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Guias e Dicas
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O Amor Proibido de Simão e Teresa: Um Romance do Século XIX, Traduções de Literatura

um livro de Camilo Castelo Branco

Tipologia: Traduções

2020

Compartilhado em 17/03/2020

romeu-junior-12
romeu-junior-12 🇧🇷

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AMOR DE PERDIÇÃO
(Memórias Duma Família)
Camilo Castelo Branco
AO
ILMO. E EXMO. SR.
ANTÔNIO MARIA DE FONTES PEREIRA DE MELO
DEDICA
O AUTOR
Ilmo. e Exmo. Sr.
Há de pensar muita gente que V. Exa. não dá valor algum a este livro, que a minha gratidão lhe
dedica. porque muita gente está persuadida que ministros do Estado não lêem novelas. É um
colega de V. Exa. discorrer no parlamento acerca de caminhos de ferro - Com tanto engenho o
fazia, de tantas flores matizara aquela matéria. que me deleitou ouvi-lo. Na noite desse dia,
encontrei o colega de V. Exa. a ler "Fanny", aquela "Fanny" que sabia tanto de caminhos de ferro
como eu.
Que V. Exa. tem romances na sua biblioteca, é convicção minha. Que lá tem alguns, que não leu,
porque o tempo lhe falece e outros porque não merecem tempo, também o creio. Dê V. Exa., no
lote dos segundos, um lugar a este livro. e terá assim V. Exa. significado que o recebe e aprecia,
por levar em si o nome do mais agradecido e respeitador criado de V. Exa..
Na cadeia da Relação do Porto,
aos 24 de setembro de 1861.
CAMILO CAS'TELO BRANCO.
INTRODUÇÃO
Folheando os livros de antigos assentamentos, no cartório das cadeias da Relação do
Porto, li, no das entradas dos presos desde 1803 a 1805, a folhas 232, o seguinte:
Simão Antônio Botelho, que assim disse chamar-se, ser solteiro, e estudante na
Universidade de Coimbra, natural da cidade de Lisboa, e assistente na ocasião de sua
prisão na cidade de Viseu, idade de dezoito anos, filho de Domingos José Correia Botelho
e de D. Rita Preciosa Caldeirão Castelo Branco; estatura ordinária, cara redonda, olhos
castanhos, cabelo e barba preta, vestido com jaqueta de baetão azul, colete de fustão
pintado e calça de pano pedrês. E fiz este assento, que assinei - Filipe Moreira Dias.
A margem esquerda deste assento está escrito:
Foi para a Índia em 17 de março de 1807.
Não seria fiar demasiadamente na sensibilidade do leitor, se cuido que o degredo de um
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Baixe O Amor Proibido de Simão e Teresa: Um Romance do Século XIX e outras Traduções em PDF para Literatura, somente na Docsity!

AMOR DE PERDIÇÃO

(Memórias Duma Família)

Camilo Castelo Branco

AO

ILMO. E EXMO. SR.

ANTÔNIO MARIA DE FONTES PEREIRA DE MELO

DEDICA

O AUTOR

Ilmo. e Exmo. Sr. Há de pensar muita gente que V. Exa. não dá valor algum a este livro, que a minha gratidão lhe dedica. porque muita gente está persuadida que ministros do Estado não lêem novelas. É um colega de V. Exa. discorrer no parlamento acerca de caminhos de ferro - Com tanto engenho o fazia, de tantas flores matizara aquela matéria. que me deleitou ouvi-lo. Na noite desse dia, encontrei o colega de V. Exa. a ler "Fanny", aquela "Fanny" que sabia tanto de caminhos de ferro como eu. Que V. Exa. tem romances na sua biblioteca, é convicção minha. Que lá tem alguns, que não leu, porque o tempo lhe falece e outros porque não merecem tempo, também o creio. Dê V. Exa., no lote dos segundos, um lugar a este livro. e terá assim V. Exa. significado que o recebe e aprecia, por levar em si o nome do mais agradecido e respeitador criado de V. Exa.. Na cadeia da Relação do Porto, aos 24 de setembro de 1861. CAMILO CAS'TELO BRANCO. INTRODUÇÃO Folheando os livros de antigos assentamentos, no cartório das cadeias da Relação do Porto, li, no das entradas dos presos desde 1803 a 1805, a folhas 232, o seguinte: Simão Antônio Botelho, que assim disse chamar-se, ser solteiro, e estudante na Universidade de Coimbra, natural da cidade de Lisboa, e assistente na ocasião de sua prisão na cidade de Viseu, idade de dezoito anos, filho de Domingos José Correia Botelho e de D. Rita Preciosa Caldeirão Castelo Branco; estatura ordinária, cara redonda, olhos castanhos, cabelo e barba preta, vestido com jaqueta de baetão azul, colete de fustão pintado e calça de pano pedrês. E fiz este assento, que assinei - Filipe Moreira Dias. A margem esquerda deste assento está escrito: Foi para a Índia em 17 de março de 1807. Não seria fiar demasiadamente na sensibilidade do leitor, se cuido que o degredo de um

