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a m. 2007;17(1):136-145 & PESQUISA ORIGINAL RESEARCH ORIGINAL Rev Bras Crescimento Desenvol PnoP. En a soide à Bocuençãão O MÉDICO HIGIENISTA NA ESCOLA: AS ORIGENS HISTÓRICAS DA MEDICALIZAÇÃO DO FRACASSO ESCOLAR" + THE HIGIENIST DOCTOR IN THE SCHOOL: HISTORICAL ORIGINS OF THE MEDICALIZATION OF SCHOOL FAILURE Patrícia Carla Silva do Vale Zucoloto"” *— Zucoloto PCSd, Patto MHS. O médico higienista na escola: as origens históricas da medicalização do fracasso escolar. Rev Bras Crescimento Desenvolv Hum 2007 17(1):136-145. Resumo: A presente pesquisa teve como objeto investigar a história das explicações das difi- entades de sroliriaãa crianças dis clsste popu ara em especial a versão que patologiza o fenômeno, através da análise de conteúdo do iscurso médico sobre as concepções de higiene pública e de higiene escolar e do papel do médico na escola nas teses inaugurais da Faculdade de Medicina da Bahia na segunda metade do século XIX. Foram submetidas a análise de conteúdo cinco teses que traziam à questão da higiene das escolas em seus títulos e compreendiam o período histórico de 1869 a 1898, ou seja, O período correspondente à passagem do Império para a República. Os resultados dessa análise foram objeto de uma análise contextual, ou seja, foi realizada a sua inserção no momento histórico em que foram produzidos, tendo em vista à interpretação do conteúdo levantado. Verificou-se que as origens históricas da patologização dos problemas de escolarização das crianças das classes populares estão na defesa da importância da medicina para à escola, importância da presença médica nesta instituição e na concepção preconceituosa de povo brasileiro, central nas teorias adotadas pelos médicos. Concluiu-se que nas primeiras teses médicas sobre instituições escolares estão presentes prescrições que vão se | : concretizar pouco mais tarde na história da educação brasileira, como é o caso da inspeção médica na escola. Trata-se da constituição de um discurso médico sobre a educação que vai ser aprofundado e concretizado em teorias e ações ao longo do século XX. Palavras-chave: Saúde escolar. Higiene escolar. Psicologia escolar. História da psicologia. Fracasso escolar. Medicalização. Patologização. INTROD: UÇÃO dificuldades de escolarização das crianças das | classes populares, têm sua origem na baixa | O presente artigo se refere à pesquisa acer- qualidade de ensino da escola pública brasileira, | ca das origens históricas do discurso da me- no descompromisso do Estado com a educação | dicalização do fracasso escolar das crianças das do povo, nas políticas públicas educacionais que | classes populares. são feitas de maneira autoritária e desrespeitam | Para vários pesquisadores no campo da professores € alunos, no preconceito existente educação !*, o fracasso escolar, que se refere às para com O aluno pobre e sua família, enfim na O | * Artigo bascado em parte da dissertação de mestrado da Profa. Ms Patrícia Carla Silva do Vale Zucoloto realizada | sob orientação da Profa. Dra. Maria Helena Souza Patto, apresentada ao Programa de Pós-graduação em Psicologia Escolar e do Desenvolvimento Humano do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo. | * Profa. Substituta do Departamento de Psicologia da Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade ] Federal da Bahia (UFBA). Rua Cael, 113. Apto. 102. Acupe de Brotas. CEP: 40290-490. Salvador -BA. E-mail: | patriciavzQig.com.br. 136 Patrícia Carla Silva do Vale Zucoloto reprodução no cotidiano da escola dos conflitos inerentes à sociedade de classes, através de práticas e relações escolares que produzem as di- ficuldades de escolarização. Tendo como pressuposto que a escola é uma instituição social que reproduz o conflito de classes da sociedade que a inclui e, desse modo, a compreensão das relações escola-sociedade de classes é o pano de fundo que permite um outro entendimento do que se passa nas escolas públicas de ensino fúndamental: a sua dimensão política”. Parte-se, portanto, de uma postura crítica à psicologia que desconhece a realidade escolar e atribui a causa dos problemas de escolarização às crianças e suas famílias, explicando o fracasso escolar como consequência de deficiências biopsicológicas