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14. Etnicidade: da cultura residual mas irredutível! Nos redutos tinha mistério. Depoimento Lemos, apud Duglas T. Monteiro É assim ainda que as palavras servem para expressar ideias novas sem que sua textura se altere. Émile Durkheim Suponho que me chamaram a esta mesa-redonda, composta também por um psicólogo experimental, um lógico e um linguista, para falar de como a relação entre linguagem e pensamento é percebida pela antro- pologia. Diante disso, há que estabelecer dois pontos preliminares, ou melhor, dois deslocamentos. O primeiro é que o termo “linguagem” é, nessa disciplina, algo ge- ralmente tomado em seu sentido mais lato: formas institucionais tanto quanto crenças, práticas e valores são linguagem, são representações E uma relação central em antropologia é a que articula as representações com a organização da vida material e das relações de poder em cada sociedade. É dessa relação, portanto, que eu poderia aqui falar. Isso leva ao segundo ponto preliminar: pois tal relação é precisa- mente a arena onde se afrontam as várias escolas e tendências da an- tropologia, oscilando e hesitando entre os imperativos da razão prática |. Este artigo nasceu de um debate oral mas sobretudo debate político, a pretexto da mesa- redonda Linguagem e Pensamento, na xxx Reunião da sapo de 1978. A época era pós Ato Institucional 5 e pós luta armada. A identificação dos verdadeiros portadores de uma mu- dança institucional era assunto candente, A. questão era separar o joio do trio, a ideologia equivocada da consciência de classe correta. A respeito da questão indígena, o governo e os pensadores marxistas pareciam na época concordar. Ambos achavam irrelevantes os csbo- gos de protesto dos índios e dos que os apoiavam. Ambos se enganavam. É nesse contexto polírico que o artigo se insere. Ele tem o propósito, antes de tudo, de dis- curir a legitimidade do movimento indígena. Mas soma-se a essa agenda a retomada de minha própria posição sobre emicidade, corsigindo o meu artigo anterios [eap. 13 deste volume]. Em particulas, é neste artigo que, pela primeira vez, falo da cultura como uma “categoria nativa”. Agradeço a Mário Bick e a Mariano Carneiro da Cunha seus comentários à versão apre- sentada deste texto, publicado mais tarde na Revista de Cultura e Política, Cedec, v. 1, n.1, São Paulo, 1979. Esnicidade: da cultura residual mas irtedusível 235 — uma sociedade e seus membros têm de sobreviver — e os da razão sim bólica — uma sociedade e seus membros sobrevivem de uma maneira culturalmente marcada em um mundo significante. Não vou enumerar. as várias versões dessas duas correntes — um livro de Sahlins (1976) fá-lo admiravelmente, Falarei antes de um assunto sobre o qual tenho trabalhado, pois a sua história enquanto objeto de reflexão reproduz as descobertas e as hesitações da antropologia, estratégico, portanto, para a discussão da questão da cultura. Tomemos a etnicidade. Uma maneira de colocar a questão é indagar-se sobre a substân- cia da etnicidade, substância que já foi pensada em termos biológicos, quando se falava de raças e de sua heterogeneidade. A noção de cultura veio substituir-se à de raça, dentro de um movimento que se quis ge- neroso — e certamente o foi — mas que acabou transferindo à noção de cultura reificação semelhante à da noção de raça. Mas essa não é agora a questão: como cultura era adquirida, inculcada e não biologicamente dada, também podia ser perdida. Inventou-se o conceito de aculturação e com ele foi possível pensar — para gáudio de alguns, como os enge- nheiros sociais, e para pesar de outros, entre eles vários antropólogos — na perda da diversidade cultural e em cadinhos de raças e culturas. Não se trata só do Brasil, é claro. Esse foi um problema de quan- tos países se viram diante da tarefa de constituir uma nacionalidade. Na África das lutas de independência e pós-colonial, a etnicidade era vista como um empecilho à constituição de uma nação moderna, e acusava-se o chamado “tribalismo” de dificultar sua construção. Esse argumento ainda é encontradiço e supõe uma ligação arraigada de cada homem com sua cultura materna. A cultura, como o complexo de Édipo e outros peca- dos originais, teria de ser redimida. E acreditava-se na benéfica influência das cidades, onde a vida seria regida por laços principalmente contratuais. Até que se descobriu que não só o chamado “tribalismo” não desaparecia nas cidades modernas africanas, como, ao contrário, ele se exacerbava. Em outras palavras, longe de proceder em Roma como os romanos, nunca se