moço de dezoito anos lhe há de fazer dó. Dezoito anos! O arrebol dourado e escarlate da manhã da vida! As louçanias do coração que ainda não sonha em frutos, e todo se embalsama no perfume das flores! Dezoito anos! O amor daquela idade! A passagem do seio da família, dos braços de mãe, dos beijos das irmãs para as carícias mais doces da virgem, que se lhe abre ao lado como flor da mesma sazão e dos mesmos aromas, e à mesma hora da vida! Dezoito anos!... E degredado da pátria, do amor e da família! Nunca mais o céu de Portugal, nem liberdade, nem irmãos, nem mãe, nem reabilitação, nem dignidade, nem um amigo!... É triste! O leitor decerto se compungiria; e a leitora, se lhe dissessem em menos de uma linha a história daqueles dezoito anos, choraria! Amou, perdeu-se, e morreu amando. É a história. E história assim poderá ouvi-la a olhos enxutos a mulher, a criatura mais bem formada das branduras da piedade, a que por vezes traz consigo do céu um reflexo da divina misericórdia?! Essa, a minha leitora, a carinhosa amiga de todos os infelizes, não choraria se lhe dissessem que o pobre moço perdera honra, reabilitação, pátria, liberdade, irmãs, mãe, vida, tudo, por amor da primeira mulher que o despertou do seu dormir de inocentes desejos?! Chorava, chorava! Assim eu lhe soubesse dizer o doloroso sobressalto que me causaram aquelas linhas, de propósito procuradas, e lidas com amargura e respeito e, ao mesmo tempo, ódio. Ódio, sim... A tempo vereão se é perdoável o ódio, ou se antes me não fora melhor abrir mão desde já de uma história que me pode acarear enojos dos frios julgadores do coração, e das sentenças que eu aqui lavrar contra a falsa virtude de homens, feitos bárbaros, em nome da sua honra. I Domingos José Correia Botelho de Mesquita e Meneses, fidalgo de linhagem e um dos mais antigos solarengos de Vila-Real de Trás-os-Montes, era em 1779, juiz de fora de Cascais, e nesse mesmo ano casara com uma dama do paço, D. Rita Teresa Margarida Preciosa da Veiga Caldeirão Castelo Branco, filha dum capitão de cavalos, neta de outro Antônio de Azevedo Castelo Branco Pereira da Silva, tem notável por sua jerarquia, como por um, naquele tempo, precioso livro acerca da Arte de Guerra. Dez anos de enamorado, mal sucedido, consumira em Lisboa o bacharel provinciano. Para fazer-se amar da formosa dama de D. Maria I minguavam-lhe dotes físicos: Domingos Botelho era extremamente feio. Para se inculcar como partido conveniente a uma filha segunda, faltavam-lhe bens de fortuna: os haveres dele não excediam a trinta mil cruzados em propriedades no Douro. Os dotes de espírito não o recomendavam também: era alcançadíssimo de inteligência, e granjeara entre os seus condiscípulos da Universidade o epíteto de "brocas", com que ainda hoje os seus descendentes em Vila- Real são conhecidos. Bem ou mal derivado, o epíteto Brocas vem de broa. Entenderam os acadêmicos que a rudeza do seu condiscípulo procedia de muito pão de milho que ele digeria na sua terra. Domingos Botelho devia ter uma vocação qualquer, e tinha: era excelente flautista; foi a primeira flauta do seu tempo; e a tocar flauta se sustentou dois anos em Coimbra, durante os quais seu pai lhe suspendeu as mesadas, porque os rendimentos da casa não bastavam a livrar outro filho de um crime de morte (1).

  • Ah! sim? Cuidei que o tempo parara aqui no século doze... O marido achou que devia rir-se do chiste, que o não lisonjeara grandemente. Fernão Botelho, pai do juiz de fora, saiu à frente do préstito para dar a mão à nora, que apeava da liteira, e conduzi-la à de casa. D. Rita, antes de ver a cara de seu sogro, contemplou-lhe a olho armado as fivelas de aço, e a bolsa do rabicho. Dizia ela depois que os fidalgos de Vila-Real eram muito menos limpos que os carvoeiros de Lisboa. Antes de entrar na avoenga liteira de seu marido, perguntou, com a mais refalsada seriedade, se não haveria risco em ir dentro daquela antigüidade. Fernão Botelho asseverou a sua nora que a sua liteira não tinha ainda cem anos, e que os machos não excediam a trinta. O modo altivo como ela recebeu as cortesias da nobreza - velha nobreza, que para ali viera em tempo de D. Deniz, fundador da vila - fez que o mais novo do préstito, que ainda vivia há doze anos, me dissesse a mim: "Sabíamos que ela era dama da Senhora D. Maria I; porém, da soberba com que nos tratou ficamos pensando que seria ela a própria rainha". Repicaram os sinos da terra quando a comitiva assomou à Senhora de Almudena. D. Rita disse ao marido que a recepção dos sinos era a mais estrondosa e barata. Apearam à porta da velha casa de Fernão Botelho. A aia do paço relanceou os olhos pela fachada do edifício, e disse de si para si: "É uma bonita vivenda para quem foi criada em Mafra e Sintra, na Bemposta e Queluz". Decorridos alguns dias, D. Rita disse ao marido que tinha medo de ser devorada das ratazanas; que aquela casa era um covil de feras; que os tetos estavam a desabar; que as paredes não resistiriam ao inverno; que os preceitos de uniformidade conjugal não obrigavam a morrer de frio uma esposa delicada e afeita às almofadas do palácio dos reis, Domingos Botelho conformou-se com a estremecida consorte, e começou a fábrica dum palacete. Escassamente lhe chegavam os recursos para os alicerces: escreveu à rainha, e obteve generoso subsídio com que ultimou a casa. As varandas das janelas foram a última dádiva que a real viúva fez à sua dama. Quer-nos parecer que a dádiva é um testemunho, até agora inédito, da demência da Senhora D. Maria I. Domingos Botelho mandara esculpir em Lisboa a pedra de armas; D. Rita, porém, teimara que no escudo se esquarteassem também as suas; mas era tarde, porque já a obra tinha vindo do escultor, e o magistrado não podia com segunda despesa, nem queria desgostar seu pai, orgulhoso de seu brasão. Resultou daqui ficar a casa sem armas e D. Rita vitoriosa (2) O juiz de fora tinha ali parentela ilustre. O aprumo da fidalga dobrou-se até aos grandes da província, ou antes houve por bem levantá-los até ela. D. Rita tinha uma corte de primos, uns que se contentavam de serem primos, outros que invejavam a sorte do marido. O mais audacioso não ousava fitá-la de rosto, quando ela o remirava com a luneta, em jeito de tanta altivez e zombaria, que não será estranha figura dizer que a luneta de Rita Preciosa era a mais vigilante sentinela da sua virtude. Domingos Botelho desconfiava da eficácia dos merecimentos próprios para cabalmente encher o coração de sua mulher. Inquietava-o o ciúme; mas sufocava os suspiros, receando que Rita se desse por injuriada da suspeita. E razão era que se ofendesse. A neta do general frígido no caldeirão sarrareno ria dos primos, que, por amor dela, erriçavam e empoavam as cabeleiras com desgracioso esmero, e cavaleavam