individuais. Rev Bras Crescimento Desenvolv Hum. 2007;17(1):136-145 A história das explicações do fracasso l escolar tem demonstrado a relação entre o dis- curso científico que explica o fenômeno à ideo- logia dominante, de acordo com a qual só obtêm sucesso os mais aptos, os mais capazes, culpando os alunos pobres e suas famílias, justificando assim a desigualdade social e ignorando os determinantes escolares e políticos das dificuldades de esco- larização!. Dentre as explicações para O fracasso escolar, se destacam aquelas que atribuem patologias às crianças que não aprendem ou não se comportam conforme a expectativa da escola: as explicações medicalizantes ou patologizantes. Medicalizar o fracasso escolar é interpretar o desempenho escolar do aluno que contraria aquilo que a instituição espera dele em termos de comportamento ou de rendimento como sintoma de uma doença localizada no indivíduo, cujas causas devem ser diagnosticadas. A perspectiva da medicalização do fracasso escolar persiste hoje no cotidiano da escola e' atribui patologias às crianças das classes popu- lares com dificuldades de escolarização, culpa- bilizando-as por suas dificuldades, a despeito de pesquisas!*S que põem em questão as relações causais entre distúrbios físicos e psicológicos, de um lado, e rendimento escolar, de outro, € que, colocando o foco nos fatores intra-escolares e dando voz às crianças provenientes das classes populares, mostram que clas são, em sua grande maioria, crianças capazes de aprender. 137 Profissionais como psicólogos, fonoaudió- logos, psicopedagogos, entre outros, adotaram O modelo médico, o que levou autores como Collares e Moysés? a sugerirem a substituição do termo “medicalização” por outro mais abran- gente, qual seja, “patologização” das dificuldades de escolarização. Moysés* refere-se a duas versões principais da patologização das dificuldades de escolari- zação que permanecem até hoje: o fracasso esco- lar considerado como consequência da desnutri- ção, o que é atribuído mais frequentemente às crianças das classes populares e o fracasso escolar considerado como resultado da existência de disfunções neurológicas, tais como os distúrbios de aprendizagem, a hiperatividade, a disfunção cerebral mínima, a dislexia. Collares e Moysés? apresentam resultados de pesquisas que invalidam a relação de causalidade entre desnutrição e fracasso escolar e que podem ser resumidos em dois argumentos contrários a esta crença: as crianças que chegam às escolas públicas são portadoras de desnutrição leve, de primeiro grau, sem alterações no cérebro c em sua capacidade de aprender, por outro lado, a alfabetização é um processo que requer o uso das funções intelectuais superiores simples diante do potencial cognitivo do ser humano. Com relação às “disfunções neurológicas” ou “distúrbios de aprendizagem”, essas autoras demonstram que há uma longa trajetória de mitos, estórias criadas, fatos reais que são perdidos ou omitidos naquilo que denominam a história real e não-contada dos “distúrbios de aprendizagem”. Questionam a existência desses “distúrbios” pela falta de comprovação científica, uma vez que argumentam que mesmo após cem anos de terem sido aventados pela primeira vez por um oftalmo- logista inglês, nada foi comprovado. Sendo essas pretensas doenças neurológicas jamais compro- vadas devido à inexistência de critérios diagnósti- cos claros e precisos como exige a própria ciência neurológica, conservando conceitos vagos € abrangentes demais” (p. 29). A patologização da educação consiste em um reducionismo biológico, que é explicar a situação e o destino de indivíduos e grupos através de suas características indivi- duais, desse modo esconde os determinantes polí- Patrícia Carla Silva do Vale Zucoloto A medicalização da sociedade brasileira, de acordo com Freire Costa'?, refere-se ao fato de que a Medicina e o Estado firmaram um compromisso de higienização das cidades e das populações, pois o Estado reconheceu que a ordem e o progresso sociais dependiam da higienização destas. Os médicos, influenciados pela literatura curopéia, voltaram-se para a realidade da falta de higiene urbana e começaram a tratá-la em teses apresentadas às Faculdades de Medicina a partir de meados do século XIX. É neste contexto que surgem as teses de doutoramento defendidas nas Faculdades de Medicina, tendo como tema a higiene escolar. A partir do estudo das teses sobre higiene dos colégios da Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro, que tratavam de estabelecimentos de ensino que recebiam os filhos da elite, nos quais os alunos passavam a viver longe de suas famílias, Freire Costa!