21, 421-423 et passim ). O livro de Fédi (2008) é, assim como o de Grange, uma apresentação didática do pensamen- to de Comte e igualmente realiza uma exposição das idéias comtianas preocupando-se em indicar sua “atualidade”. Com pouco menos de 200 pági- nas, a edição original é do ano 2000 e segue um roteiro até certo ponto tradicional: ciências e filo- sofia das ciências; sociedade e Sociologia; reli- gião e política. Sua brevidade não diminui a quali- dade da apresentação, pois, embora o autor cite o original, está mais preocupado em compreender e expor a lógica subjacente do pensamento comtiano (em particular daquela mais madura, isto é, do Système de politique positive e da Synthèse subjective ) que em apresentar passo a passo a constituição desse pensamento. Isso confere gran- de agilidade à narrativa, que pode ser feita com facilidade em um ou dois dias de leitura contínua. Fédi discute com clareza várias das questões que comentamos nas seções anteriores; ao mes- mo tempo em que reconstitui as características da obra comtiana, articula-as com questões mais contemporâneas: a importância da afetividade e da subjetividade para o ser humano em geral e para a prática científica em particular (aí incluída a incorporação do fetichismo na positividade) ( idem , p. 35-87, 145-151); o relativismo especí- fico ao espírito positivo ( idem , p. 74-78); a deontologia pacifista da sociedade moderna ( idem , p. 137-144); a inclusão social ( idem , p. 100-104); a separação entre Igreja e Estado e, por extensão, a crítica ao que chamaríamos hoje de “totalitaris- mo” e de “tecnocracia” ( idem , p. 172-175). Francamente simpáticos a Comte, tanto Grange quanto Fédi preocupam-se mais em resgatar um pensamento que consideram instigante que em fa- zer-lhe a crítica. É interessante notar que uma qua- lidade de ambos os livros é que esse resgate, essa “apresentação geral” do pensamento comtiano não é feita às custas da fluência do texto; em outras palavras, não se tratam de apresentações por assim

(^35) Nesse sentido, Comte abarca as idéias de Thomas Kuhn, sem cair nos problemas criados pelo conceito de “paradigma” (em particular, a incomensurabilidade mútua dos paradigmas). (^36) Considerando dessa perspectiva o empreendimento científico, a criação da sétima ciência por Comte – a “Mo- ral” – que, como outros elementos do seu pensamento, é tão facilmente desdenhável – assume um aspecto bastante atual, na forma da regulação social e ética das pesquisas científica

AUGUSTO COMTE E O “POSITIVISMO” REDESCOBERTOS

dizer burocráticas, mas de exposições vivas, que, por sua própria forma, tornam mais fácil a respos- ta à necessária pergunta a respeito da “atualidade” do pensamento de Comte. Grange considera que o projeto religioso de Comte, em si, é impossível; mas, por outro lado, as críticas que Comte fez ao individualismo, ao racionalismo, ao desregramento científico, ao absolutismo filosófico, assim como a defesa da liberdade de pensamento e de expres- são, da separação entre Igreja e Estado e do prima- do do “social” em relação ao “econômico” são ele- mentos permanentes (GRANGE, 1996, p. 421- 422); mais do que isso, logo no início do livro ela afirma que “[...] em grande medida, vivemos em um mundo quase inteiramente previsto por Comte” ( idem , p. 19). Fédi, da sua parte, considera que a obra de Comte deve ser lida “[...] não na esperança irrisória de reabilitar Comte ou de impor dogmaticamente suas soluções, mas simplesmente tendo em vista levar suas reflexões à discussão, com a convicção de que o interesse dessa filosofia pode se renovar à medida que surjam novos pro- blemas” (FÉDI, 2008, p. 168)^37.

Por fim, o livro do brasileiro Sérgio Tiski (2006) é mais específico, tratando de uma questão cen- tral em Comte: a religião. Esse tema é importante seja a partir do enunciado comtiano da “lei dos três estados” (segundo a qual as concepções hu- manas passam por três fases sucessivas – teoló- gica, metafísica e positiva), seja porque a fase fi- nal de Comte caracterizou-se pela fundação da “Religião da Humanidade”, seja porque são várias as referências à contradição entre a lei dos três estados e a Religião da Humanidade.

O procedimento que Tiski adotou foi adequa- do para sua proposta: verificar de que maneira, ao longo de sua carreira, Comte considerou o con- ceito de (e, portanto, a palavra) “religião”, bem como os conceitos associados de “teologia” e “deus”. Examinando do ponto de vista cronológi- co a obra comtiana, Tiski dividiu-a em quatro fa- ses, que passam de uma adesão à fé católica (1798-

  1. à emancipação com respeito à teologia (1817-1848) até a criação da Religião da Humani- dade (1848-1857), de caráter humano; entre o

catolicismo e a emancipação, Tiski identifica uma fase intermediária, de oscilação entre a emancipa- ção humanista com o uso de expressões teológi- cas (1812-1817). Ao investigar tanto os livros quanto a extensa correspondência de Augusto Comte (em oito volumes), o autor identificou cada uma das vezes em que o francês usou as expres- sões indicadas acima, determinando o sentido ado- tado; da mesma forma, há grande quantidade de citações diretas de Comte, o que enriquece sobre- maneira o texto. A idéia de religião em Comte, de fato, é cen- tral. Como demonstra Tiski, enquanto em um pri- meiro momento Comte identificava religião e teo- logia, isto é, considerava que a religião é a crença no sobrenatural, em vontades externas ao ser hu- mano que comandariam arbitrária e absolutamen- te a realidade (e a que se oporia a ciência, de cará- ter relativo), em sua fase mais madura Comte per- cebia na religião uma forma de unidade humana. Essa unidade seria ao mesmo tempo “moral” (de caráter individual, em que ocorreria a harmonia afetiva, intelectual e prática) e coletiva (em que os indivíduos e os grupos sociais relacionar-se-iam de maneira construtiva e pacífica) e de que a teo- logia teria sido apenas uma forma de realização, temporária e transitória entre o fetichismo (está- gio inicial do ser humano) e o positivismo (está- gio final). Assim, a religião são é a prática e a instituição sociais que denotam a totalidade da existência humana, no pensamento comtiano. As várias acepções que a “religião” teve no pensamento de Comte são um bom índice das mudanças por que esse pensamento atravessou. Sem esposarmos a tese da ruptura entre essas fases

  • em particular entre a Philosophie e a Politique –, é possível identificar uma inflexão de um certo “cientificismo” – que, talvez, seja melhor qualifi- cado de “intelectualismo” – para um subjetivismo afetivo baseado no conhecimento científico. Ao realizar tal investigação, Sérgio Tiski é exaustivo e minucioso. Embora isso torne a leitu- ra um tanto cansativa, o resultado é satisfatório, pois tornam-se claros vários elementos: a conti- nuidade na carreira de Comte; as relações teóri- cas, epistemológicas e políticas da “religião”, da teologia e da “positividade”; a possibilidade de um a religião humana e humanista. Há alguns aspectos problemáticos, todavia, no livro de Tiski; esses problemas não comprome- tem a investigação realizada, mas produzem re-

(^37) Convém notar que Fédi tem participado, juntamente com Catherine Kintzler e outros, dos vivos debates recen- tes sobre a laicidade na França, citando Comte como uma das suas referências. Cf. Fédi (2007) e Kintzler (2008).