estrepitosamente na calçada os seus ginetes, fingindo que os picadores da província não desconheciam as graças hípicas do marquês de Marialva. Não o cuidava assim, porém, o juiz de fora, O intriguista que lhe trazia o espírito em ânsias era o seu espelho. Via-se sinceramente feio, e conhecia Rita cada vez mais em flor, e mais enfadada no trato íntimo. Nenhum exemplo da história antiga, exemplo de amor sem quebra entre o esposo disforme e a esposa linda, lhe ocorria. Um só lhe mortificava a memória, e esse, com quanto fosse da fábula, era-lhe avesso, e vinha a ser o casamento de Vênus e Vulcano. Lembravam-lhe as redes que o ferreiro coxo fabricara para apanhar os deuses adúlteros, e assombrava-se da paciência daquele marido. Entre si, dizia ele, que, erguido o véu da perfídia, nem se queixaria a Júpiter, nem armaria ratoeiras aos primos. A par do bacamarte de Luís Botelho, que varara em terra o alfares, estava uma fileira de bacamartes em que o juiz de fora era entendido com muito superior inteligência à que revelava na compreensão do Digesto e das Ordenações do Reino. Este viver de sobressaltos durou seis anos, ou mais seria. O juiz de fora empenhara os seus amigos na transferência, e conseguiu mais do que ambicionava: foi nomeado provedor para Lamego. Rita Preciosa deixou saudades em Vila-Real, e duradoura memória da sua soberba, formosura e graças de espírito. O marido também deixou anedotas que ainda agora se repetem. Duas contarei somente para não enfadar. Acontecera um lavrador mandar-lhe o presente duma vitela, e mandar com ela a vaca, para se não desgarrar a filha. Domingos Botelho mandou recolher à loja a vitela e a vaca, dizendo que quem dava a filha dava a mãe. Outra vez, deu-se o caso de lhe mandarem um presente de pastéis em rica salva de prata. O juiz de fora repartiu os pastéis pelos meninos, e mandou guardar a salva, dizendo que receberia como escárnio um presente de doces, que valiam dez patacões, sendo que naturalmente os pastéis tinham vindo como ornato da bandeja, E assim é que, ainda hoje, em Vila-Real, quando se dá um caso análogo de ficar alguém com o conteúdo e continente, diz a gente da terra: "Aquele é como o doutor Brocas". Não tenho assunto de tradição com que possa reter-me em miudezas da vida do provedor em Lamego. Escassamente sei que D. Rita aborrecia a comarca, e ameaçava o marido de ir com seus cinco filhos para Lisboa, se ele não saísse daquela intratável terra, Parece que a fidalguia de Lamego, em todo o tempo orgulhosa de uma antigüidade que principia na aclamação de Almacave, desdenhou a filáucia da dama do paço, e esmerilhou certas vergônteas podres do tronco dos Botelhos Correais de Mesquita, desprimorando-lhe as cãs com o fato de ele ter vivido dois anos em Coimbra tocando flauta. Em 1801, achamos Domingos José Correia Botelho de Mesquita corregedor em Viseu. Manuel, o mais velho de seus filhos, tem vinte e dois anos, e freqüenta o segundo ano jurídico. Simão, que tem quinze, estuda humanidades em Coimbra. As meninas são o prazer e a vida toda do coração de sua mãe. O filho mais velho escreveu a seu pai queixando-se de não poder viver com seu irmão, temeroso do gênio sanguinário dele. Conta que a cada passo se vê ameaçado na vida, porque Simão emprega em pistolas o dinheiro dos livros, convive com os mais famosos perturbadores da academia, e corre de noite as ruas insultando os habitantes e provocando-os à luta com assuadas. O corregedor admira a bravura de seu filho Simão, e diz à consternada mãe que o rapaz é a figura e o gênio de seu bisavô Paulo Botelho Correia, o mais valente fidalgo que dera Trás-os-Montes. Manuel, cada vez mais aterrado das arremetidas de Simão, sai de Coimbra antes de férias e vai a Viseu queixar-se e pedir que lhe dê seu pai outro destino, D. Rita quer que

de noventa e três, não eram de todo ignorados. As doutrinas da regeneração social pela guilhotina tinham alguns tímidos sectários em Portugal, e esses de ver é que deviam pertencer à geração nova. Além de que, o rancor à Inglaterra lavrara nas entranhas das classes manufatureiras, e o desprender-se do jugo aviltador de estranhos, apertado, desde o princípio do século anterior, com as sogas de ruinosos e pérfidos tratados, estava no ânimo de muitos e bons portugueses que se queriam antes aliançados com a França. Estes eram os pensadores reflexivos; os sectários da academia, porém, exprimiam mais a paixão da novidade que as doutrinas do raciocínio. No ano anterior de 1800, saíra Antônio de Araújo de Azevedo, depois conde da Barca, a negociar em Madrid e Paris a neutralidade de Portugal. Rejeitaram-lhe as potências aliadas as propostas, tendo-lhe em conta de nada os dezesseis milhões que o diplomata oferecia ao primeiro cônsul. Sem delongas, foi o território português infestado pelos exércitos de Espanha e França. As nossas tropas, comandadas pelo duque de Lafões, não chegaram a travar a luta desigual, porque a esse tempo Luís Pinto de Sousa, mais tarde visconde de Balsemão, negociara ignominosa paz em Badajoz, com cedência de Olivença à Espanha, exclusão de ingleses de nossos portos, e indenização de alguns milhões à França. Estes sucessos tinham irritado contra Napoleão os ânimos daqueles que odiavam o aventureiro, e para outros deram causa a congratularem-se do rompimento com Inglaterra. Entre os desta parcialidade, na convulsiva e irrequieta academia, era voto de grande monta Simão Botelho, apesar dos seus imberbes dezesseis anos. Mirabeau, Danton, Robespierre, Desmoulins, e muitos outros algozes e mártires do grande açougue, eram nomes de soada musical aos ouvidos de Simão. Difamá-los na sua presença era afrontarem-no a ele, e bofetada certa, e pistolas engatilhadas à cara do difamador. O filho do corregedor de Viseu defendia que Portugal devia regenerar-se num batismo de sangue, para que a hidra dos tiranos não erguesse mais uma das suas mil cabeças sob a dava do Hércules popular. Estes discursos, arremedo de alguma clandestina objurgatória de Saint-Just, afugentavam da sua comunhão aqueles mesmos que o tinham aplaudido em mais racionais princípios de liberdade. Simão Botelho tornou-se odioso aos condiscípulos, que, para se salvarem pela infâmia, o delataram ao bispo-conde e ao reitor da Universidade. Um dia, proclamava o demagogo acadêmico na praça de Sansão aos poucos ouvintes que lhe restaram fiéis, uns por medo, outros por analogia de bossas. O discurso ia no mais acrisolado da idéia regicida, quando uma escolta de verdeais lhe aguou a escandescência. Quis o orador resistir, aperrando as pistolas, mas de sobra sabiam os braços musculosos da corte do reitor com quem as haviam. O jacobino, desarmado e cercado, entre a escolta dos arqueiros foi levado ao cárcere acadêmico, donde saiu seis meses depois, a grandes instâncias dos amigos de seu pai e dos parentes de D. Rita Preciosa. Perdido o ano letivo, foi para Viseu Simão. O corregedor repeliu-o da sua presença com ameaças de o expulsar de casa. A mãe, mais levada do dever que do coração. intercedeu pelo filho e conseguiu sentá-lo à mesa comum. No espaço de três meses fez-se maravilhosa mudança nos costumes de Simão. As companhias da relé desprezou-as. Saía de casa raras vezes, ou só, ou com a irmã mais nova, sua predileta. O campo, as árvores e os sítios mais sombrios e ermos eram o seu recreio. Nas doces noites de estio demorava-se por fora até ao repontar da alva. Aqueles que assim o viam admiravam-lhe o ar cismador e o recolhimento que o seqüestrava da vida vulgar. Em casa encerrava-se no seu quarto, e saía quando o chamavam para a