era tão apegado às tradições culturais quanto na diáspora. E, olhando-se à volta, começou-se a perceber que a etnicidade vi- gorava nos quatro cantos do mundo, e que era a hidra do século xx. Em Nova York, que se julgava ser um cadinho de raças, grande parte das atividades de um cidadão comum processava-se dentro de suas comu- nidades étnicas (Glazer & Moynihan 1963), inclusive as pensadas como mais racionais: o crédito e o comércio utilizavam amplamente esses 236 ETNICIDADE, INDIANIDADE E POLÍTICA canais. A máfia seria apenas a mais notória dessas grandes empresas construídas sobre a etnicidade. Na Irlanda, França, Bélgica, no Canadá, na Espanha, havia movimentos separatistas de toda sorte. E na União Soviética, a questão das nacionalidades sempre voltava à ordem do dia. Todos esses dados levaram à redescoberta do que Max Weber havia escrito há bastante tempo: de que as comunidades étnicas podiam ser for-! mas de organizações eficientes para resistência ou conquista de espaços, em suma, que eram formas de organização política. Descobriu-se que a et-. nicidade podia ser uma linguagem. Ou melhor, em um primeiro momento, que podia ser uma retórica. Foi o momento em que se salientou o caráter manipulativo da etnicidade. Acho que deveria passar, a esta altura, resolu- tamente para o tempo presente, pois são essas tendências muito atuais. Retomando: se, como vimos, não se trata em Roma de falar como os romanos, trata-se, no entanto, de falar com os romanos. O que sig- nifica que a etnicidade é linguagem não simplesmente no sentido de re- meter a algo fora dela, mas no de permitir a comunicação. Pois como forma de organização política, ela só existe em um meio mais amplo (daí, aliás, seu exacerbamento em situações de contato mais íntimo com outros grupos), e é esse meio mais amplo que fornece os quadros e as categorias dessa linguagem. A cultura original de um grupo étnico, na diáspora ou em situações di intenso contato, não se perde ou se funde simplesmente, mas adquire uma nova função, essencial e que se acresce às outras, enquanto se torna cultura de contraste: esse novo princípio que a subtende, a do contraste, determina vários processos. A cultura tende ao mesmo tempo a se acentuar, tornando-se mais visível, e a se sim- plificar e enrijecer, reduzindo-se a um número menor de traços que se itornam diacríticos. A questão da língua é elucidativa: a língua de um povo é um sistema simbólico que organiza sua percepção do mundo, e é também um diferenciador por excelência: não é à toa que os movimen- tos separatistas enfatizam dialetos e os governos nacionais combatem a polilinguismo dentro de suas fronteiras. No entanto, a língua é difícil de conservar na diáspora por muitas gerações, e quando se o consegue, ela perde sua plasticidade e se petrífica, tornando-se por assim dizer uma língua fóssil, testemunha de estados anteriores. Ora, quando não se consegue conservar a língua, constrói-se muitas vezes a distinção sobre simples elementos de vocabulário, usados sobre uma sintaxe dada pela língua dominante. Quando os negros do Cafundó, estudados por Car- los Vogt, Peter Fry e Maurizio Gnerre, usam termos bantos sobre uma Etnicidade: do cultura residual mas irredutível 237 d| desempenhadas pela etnicidade. Se observarmos o argumento, veremos que as propriedades que evidenciamos no fenômeno decorrem, em um primeiro passo, das “necessidades” de estabelecer fronteiras claras para grupos que “funcionam” como grupos políticos e/ou econômicos. Ora, | com tais determinações, dois níveis pelo menos permanecem indeter= | minados: o de quais traços diacríticos serão selecionados e, mais ampla- | mente, a razão de se escolher precisamente a etnicidade como veículo para tais conteúdos. Ambos problemas de formas, portanto, resíduos inevitáveis em qualquer explicação funcional. Tratemo-los por ordem. Vimos que a questão de saber quais os traços diacríticos que serão realçados para marcar distinções depende das categorias comparáveis disponíveis na sociedade mais ampla, com as quais poderão se contrapor e organizar em sistema. Poderão ser a religião, poderão ser roupas características, línguas ou dialetos, ou mui tas outras coisas.” Mas essa dependência que limita as opções possíveis não é ainda uma determinação positiva. E tivemos de recorrer então à ideia de um “acervo cultural” do qual se retiram esses traços diacríticos, eventualmente reconstruindo-os. Novo resíduo, esse recurso à cultura, resíduo que é o quinhão de uma abordagem estruturalista, levada a in- vocar uma inércia, uma permanência das formas culturais.