º concluiu que a estratégia de distan- ciamento do jovem do seu núcleo familiar fazia parte da apropriação médica da infância e da desqualificação das famílias coloniais, correspon- dendo à estratégia de medicalização do espaço urbano. (p. 180). Gondra" investigou as representações mé- . dicas acerca da educação e concluiu que um determinado modelo de organização escolar foi gestado no interior da ordem médica no século XIX, bascando-se cm diversas fontes*, dentre as quais se destacam as teses médicas do Rio de Janeiro que abordam questões educacionais. A partir da sua análise, afirma que a educação estava ligada ao projeto civilizatório ocidental, pois para os médicos higienistas era necessário formar o homem, dominando a natureza na qual se encontrava inscrito e domando a sua própria natureza. Evidencia que a educação era a medida e o remédio para o objetivo de “instaurar uma ordem civilizada nos trópicos”. (p. 410). Constata a presença do interesse privilegiado dos médicos Rev Bras Crescimento Desenvolv Hum. 2007;17(1):136-145 pela questão educacional com o objetivo de que através da educação poderia ser produzido um homem e uma sociedade regenerados. A idéia de regeneração do povo brasileiro através da edu- cação em uma escola higiênica diz respeito à influência das “teorias” raciais no pensamento médico a partir de 1870. Essas “teorias” (dar- winismo social e evolucionismo) procuravam explicar as desigualdades sociais como desi- gualdades naturais, decorrentes de diferenças biológicas entre as raças e coube aos intelectuais brasileiros uma interpretação própria dessas “teorias”. (cf. !). Com o objetivo de dar continuidade à inves- tigação das origens históricas e à compreensão das condições de produção dessa versão medicalizante da escola, que está na origem da patologização dos problemas de escolarização, em geral, e das crianças das classes populares, em particular, a presente pesquisa procurou analisar o discurso médico sobre a escola nas teses inaugurais da Faculdade de Medicina da Bahia na segunda metade do século XIX. Esse artigo se deterá sobre os objetivos específicos de investigar, nas teses selecionadas, as concepções de higiene pública e de higiene escolar e do papel do médico na escola. MÉTODO Tendo esse objetivo, fomos às origens da ciência médica brasileira, mais precisamente, garimpamos os primeiros documentos aqui pro- duzidos sobre a escola brasileira no meio médico, os quais foram as teses inaugurais para obtenção do grau de doutor nos cursos médicos da Bahia e Rio de Janeiro, particularmente aquelas que tratavam da higiene das escolas. Escolhemos trabalhar com as teses inau- gurais da Faculdade de Medicina da Bahia (FAMEB) porque as teses sobre higiene escolar presentes na Faculdade de Medicina do Rio de —TW—————— + Gondra? baseou-se na leitura da “legislação médica no século XIX, das memórias históricas das instituições e de alguns personagens do campo médico, de incursões tópicas em relatórios de Ministros dos Negócios do Império e de professores, relatos de viajantes estrangeiros, jornais, boletins c fontes literárias, bem como do levantamento exaustivo das teses defendidas junto à FMRJ no período referido, tendo sido este último, seguido de uma dupla seleção, sendo a primeira recortada pelo critério de uma medicina preocupada com aspectos sociais, e a segunda, de uma medicina preocupada com aspectos educacionais.” (p. 408). 139 Patrícia Carla Silva do Vale Zucoloto Janeiro abordavam a higiene dos colégios destinada aos filhos das elites brasileiras e nosso interesse cra pela escola pública e além do mais, estas já haviam sido analisadas por Freire Costa!