mesa. D. Rita pasmava da transfiguração, e o marido, bem convencido dela, ao fim de cinco meses, consentiu que seu filho lhe dirigisse a palavra. Simão Botelho amava. Aí está uma palavra única, explicando o que parecia absurda reforma aos dezessete anos. Amava Simão uma sua vizinha, menina de quinze anos, rica herdeira, regularmente bonita e bem nascida. Da janela do seu quarto é que ele a vira pela primeira vez, para amá-la sempre. Não ficara ela incólume da ferida que fizera no coração do vizinho: amou- o também, e com mais seriedade que a usual nos seus anos. Os poetas cansam-nos a paciência a falarem do amor da mulher aos quinze anos, como paixão perigosa, única e inflexível. Alguns prosadores de romances dizem o mesmo. Enganam-se ambos. O amor dos quinze anos é uma brincadeira; é a última manifestação do amor às bonecas; é a tentativa da avezinha que ensaia o vôo fora do ninho, sempre com os olhos fitos na ave-mãe, que a está de fronte próxima chamando: tanto sabe a primeira o que é amar muito, como a segunda o que é voar para longe. Teresa de Albuquerque devia ser, porventura, uma exceção no seu amor. O magistrado e sua família eram odiosos ao pai de Teresa, por motivo de litígios, em que Domingos Botelho lhe deu sentenças contra. Afora isso, ainda no ano anterior dois criados de Tadeu de Albuquerque tinham sido feridos na celebrada pancadaria da fonte. E, pois, evidente que o amor de Teresa, declinando de si o dever de obtemperar e sacrificar-se ao justo azedume de seu pai, era verdadeiro e forte. E este amor era singularmente discreto e cauteloso. Viram-se e falaram-se três meses, sem darem rebate à vizinhança e nem sequer suspeitas às duas famílias. O destino que ambos se prometiam era o mais honesto: ele ia formar-se para poder sustentá-la, se não tivessem outros recursos; ela esperava que seu velho pai falecesse para, senhora sua, lhe dar, com o coração, o seu grande patrimônio. Espanta discrição tamanha na índole de Simão Botelho, e na presumível ignorância de Teresa em coisas materiais da vida, como são um patrimônio! Na véspera da sua ida para Coimbra, estava Simão Botelho despedindo-se da suspirosa menina, quando subitamente ela foi arrancada da janela. O alucinado moço ouviu gemidos daquela voz que, um momento antes, soluçava comovida por lágrimas de saudade. Ferveu-lhe o sangue na cabeça; contorceu-se no seu quarto como o tigre contra as grades inflexíveis da jaula. Teve tentações de se matar, na impotência de socorrê-la. As restantes horas daquela noite passou-as em raivas e projetos de vingança. Com o amanhecer esfriou-lhe o sangue, e renasceu a esperança com os cálculos. Quando o chamaram para partir para Coimbra, lançou-se do leito de tal modo transfigurado, que sua mãe, avisada do rosto amargurado dele, foi ao quarto interrogá-lo e despersuadi-lo de ir enquanto assim estivesse febril. Simão, porém, entre mil projetos, achara melhor o de ir para Coimbra, esperar lá notícias de Teresa, e vir a ocultar a Viseu falar com ela. Ajuizadamente discorrera ele; que a sua demora agravaria a situação de Teresa. Descera o acadêmico ao pátio, depois de abraçar a mãe e irmãs, e beijar a mão do pai, que para esta hora reservara uma admoestração severa, a ponto de lhe asseverar que de

sorrindo. A filha do corregedor sorriu também, mas fugiu logo da janela, porque sua mãe tinha proibido às filhas de trocarem vistas com pessoa daquele casa. No dia seguinte, à mesma hora, levada da simpatia que lhe causara aquele gesto de amizade, tornou Rita à janela, e lá viu Teresa com os olhos fitos na sua, como se a estivesse esperando. Sorriram-se com resguardo, afastando-se a um pouco do peitoril das janelas; e assim, ambas de pé, no interior dos quartos, se estavam contemplando. Como a rua era estreita, podiam ouvir-se, falando baixo. Tereza, mais pelo movimento dos lábios que por palavras, perguntou a Rita se era sua amiga. A menina respondeu com um gesto afirmativo, e fugiu, acenando-lhe um adeus. Estes rápidos instantes de se verem repetiram-se sucessivos dias, até que, perdido o maior medo de ambas, ousaram demorar-se em palestras a meia voz. Tereza falava de Simão, contava à menina de onze anos o segredo do seu amor, e dizia-lhe que ela havia de ser nada sua irmã, recomendando-lhe muito que não dissesse nada à sua família. Numa dessas conversações, Rita descuidara-se, e levantou de modo a voz que foi ouvida de uma irmã, que a foi logo acusar ao pai. O corregedor chamou Rita, e forçou-a pelo terror a contar tudo que ouvira à vizinha. Tanta foi sua cólera, que, sem atender às razões da esposa, que viera espavorida dos gritos, correu ao quarto de Simão, e viu ainda Teresa à janela.