* Se tais formas culturais situam-se dentro de um sistema estru / turado de significantes, este sistema, embora confira seu sentido ao; | elementos que o compõem, por meio de oposições, correlações etc), não determina, no entanto, inteiramente esses elementos. Ou seja, ao considerarmos essa dinâmica cultural, podemos parafrasear o que Lévi- Strauss objetou aos funcionalistas: os traços culturais selecionados por um grupo ou fração de uma sociedade não são arbitrários, embora se- jam, no entanto, imprevisíveis. Resignemo-nos epistemologicamente e alegremo-nos com as surpresas que essa imponderabilidade nos reserva: a de vermos, por exemplo, instituições como a Igreja ou sociedades de amigos de bairro tomarem significações e alcance inesperados. O segundo problema, o do uso da etnicidade, levanta muito mais poeira, na medida em que toca diretamente na questão da adequação 3. Poderão ser também vários de s traços ao mesmo tempo, e novarnente uma perspectiva funcional não dá conta da redundância que então se introduz. Ei É o que Lévi-Strauss evoca sob o nebuloso nome de “ “função secundária”, que se manteria “apenas devido à resistência do grupo a renunciar a um hábito” (Cf. Lévi-Strauss [1958] 2008: 26). 240 ETNICIDADE, INDIANIDADE E POLÍTIC “natural”, da identidade étnica como autoconsciência de grupos. E portanto su- bentende juízos de valor e questões de legitimação, tanto de tais orga- nizações quanto de estudos sobre elas. Há quem tente nos convencer de que a questão “racial” se dissolve na de classe, e nessa negação da especificidade da questão étnica conjugam-se às vezes os defensores da democracia racial com os da democracia tout couri, expulsando, por exemplo, os negros como uma falsa categoria. Os índios, pelo contrá- rio, no momento, são uma categoria legítima. Porém, escreve Cardoso de Oliveira (1976), sua identidade étnica, como a de qu Gratis grupo, é uma ideologia. Seja, mas em que sentido” No sentido muito lato de um modelo mental usado para interpretar « organizar o mundo, certamente o é. Mas essa caracterização abrange praticamente qualquer conjunto de ideias, e não é portanto operató- ria. Mais frutífera, à primeira vista, parece ser a consideração das im- plicações usuais da noção de ideologia. Seu atributo primeiro, ligado à questão da reprodução da sociedade, talvez seja a legitimação, o tornar dado na ordem das coisas, o que é socialmente arquitetado. Nesses termos, a etnicidade parece à primeira vista cumprir adequada- mente seu papel. Já foi visto — e Dumont expressa-o muito bem — que o racismo do século x1x permitia operar a equivalência entre diferenças dadas na biologia, na raça, e desigualdades dadas na sociedade. Nesse processo, as desigualdades acabavam inseridas na natureza. A tradição, aliás, remonta a Aristóteles, que afirmava que os bárbaros tinham nas- cido para serem escravos, cuja função estava inscrita em sua natureza. O evolucionismo permitiu resultados análogos na medida em que a desi- gualdade era agora reificada sob a espécie de uma diferença temporal: os dominantes — irmãos mais velhos — dominavam os seus irmãos mais novos. Como isso operou, por exemplo, na intelligentsia brasileira foi bem comentado por Skidmore, em seu livro Preto no branco. Isso é legitimação em seu sentido clássico. Supõe aliás, em geral, a no- ção de que a legitimação é algo aposto àquilo que deve legitimar, sobrepon- do-se a uma realidade já dada de antemão. É verdade que esse pressuposto pode ser abandonado, como o faz Godelier, quando afirma que “as reali- dades ideacionais aparecem não como efeitos no pensamento de relações sociais, mas como um de seus componentes internos necessários, e como condição tanto de sua formação quanto de sua reprodução” (1977: 35-37). O verdadeiro problema, no entanto, não me parece estar aí. A noção da legitimação supõe que, numa sociedade de classes, as ideias Einicidade: da cultura residual mas irredutível 241 legitimadoras beneficiem interesses de classe. Isso pode dar conta de culturas de resistência que enfatizam diferenças culturais como formas de protesto. Pode dar conta, como vimos, também do racismo: as des sigualdades dadas no sistema são convertidas em diferenças dadas na natureza. Mas que fazer com o processo que, inversamente, a partir de diferenças dadas na cultura introduz desigualdades no sistema? Seria o caso, por exemplo, das etnias da União Soviética, e parece-me signifi- cativo dessa dificuldade que um antropólogo soviético (Bromley 1973, apud Dunn 1975-76) tenha apelado para uma noção extremamente rei= ficada de cultura, introduzindo o conceito de ethnos, fundado