º e Gondra”. Outro fator que contribuiu para esta escolha foi que havia um grande inte- resse pela higiene pública por parte dos médicos baianos, como observou Schwarcz!, e desse interesse surgiram teses de doutoramento e um predomínio de artigos sobre esse tema na revista da Faculdade de Medicina da Bahia: a Gazeta Medica da Bahia. A análise das teses teve como referência o mé- todo de análise de conteúdo proposto por Bardin!, tendo seguido duas etapas: a pré-análise, que com- preende a preparação do material a ser analisado, ca análise de conteúdo propriamente dita. Foram selecionadas dentre as teses da FAMEB aquelas que portavam em seus títulos a referência explícita a questão da higiene das esco- las constituindo assim o corpus a ser analisado, de acordo com os critérios de exaustividade, segundo a qual tivemos em conta todos os do- cumentos desses acervos e de pertinência, de acordo com a qual foram selecionados os docu- mentos adequados ao objetivo da análise. Dez teses foram selecionadas inicialmente e compreendiam o extenso período de 1869 a 1930. Dado o longo período histórico abrangido, optou- se por trabalhar com as cinco primeiras, correspondendo ao período de 1869 a 1898, a fim de melhor compreender as idéias produzidas no período de passagem do Império para a República. Foram analisadas as seguintes teses de doutoramento da Faculdade de Medicina da Bahia: Silva!s; Collet'”; Marques!s; Lobo! e Patury ai RESULTADOS A análise das teses nos conduziu à organi- zação do conteúdo concernente às concepções presentes nas mesmas em dez aspectos referentes aos objetivos específicos, dentre os quais apre- sentaremos nesse artigo as concepções de higiene pública e de higiene escolar e as concepções do papel do médico na escola (o médico higienista escolar e a inspeção médica na escola). Rev Bras Crescimento Desenvolv Hum. 2007;17(1):136-145 140 As cinco teses compreendem o período que se estende de 1869 a 1898, sendo que da 1º para a 2º tese, há um intervalo de 16 anos (1869 para 1885). As três primeiras localizam-se no período do Segundo Império. A 4º e a 5º (1895; 1898) correspondem ao início da Primeira República. O discurso presente nas teses carrega a influência das questões do contexto social, político e econômico de cada época. As teses tratam predominantemente das escolas primárias destinadas ao ensino público, porém algumas também se referem a colégios internos e a primeira tese fala exclusivamente desses colégios pagos destinados aos filhos da elite econômica. Essa primeira tesc foi mantida no corpo de documentos a ser analisado porque o fato de não tratar das escolas públicas pode ser entendido como evidência de que faltavam de fato escolas para o povo, como é demonstrado na literatura sobre a época.?'22, O discurso nas teses é articulado do seguin- te modo: primeiro procura-se definir o tema esco- lhido c justificar a sua importância; em seguida, o próprio tema é desenvolvido e durante a apresentação das prescrições higiênicas, a maior parte dos autores procura, por comparação, re- fletir sobre a realidade da educação brasileira, particularmente a baiana. As teses circulam por diversos temas rela- cionados à higiene das escolas. Os temas abran- gem desde prescrições higiênicas quanto à escolha do terreno e à construção do prédio escolar até a concepção de educação, de escola, de método de ensino, do papel do professor e do papel da família e do Estado. Abordam predomi- nantemente aspectos da estrutura física e do funcionamento das escolas, à luz das exigências higiênicas a serem seguidas. Descreveremos a seguir as concepções de higiene pública, de higiene escolar e do papel do médico higienista na escola presentes nas teses. As concepções de higiene pública e de higiene escolar A higiene escolar é contextualizada como pertencente ao tema maior da higiene pública ou Patrícia Carla Silva do Vale Zucoloto dos mestres, como também a condenação da ocorrência do “onanismo” e da pederastia entre os discípulos. Por exemplo: Silva, em 186916 e Collet, em 1885" recomendam que haja vigilância por parte dos professores em relação aos alunos para evitar que ocorra o “onanismo” ou “hábitos solitários” e a pederastia, também denominada “actos de immoralidade” que comprometeriam a saúde dos alunos. DISCUSSÃO As cinco teses inaugurais da Faculdade de Medicina da Bahia sobre a higiene das escolas e colégios configuram um momento de constituição de um discurso médico sobre a educação e sobre a escola centrado numa concepção de escola como instituição