  • Olé! - disse ele à pálida menina - Não tenha a confiança de pôr olhos em pessoa de minha casa, Se quer casar, case com um sapateiro, que é um digno genro de seu pai. Tereza não ouviu o remate da brutal apóstrofe: tinha fugido aturdida e envergonhada. Porém, como o desabrido ministro ficasse bramindo no quarto, e Tadeu de Albuquerque saísse a uma janela, a cólera do doutor redobrou, e a torrente das injúrias, longo tempo represada, bateu no rosto do vizinho, que não ousou replicar-lhe. Tadeu interrogou sua filha, e acreditou que foi causa à sanha de Domingos Botelho estarem as duas meninas praticando inocentemente, por trejeitos, em coisas de sua idade. Desculpou o velho a criancice de Teresa, admoestando-a que não voltasse àquela janela. Esta mansidão do fidalgo, cujo natural era bravio, tem a sua explicação no projeto de casar em breve a filha com seu primo Baltasar Coutinho, de Castro-d'Aire, senhor de casa, e igualmente nobre da mesma prosápia. Cuidava o velho, presunçoso conhecedor do coração das mulheres, que a brandura seria o mais seguro expediente para levar a filha ao esquecimento daquele pueril amor a Simão. Era máxima sua que o amor, aos quinze anos, carece de consistência para 50breviver a uma ausência de seis meses. Não pensava errado o fidalgo, mas o erro existia. As exceções têm sido o ludíbrio dos mais assisados pensadores, tanto no especulativo como no experimental. Não era muito que Tadeu de Albuquerque fosse enganado em coisas de amor e coração de mulher, cujas variantes são tantas e tão caprichosas, que eu não sei se alguma máxima pode ser-nos guia, a não ser esta: "Em cada mulher, quatro mulheres incompreensíveis, pensando alternadamente como se hão de desmentir umas às outras". Isto é o mais seguro; mas não é infalível. Aí está Teresa que parece ser única em si. Dir-se-á que as três da conta, que diz a sentença, não podem coexistir com a quarta aos quinze anos? Também o penso assim, posto que a fixidez, a constância daquele amor, funda em causa independente do coração: é porque Teresa não vai à sociedade, não tem um altar em cada noite na sala, não provou o incenso doutros galãs, nem teve ainda uma hora de comparar a imagem amada, desluzida pela ausência, com a imagem amante, amor nos olhos que a fitam, e amor nas palavras que a convencem de que há um coração para cada homem, e uma só mocidade para cada mulher. Quem me diz a mim que Teresa

teria em si as quatro mulheres da máxima, se o vapor de quatro incensórios lhe estonteasse o espírito? Não é fácil, nem preciso decidir. E vamos ao conto. Acerca de Simão Botelho, nunca diante de sua filha Tadeu de Albuquerque proferiu palavra, nem antes nem depois do disparate do corregedor. O que ele fez logo foi chamar a Viseu o sobrinho de Castro-d'Aire, e preveni-lo do seu desígnio, para que ele, em face de Teresa, procedesse como convinha a um enamorado de feição, e mutuamente se apaixonassem e prometessem auspicioso futuro ao casamento. Por parte de Baltasar Coutinho a paixão inflamou-se tão depressa, quanto o coração de Teresa se congelou de terror e repugnância. O morgado de Castro-d'Aire, atribuindo a frieza de sua prima a modéstia, inocência e acanhamento, lisonjeou-se do virginal melindre daquela alma, e saboreou de antemão o prazer de uma lenta, mas segura conquista. Verdade é que Baltazar nunca se explicara de modo que Teresa lhe desse resposta decisiva. Um dia, porém, instigado por seu tio, afoitou-se o ditoso noivo a falar assim à melancólica menina:

  • É tempo de lhe abrir o meu coração, prima. Está bem disposta a ouvir-me?
  • Eu estou sempre bem disposta a ouvi-lo, primo Baltasar. O desdém aborrecido desta resposta abalou algum tanto as convicções do fidalgo, respeito à inocência, modéstia e acanhamento de sua prima. Ainda assim, quis ele no momento persuadir-se que a boa vontade não poderia exprimir-se doutro modo, e continuou:
  • Os nossos corações penso eu que estão unidos; agora é preciso que as nossas casas se unam. Teresa empalideceu, e baixou os olhos.
  • Acaso lhe diria eu alguma coisa desagradável?! - prosseguiu Baltasar, rebatido pela desfiguração de Teresa.
  • Disse-me o que é impossível fazer-se - respondeu ela sem turvação - O primo engana- se: os nossos corações não estão unidos. Sou muito sua amiga, mas nunca pensei em ser sua esposa, nem me lembrou que o primo pensasse em tal.
  • Quer dizer que me aborrece, prima Teresa? - atalhou, corrido, o morgado.
  • Não, senhor: já lhe disse que o estimava muito, e por isso mesmo não devo ser esposa dum amigo a quem não posso amar. A infelicidade não seria só minha...
  • Muito bem... Posso eu saber - tornou com refalsado sorriso o primo - quem é que me disputa o coração de minha prima?
  • Que lucra em o saber?
  • Lucro saber, pelo menos, que a minha prima ama outro homem... E exato?
  • É.
  • E com tamanha paixão que desobedece a seu pai?

perversidade do seu vizinho Não se recorda de ter visto Simão Botelho suciando com a ínfima vilanagem desta terra?! Não viu os seus criados com as cabeças quebradas pelo tal varredor de feiras? Não lhe constou que ele, em Coimbra, abarrotado de vinho, andava pelas ruas armado como um salteador de estradas, proclamando à canalha a guerra aos nobres e aos reis, e à religião de nossos país? A prima ignoraria isto porventura?