em última análise na existência de uma cultura comum. Critério insuficiente esse da legitimação, portanto, para se poder apontar a etnicidade como ideologia. Opor também o caráter sistemá- tico e organizado da ideologia às representações, que seriam fragmentá- rias, é algo que dificilmente antropólogos poderiam hoje sustentar. Então? Em que sentido etnicidade seria ideologia? No sentido lato de fazer passar o outro pelo mesmo, certamente o é, como já vimos acima. Mas vejam que isso não diz qual dos dois, o outro ou o mesmo, é o mais verdadeiro: seria uma simples questão de anterioridade? O significado original seria real enquanto o novo seria errôneo, ilusório? Ou melhor e num outro plano, ambos os significados seriam ilusórios, enquanto se referem a relações sociais baseadas na etnicidade, que dissi- mulariam a verdadeira articulação que as motiva? Isso introduz o outro critério habitual para se desmascararem ideologias, o seu caráter ilu- sório, e com ele a espinhosa questão de saber para quem é ilusório. A etnicidade é então apontada, dependendo de onde se manifesta, se em sociedade socialista ou em sociedade capitalista, seja como uma sobre- vivência arcaica, seja como um modo inadequado, pré-político, de rei- vindicações. Em ambos os casos, ideia fora de seu tempo, seja por ultra- passá-lo, enquanto vestígio de idades revolutas, seja por não alcançá-lo, prefiguração de consciências mais ajustadas. Não que não se reconheçam formas distintas de organização que possam não ser falsas, não ser “ilusórias”: Godelier, por exemplo, se- guindo Marx — que admite princípios específicos na organização in- diana, fundada no religioso, ou na grega, fundada no político —, tenta levantar essa dificuldade, mostrando que certas ideias parecem ser mais verdadeiras do que outras. Ele afirma que são dominantes e aparecem, portanto, como mais verdadeiras, em uma sociedade, as relações sociais 242 EYNICIDADE, INDIANIDADI E POLÍTICA que funcionam como relações de produção (1977: 53). Assim, por exem- plo, se o político é dominante na polis grega, não é porque os problemas de status pessoal e de poder se colocassem mais fortemente lá do que alhures, mas porque as relações políticas funcionavam em Atenas como relações de produção (id. ibid.: 29, 56). e Esse é, precisamente como vimos, outro aspecto da etnicidade: Ela pode, em muitos casos, ser um poderoso veículo organizatório: como o clientelismo ao qual está quase sempre associada, ela pode ser a ar- mação interna das relações de produção. Tentei mostrar, por exemplo, em outro lugar (e nas pegadas da análise de Abner Cohen), que os ex- escravos nagôs que voltaram do Brasil para sua terra de origem usaram suas várias identidades de brasileiros e de iorubás para organizarem redes comerciais com o interior e se assegurarem o monopólio do co- mércio com a Bahia. Nesse caso, a identidade assumida de “brasileiro” parece totalmente fictícia, construída, destinada apenas a garantir os li- mites de um grupo privilegiado em seu acesso a recursos econômicos e, se seguirmos o argumento de Godelier, apresentando-se à consciência como uma categoria “verdadeira”, na medida que constituía o princípio organizatório das relações de produção. ; Resta porém um problema. A tese de Godelier, lo ensálago eliquotia referi, é que, em sociedades como a polis grega, na Índia e na Austrália respectivamente, o político, o religioso, o parentesco fossem dominan- tes porque assumiam as funções de armar, de Orpartizar as relações de produção. Vá lá, nos dirão, em sociedades pré-capitalistas, em que o econômico se acha imbricado em outras instituições e práticas. Mas em sociedades capitalistas ou socialistas, com o domínio do econômico se- parado em instituições claras e delineadas, como explicar fenômenos de etnicidade e nacionalismos, a não ser vendo neles retrocessos ou mano- bras diversionistas destinadas a ofuscar a consciência de classe? Voltaríamos então à noção tão pouco fecunda da ideologia como falsa consciência? Na verdade, é o próprio uso do conceito, se conceito houver, de ideologia para pensar a etnicidade que me parece infecundo. Não que deva ser abandonado, mas talvez, como sugere Eunice Durham, deva ser usado mais estritamente. Tal como vinha sendo invocada, a palavra ideologia assemelhava-se antes aos sinais diacríticos a que nos referíamos: mais do que um conceito, era um sinal de filiação teórica. Talvez então, e aí voltamos por caminhos tortuosos ao tema inicial — “linguagem e pensamento” — devamos chegar, a respeito da cultura, a Esnicidade: da cultura residual mas irredurível 243