higiênica. Nesse momento da história brasileira, os médicos viam as escolas como lugares coletivos que contribuíam para a gênese e a disseminação de doenças que assolavam as cidades brasileiras. E, de fato, as condições sanitárias e higiênicas da Bahia eram precárias: em Salvador, por exem- plo, não havia rede de esgotos e a população fi- cava sujeita a moléstias infecto-contagiosas c a epidemias. Tavares? relata que as mais graves epidemias foram as de febre amarcla e cólera dos anos de 1850 e 1855, as quais fizeram milhares de vítimas na Bahia. Estes eram problemas de higiene pública para os quais os médicos brasileiros não estavam indiferentes. É verdade também que, como apontam vários autores? estava presente entre cles um forte desejo de serem europeus, ou seja, os nossos “homens de sciencia” participavam do que esses autores chamaram de “feitiço do transoceanismo” ou “bovarysmo”. As teses analisadas repetem os mesmos conteúdos, como se os autores houves- sem lido os mesmos manuais de higiene escolar, o que de fato se confirma no levantamento de autores e obras citadas. É vasta a literatura estran- geira referida e as teses são ricas em citações em língua estrangeira, principalmente de autores franceses. O discurso é constituído com base em trabalhos científicos realizados em outros países, embora já haja expressão do desejo de origi- Rev Bras Crescimento Desenvolv Hum. 2007;17(1):136-145 142 nalidade. As críticas à imitação de idéias es- trangeiras, no entanto, limitam-se a adaptações materiais, em vista das diferenças climáticas entre os países-modelo e o Brasil. Além disso, há re- ferência a trabalhos nacionais, entre os quais se destacam os Pareceres de Rui Barbosa (1882- 1883), segundo Patto (comunicação pessoal) estes textos referentes ao projeto educacional de Refor- ma do Ensino Primário c Secundário elaborados pelo então deputado baiano eram longos, deta- lhados e ricos de citações de trabalhos c expe- riências de autores europeus e norte-americanos. Por isso, esses documentos funcionaram como mediadores entre as idéias estrangeiras sobre edu- cação c higiene escolar e os médicos brasileiros. Essas teses veiculam um discurso nor- matizador, prescrevem um modelo ideal de escola de acordo com a ciência da higiene. Para que esse modelo se efetive, a higiene escolar precisa estar presente em todas as dimensões da escola: a estrutura física (localização, construção do prédio escolar, dimensão das salas de aula, cubagem do ar, dimensão das mobílias, etc.), as relações esco- lares e o próprio método de ensino. Nas minúcias das prescrições, encontra-se um desejo de controle absoluto. Ou seja, um projeto inovador de discipli- namento do corpo social por meio da prevenção de desvios físicos, intelectuais e morais de crian- ças c adolescentes. Os médicos denunciam que o maior proble- ma das escolas brasileiras era sua inadequação higiênica. As recomendações referem-se princi- palmente a prevenção das doenças, objetivo que se tornou obsessão da medicina depois das des- cobertas de Pasteur c Koch. A primeira tese trata da colaboração que a medicina pode dar à escola enquanto instituição abstrata e portanto, descontextualizado da reali- dade baiana. Mas, a partir da segunda a situação das escolas brasileiras começa a ser mencionada para tornar-se tema a partir da terceira. Nota-se, então, todo um empenho em prescrever medidas de higienização das escolas alheio à realidade brasileira de falta de escolas e de uma política educacional, de professores mal remunerados c mal formados e de descaso do Estado brasileiro para com a educação do povo. No Império, a educação pública foi rele- Patrícia Carla Silva do Vale Zucoloto gada ao plano das leis apenas, pois na prática muito pouco foi realizado?!. Havia poucas escolas de ensino elementar no Brasil, portanto havia uma grande massa analfabeta. De acordo com as estatísticas citadas por Lourenço Filho, “as esco- las primárias, em número de 15.561, reuniam, em 1878, 175 mil alunos”. Da população livre em todo o país, cerca de nove milhões de habi- tantes, os alunos representavam apenas 2% desta população; o recenseamento de 1870 registrara um índice de analfabetos de 78% na população de 15 anos e mais?! (p. 382). Como se sabe, um sistema educacional unificado