  • Ignorava parte disso e não me aflige a sabê-lo. Desde que conheci Simão, não me consta que ele tenha dado o menor desgosto à sua família, nem ouço falar mal dele.
  • E está por isso persuadida de que Simão deve ao seu amor a reforma de costume?
  • Não sei, nem penso nisso - replicou com enfado Tereza.
  • Não se zangue, prima. Vou-lhe dizer as minhas últimas palavras: eu hei de, enquanto viver, trabalhar por salvá-la das garras de Simão Botelho. Se seu pai lhe faltar, fico eu. Se as leis a não defenderem dos ataques do seu demônio, eu farei ver ao valentão que a vitória sobre os aguadeiros não o poupa ao desgosto de ser levado a pontapés para fora da casa de meu tio Tadeu de Albuquerque.
  • Então o primo quer me governar!? - atalhou ela com desabrida irritação.
  • Quero-a dirigir enquanto a sua razão precisar de auxílio. Tenha juízo e eu serei indiferente ao seu destino. Não a enfado mais, prima Teresa. Baltasar Coutinho foi dali procurar seu tio, e contou-lhe o essencial do diálogo. Tadeu, atônito da coragem da filha e ferido no coração e direitos paternais, correu ao quarto dela, disposto a espancá-la. Reteve-o Baltasar, reflexionando-lhe que a violência prejudicaria muito a crise, sendo coisa de esperar que Teresa fugisse de casa. Refreou o pai a sua ira, e meditou. Horas depois, chamou sua filha, mandou-a sentar ao pé de si, em termos serenos e gesto bem composto, lhe disse que era sua vontade casá-la com o primo; porém, que ele já sabia que a vontade de sua filha não era essa. Ajuntou que a não violentaria; mas também não consentiria que ela, sovando aos pés o pundonor de seu pai, se desse de coração ao filho do seu maior inimigo. Disse mais que estava a resvaIar na sepultura, e mais depressa desceria a ela, perdendo o amor da filha, que ele já considerava morta. Terminou perguntando a Teresa se ela duvidava entrar num convento, e a esperar que seu pai morresse, para depois ser desgraçada à sua vontade. Teresa respondeu, chorando, que entraria num convento, se essa era a vontade de seu pai; porém, que se não privasse ele de a ter em sua companhia nem a privasse a ela dos seus afetos, por medo de que sua filha praticasse alguma ação indigna, ou lhe desobedecesse no que era virtude obedecer. Prometeu-lhe julgar-se morta para todos os homens, menos para seu pai. Tadeu ouviu-a, e não lhe replicou. IV O coração de Teresa estava mentindo. Vão pedir sinceridade ao coração! Para finos entendedores, o diálogo do anterior capítulo definiu a filha de Tadeu de Albuquerque. E mulher varonil, tem força de caráter, orgulho fortalecido pelo amor, desapego das vulgares apreensões, se são apreensões a renúncia que uma filha fez do seu alvedrio às imprevidentes e caprichosas vontades de seu pai. Diz boa gente que não,

e eu abundo sempre no voto da gente boa. Não será aleive atribuir-lhe uma pouca de astúcia ou hipocrisia, se quiserem; perspicácia seria mais correto dizer. Teresa adivinha que a lealdade tropeça a cada passo na estrada real da vida, e que os melhores fins se atingem por atalhos onde não cabem a franqueza e a sinceridade. Estes ardis são raros na idade inexperta de Teresa; mas a mulher do romance quase nunca é trivial, e esta de que rezam os meus apontamentos era distintíssima. A mim me basta crer em sua distinção, a celebridade que ela veio a ganhar à conta da desgraça. Da carta que ela escreveu a Simão Botelho, contando as cenas descritas, a crítica deduz que a menina de Viseu contemporizava com o pai, pondo a mira no futuro, sem passar pelo dissabor do convento, nem romper com o velho em manifesta desobediência. Na narrativa que fez ao acadêmico omitiu ela as ameaças do primo Baltasar, cláusula que. a ser transmitida, arrebataria de Coimbra o moço, em quem sobejavam brios e bravura para mantê-los. Mas não é esta ainda a carta que surpreendeu Simão Botelho. Parecia bonançoso o céu de Teresa. Seu pai não falava em claustro nem em casamento. Baltasar Coutinho voltara ao seu solar de Castro-d'Aire. A tranqüila menina dava semanalmente estas boas novas a Simão, que, aliando às venturas do coração as riquezas do espírito, estudava incessantemente, e desvelava as noites arquitetando o seu edifício de futura glória. Ao romper d'alva dum domingo de junho de 1803, foi Teresa chamada para ir com seu pai à primeira missa da igreja paroquial. Vestiu-se a menina, assustada, e encontrou o velho na antecâmara a recebê-la com muito agrado, perguntando-lhe se ela se erguia de bons humores para dar ao autor de seus dias um resto de velhice feliz. O silêncio de Teresa era interrogador.

  • Vais hoje dar a mão de esposa a teu primo Baltasar, minha filha. É preciso que te deixes cegamente levar pela mão de teu pai. Logo que deres este passo difícil, conhecerás que a tua felicidade é daquelas que precisam ser impostas pela violência. Mas repara, minha querida filha, que a violência dum pai é sempre amor. Amor tem sido a minha condescendência e brandura para contigo. Outro teria subjugado a tua desobediência com maus tratos, com os rigores do convento, e talvez com o desfalque do teu grande patrimônio. Eu, não. Esperei que o tempo te aclarasse o juízo, e felicito-me de te julgar desassombrada do diabólico prestígio do maldito que acordou o teu inocente coração. Não te consultei outra vez sobre este casamento, por temer que a reflexão fizesse mal ao zelo de boa filha com que tu vais abraçar teu pai, e agradecer-lhe a prudência com que ele respeitou o teu gênio, velando sempre a honra de te encontrar digna do seu amor. Teresa não desfitou os olhos do pai; mas tão abstraída estava, que escassamente lhe ouviu as primeiras palavras, e nada das últimas.
  • Não me respondes, Teresa?! - tornou Tadeu, tomando-lhe cariciosamente as mãos.
  • Que hei de eu responder-lhe, meu pai? - balbuciou ela.
  • Dá-me o que te peço? Enches de contentamento os poucos dias que me restam?
  • E será o pai feliz com o meu sacrifício?
  • Não digas sacrifício, Teresa... Amanhã a estas horas verás que transfiguração se fez na tua alma. Teu primo é um composto de todas as virtudes; nem a qualidade de ser um

desusadas. "E há de tudo acabar assim? - pensava ele, com a face entre as mãos, encostado à sua banca de estudo. - Ainda há pouco eu era tão feliz!... - Feliz! - repetiu ele, erguendo-se de golpe. - Quem pode ser feliz com a desonra duma ameaça impune Mas eu perco-a! Nunca mais hei de vê-la!... Fugirei como um assassino, e meu pai será o meu primeiro inimigo, e ela mesmo há de horrorizar-se da minha vingança... A ameaça só ela a ouviu; e, se eu tivesse sido aviltado no conceito de Teresa pelos insultos do miserável, talvez que ela os não repetisse. Simão Botelho releu a carta duas vezes, e à terceira leitura achou menos afrontosas as bravatas do fidalgo cioso. A5 linhas finais desmentiam formalmente a suspeita do aviltamento, com que o seu orgulho o atormentava: eram expressões ternas, súplicas ao seu amor como recompensa dos passados e futuros desgostos, visões encantadoras do futuro, novos juramentos de constância, e sentidas frases de saudade. Quando o arreeiro bateu à porta, Simão Botelho já não pensava em matar o homem de Castro-d'Aire; mas resolvera ir a Viseu, entrar de noite, esconder-se e ver Teresa. Faltava-lhe, porém, casa de confiança onde se ocultasse. Nas estalagens, seria logo descoberto. Perguntou ao arreeiro se conhecia alguma casa em Viseu onde ele pudesse estar escondido uma noite ou duas, sem receio de ser denunciado. O arreeiro respondeu que tinha, a um quarto de légua de Viseu, um primo ferrador; e não conhecia em Viseu senão os estalajadeiros. Simão achou aproveitável o parentesco do homem, e logo daí o presenteou com uma jaqueta de peles e uma faixa de seda escarlate, à conta de maiores valores prometidos, se ele o bem servisse numa empresa, amorosa. No dia seguinte, chegou o acadêmico a casa do ferrador. O arreeiro deu conta ao seu parente do que vinha tratado com o estudante. Foi Simão Botelho cautelosamente hospedado, e o arreeiro abalou no mesmo ponto para Viseu, com uma carta destinada a uma mendiga, que morava no mais impraticável beco da terra. A mendiga informou-se miudamente da pessoa que enviava a carta, e saiu, mandando esperar o caminheiro. Pouco depois. voltou ela com a resposta, e o arreeiro partiu a galope. Era a resposta um grito de alegria. Teresa não refletiu, respondendo a Simão que naquela noite se festejavam os seus anos, e se reuniam em casa os parentes. Disse-lhe que às onze horas em ponto ela iria ao quintal e lhe abriria a porta. Não esperava tanto o acadêmico. O que ele pedia era falar-lhe da rua para a janela do seu quarto, e receava impossível este prazer, que ele avaliava o máximo. Apertar-lhe a mão, sentir-lhe o hálito, abraçá-la talvez, cometer a ousadia de um beijo, estas esperanças, tão além de suas modestas e honestas ambições, igualmente o enlevavam e assustavam. Enlevo e susto em corações que se estreiam na comédia humana são sentimentos congeniais. A hora da partida, Simão tremia, e a si mesmo pedia contas da timidez, sem saber que os encantos da vida, os mais angélicos momentos da alma, são esses lances de misterioso alvoroço que aos mais seródios de coração sucedem em todas as razões da vida, e a todos os homens, uma vez ao menos. As onze horas em ponto estava Simão encostado á porta do quintal, e a distância convencionada o arreeiro com o cavalo à rédea. A toada da música, que vinha das salas remotas, alvoroçava-o, porque a festa em casa de Tadeu de Albuquerque o surpreendera. No longo termo de três anos nunca ele ouvira música naquela casa. Se ele soubesse o dia natalício de Teresa, espantara-se menos da estranha alegria daquelas salas, sempre

fechadas como em dias de mortório. Simão imaginou desvairadamente as quimeras que voejam, ora negras, ora translúcidas, em redor da fantasia apaixonada. Não há baliza racional para as belas, nem para as horrorosas ilusões, quando o amor as inventa. Simão Botelho, com o ouvido colado à fechadura, ouvia apenas o som das flautas, e as pancadas do coração sobressaltado. V Baltasar Coutinho estava na sala, simulando vingativa indiferença por sua prima. As irmãs do fidalgo e a demais parentela da casa não deixavam respirar Teresa. Moças e velhas, todas, uma, se repetiam, aconselhando-a a reconciliar-se com seu primo, e dar a seu pai a alegria que o pobre velho tanto rogava Deus, antes de fechar os olhos. Replicava Teresa que não queria mal a seu primo, nem sequer estava sentida dele; que era sua amiga, e se-lo-ia sempre enquanto ele lhe deixasse livre o coração. O velho esperava muito daquela noitada de festa. Alguns parentes presumidos de circunspectos, lhe tinham dito que seria proveitoso regalar a filha com os prazeres congruentes à sua idade, dando-lhe ensejo a que ela repartisse o espírito, concentrado num só ponto, por diversões em que a natural vaidade se preocupa, e a força do amor contrariado se vai a pouco e pouco quebrantando. Aconselharam-lhe as reuniões amiúdas, já em sua casa, já na dos seus parentes, para deste modo Teresa se mostrar a muitos, ser cortejada de todos, e ter em opinião de menos valia o único homem com quem falava, e a quem julgava superior a todos. O fidalgo acedeu, mas com dificuldade: é que tinha lá um sistema seu de ajuizar das mulheres, vivera trinta anos de vida libertina e dispendiosa, e se estava agora saboreando na economia e na quietação. Os anos de Teresa eram pela primeira vez festejados com estrondo. A morgada viu então o que era o minueto da corte e certos jogos de prendas com que os intervalos naqueles tempos se aligeiravam em delícias, sem fadiga do corpo, nem desagrado da moral. Mas, de agitada que estava, Teresa não compartia do gozo dos seus hóspedes. Desde que soaram as dez horas daquela noite, a rainha da festa parecia tão alienada das finezas com que as senhoras e homens à competência a lisonjeavam, que Baltasar Coutinho deu tento do desassossego de sua prima, e teve a modéstia de imaginar que ela se ofendera da indiferença dele, Generoso até ao perdão, o morgado de Castro-d'Aire, compondo o rosto com gesto grave e melanc6lico, dirigiu-se a Teresa, e pediu-lhe desculpa da frieza que ele disse ser como a das montanhas, que têm vulcões por dentro e neve por fora. Teresa teve a sinceridade de responder que não tinha reparado na frieza de seu primo, e chamou para junto dela uma menina, para evitar que a montanha se fendesse em vulcões. Pouco depois ergueu-se e saiu da sala. Eram dez horas e três quartos. Teresa correra ao fundo do quintal, abrira a porta, e, como não visse alguém, tornou de corrida para a sala. No momento, porém, de subir a escada que ligava o jardim à casa, Baltasar Coutinho, que a espiava desde que ela saiu da sala, chegou a uma das janelas sobre o jardim, bem longe de imaginar que a via. Retirou-se, e entrou com Teresa na sala, ao mesmo tempo, por diversa porta. Decorridos alguns minutos, a menina saiu outra vez e o primo também. Teresa ouviu, a distância, o estrépito dum cavalo, quando passou ao patamar da escada. Baltasar também o ouviu, e notou que sua prima, receosa de ser vista e conhecida pela alvura do vestido, levava uma capa ou chale que a envolvia toda. O de Castro-d'Aire fez pé atrás para não ser visto. Teresa, porém, num relance de olhar temeroso, ainda vira um vulto retirar-se. Teve medo, e retrocedeu a largar a capa, e entrou na sala, ofegante de cansaço e pálida de medo.

  • Que tens, minha filha? - disse-lhe o pai - Já duas vezes saíste da sala, e vens tão alvoraçada! Tens algum incômodo, Teresa?