no Brasil só começaria a tomar corpo mais de meio século depois, quando da criação do primeiro Ministério de Educação em 1930. Podem ser localizadas as origens históricas da medicalização dos problemas de escolarização das crianças das classes populares na defesa da importância da medicina para a escola, impor- tância da presença médica nesta instituição c na concepção preconceituosa de povo brasileiro, central nas teorias adotadas pelos médicos. Nessas teses médicas, a concepção de povo brasileiro está perpassada pelas “teorias raciais”, o que torna possível afirmar que a desvalorização dos integrantes das classes populares está na origem da crença de que os pobres e não-brancos são, em geral, incapazes de escolarização. No discurso médico e educacional, poucos anos depois da produção dessas teses, o uso de termos negativos para designá-los e para explicar sua exclusão escolar e sua inclusão social marginal já está instalado: Nos documentos oficiais, na imprensa, nos relatórios e pareceres dos especialistas vai-se constituindo um vasto rol de termos infamantes para designar os pobres: degenerados, anor- mais, selvagens, ignorantes, incivilizados, feios, desordeiros, rudes, grevistas, incapazes, pregui- çosos, boêmios, anarquistas, brutos, irrespon- sáveis, desregrados, perniciosos, bêbados, farristas, decaídos, nocivos, arruaceiros, deso- cupados, marginais, deletérios, animalescos, simiescos, mediocres, sujos, libertinos, trapa- ceiros, parasitas, vadios, viciados, ladrões, criminosos. (*, p. 184) Rev Bras Crescimento Desenvolv Hum. 2007;17(1):136-145 Nas primeiras teses médicas sobre insti- tuições escolares, estão presentes prescrições que vão se concretizar pouco mais tarde na história da educação brasileira, como é o caso da inspeção médica na escola. Ou seja, trata-se da constituição de um discurso médico sobre a educação que vai ser aprofundado e concretizado em teorias e ações ao longo do século XX. Exemplo disto são os discursos do médico Miguel Couto, presidente perpétuo desde 1913 da Academia Nacional de Medicina, nos quais a educação é definida como o problema nacional por excelência. A criação do Serviço de Inspeção Médica Escolar da Cidade do Rio de Janeiro em 1910, cujo primeiro diretor foi Moncorvo Filho, médico do Instituto de Proteção e Assistência à Infância do Rio de Janeiro, fundado em 1889º, Em São Paulo, já em 1890 teve início a Inspeção Médica Escolar. Porém, o Serviço de Inspeção Médica Escolar, ligado ao governo do estado de São Paulo, só foi criado em 1911. Nos estados da Bahia, Pernam- buco e Minas Gerais foram criados serviços semelhantes em 1913, no Paraná e em Santa Catarina em 1918. Os médicos começam a marcar presença não só nas escolas públicas, mas no corpo docente das Escolas Normais realizando a formação dos profissionais da educação!. Na década de 30, o médico e antropólogo Arthur Ramos, discípulo de Nina Rodrigues na Faculdade de Medicina da Bahia, criou clínicas e centros de higiene mental escolar e produziu o primeiro livro sobre proble- mas de aprendizagem escolar: 4 creança proble- ma (1939), dando relevo à questão das crianças que “não aprendiam” que vinha sendo tratada desde a década de 20 pela classe médica, na perspectiva da patologização. Patto! afirma que no início do século XX ” a determinação dos “anormais” e sua segregação já era uma prática social de competência médica e evidencia que muitos médicos “tiveram uma participação decisiva na constituição teórica e instrumental da psicologia educacional, direcio- nando-a, para a aquisição de uma identidade bascada no modelo médico.” (p. 63) De acordo com Moysés*, a Medicina exer- ceu um papel fundamental na construção das doenças do não-aprender, criando a demanda por 143 Patrícia Carla Silva do Vale Zucoloto REFERÊNCIAS ts 10. Patto MHS. A produção do fracasso escolar: histórias de submissão e rebeldia. São Paulo: T.A. Queiroz; 1990. Collares CAL, Moysés MAA. A transformação do espaço pedagógico em espaço clínico: a patologização da educação. In: Alves ML, coordenador. Cultura e saúde na escola. São Paulo: Fundação para o Desenvolvimento da Educação; 1994. p. 25-31. Souza MPR, Machado AM, organizadores. Psicologia escolar: em busca de novos rumos. 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