Velou Teresa o restante da noite, escrevendo a Simão a longa história dos seus terrores, e pedindo-lhe perdão de o ela não ter advertido do baile, por ficar doida de alegria com a sua vinda. No tocante ao plano de se encontrarem na seguinte noite não havia alteração na carta. Isto espantou o acadêmico. A seu ver, o vulto era Baltasar Coutinho, e o pai de Teresa devia ser avisado naquela mesma noite. Respondeu ele contando a história do incidente com o encapotado; receando, porém, assustar Teresa e privar-se da entrevista, escreveu nova carta em que não transluzia medo de ser atacado, nem sequer receio de marear-lhe a fama. Quis parecer a Simão Botelho que este era o digno porte de um amante corajoso. Passou o estudante aquele dia contando as longas horas, e meditando instantes nos funestos resultados que podia ter a sua temerária ida, se Baltasar Coutinho era aquele homem que reservara para melhor relance a vingança da provocação insolente. Mas de si para si tinha ele que pensar em que tal era mais cobardia que prudência. O ferrador tinha uma filha, moça de vinte e quatro anos, formas bonitas, um rosto belo e triste. Notou Simão os reparos em que ela se demorava a contemplá-lo, e perguntou-lhe a causa daquele olhar melancólico com que ela o fitava. Mariana corou, abriu um sorriso triste, e respondeu:

  • Não sei o que me adivinha o coração a respeito de vossa senhoria. Alguma desgraça está para lhe suceder...
  • A menina não dizia isso - replicou Simão - sem saber alguma coisa da minha vida.
  • Alguma coisa sei... - tornou ela.
  • Ouviu contar ao arreeiro?
  • Não, senhor. E que meu pai conhece o paizinho de vossa senhoria, e também conhece o senhor. E há bocadinho que eu ouvi estar meu pai a dizer a meu tio, que é o arreeiro que veio com vossa senhoria, que tinha suas razões para saber que alguma desgraça lhe estava para acontecer...
  • Por quê?
  • Por amor duma fidalga de Viseu, que tem um primo em Castro-d'Aire. Simão espantou-se da publicidade do seu segredo, e ia colher pormenores do que ele julgava mistério entre duas famílias, quando o mestre ferrador João da Cruz entrou no sobrado, onde o precedente diálogo se passara. A moça, como ouvisse os passos do pai, saíra lentamente por outra porta.
  • Com sua licença - disse mestre João. Dizendo, fechou por dentro ambas as portas, e sentou-se sobre uma arca.
  • Ora, meu fidalgo - continuou ele, descendo as mangas arregaçadas da camisa, e apertando-as com dificuldade nos grossos pulsos, como quem sabe as etiquetas das mangas - há de desculpar que eu viesse assim em mangas de camisa; mas não dei com a jaqueta...
  • Está muito bem, senhor João - atalhou o acadêmico.
  • Pois, senhor, eu devo um favor a seu pai, e um favor daquela casta. Uma vez armou-se aqui à minha porta uma desordem, a troco de um couce que um macho dum almocreve deu numa égua, que estava ferrando, e, em tão boa hora foi, que lhe partiu rente o jarrete por aqui, salvo tal lugar. João da Cruz mostrou na sua perna o ponto por onde fora fraturada a da égua, e continuou:
  • Eu tinha ali à mão o martelo, e não me tive que não pregasse com ele na cabeça do macho, que foi logo pra terra. O recoveiro de Carção, que era chibante, deitou as unhas a um bacamarte, que trazia entre uma carga, e desfechou comigo, sem mais tirte nem garte. "Ó alma danada! - disse-lhe eu - pois tu vês que o teu macho me aleijou esta égua, que custou vinte peças a seu dono, e que eu tenho de pagar, e dás-me um tiro por eu te atordoar o macho!?"
  • E o tiro acertou-lhe? - atalhou Simão.
  • Acertou; mas saberá vossa senhoria que me não matou; deu-me aqui por este braço esquerdo com dois quartos. E vai eu, entro em casa, vou à cabeceira da cama, e trago uma clavina, e desfecho-lha na tábua do peito. O almocreve caiu como um tordo, e não tugiu nem mugiu. Prenderam-me, e fui para Viseu e já lá estava há três anos, no ano que o paízinho de vossa senhoria veio corregedor. Andava muita gente a trabalhar contra mim, e todos me diziam que eu ia pernear na forca. Estava lá na enxovia comigo um preso a cumprir sentença, e disse-me ele que o senhor corregedor tinha muita devoção com as sete dores de Nossa Senhora. Uma vez que ele ia passando com a família para a missa, disse-lhe eu: - "Senhor corregedor, peço a vossa senhoria, pelas sete dores de Maria Santíssima, que me mande ir à sua presença para eu explicar a minha culpa a vossa senhoria". O paizinho de vossa senhoria chamou o meirinho-geral, e mandou tomar o meu nome. Ao outro dia fui chamado ao senhor corregedor, e contei-lhe tudo, mostrando-lhe ainda as cicatrizes do braço. Seu pai ouviu-me, e disse-me: - "Vai-te embora, que eu farei o que puder". O caso é, meu fidalgo, que eu saí absolvido, quando muita gente dizia que eu havia de ser enforcado à minha porta. Faz favor de me dizer se eu não devo andar com a cara onde o seu paizinho põe os pés?!
  • Tem o senhor João motivo para lhe ser grato, não há dúvida nenhuma.
  • Agora faz favor de ouvir o mais. Eu, antes de ser ferrador, fui criado de farda em casa do fidalgo de Castrod'Aire, que é o senhor Baltasar. Conhece-o vossa senhoria? Ora, se conhece...
  • Conheço de nome.
  • Foi ele que me abonou dez moedas de ouro para me estabelecer; mas paguei-lhas, Deus louvado. Há de haver seis meses que ele me mandou chamar a Viseu, e me disse que tinha trinta peças para me dar, se eu lhe fizesse um serviço. - "O que vossa senhoria quiser, fidalgo". E vai ele disse-me que queria que eu tirasse a vida a um homem. Isto buliu cá por dentro comigo, porque. a falar a verdade, um homem que mata outro num aperto não é matador de oficio, acho eu, não é assim?
  • De certo... - respondeu Simão, adivinhando o remate da história. - Quem era o homem que ele queria morto?
  • Era vossa senhoria... O homem! - disse o ferrador com espanto - O senhor nem sequer mudou de cor!