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Comparação de Canções: 'Alegria' de Caetano Veloso vs 'Pra não dizer das flores' de Gerald, Notas de aula de Música

Uma análise comparativa entre duas canções icónicas do período de protesto brasileiro (1964-1968): 'alegria, alegria' de caetano veloso e 'pra não dizer que não falei das flores' de geraldo vandré. O texto aborda as semelhanças e diferenças entre essas obras musicais, destacando os temas de engajamento político, amor, expiação e angústia. Além disso, o documento discute as intenções políticas e pessoais dos autores e a evolução de suas opiniões em relação às canções.

O que você vai aprender

  • Qual é a importância da censura militar na produção musical do período de protesto brasileiro (1964-1968)?

Tipologia: Notas de aula

2022

Compartilhado em 07/11/2022

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4.6

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[23] GARRAFA. Vol. 16, n. 46, Outubro-Dezembro 2018. “Alegrias, espera e outras...”, p. 23 - 46. ISSN 18092586
ALEGRIAS, ESPERAS E OUTRAS CRÍTICAS DO SUJEITO
CANCIONAL CENSURADO
Leonardo Davino de Oliveira (Professor do Instituto de Letras da UERJ)
RESUMO
Este ensaio apresenta uma leitura comparatista de duas canções emblemáticas: “Alegria, alegria” de
Caetano Veloso (1967) e “Pra não dizer que não falei das flores” de Geraldo Vandré (1968). Ambas
apresentam o espírito do tempo (zeitgeist), são crônicas de um momento singularmente duro para a
justiça social e a liberdade de expressão individual no Brasil. Opero com uma concepção mais ampla
de crônica, que permite entender a atuação dos cancionistas como críticos dos variados e complexos
aspectos da vida: do engajamento ao desbunde, do político ao banal. A crônica desliza dos jornais
para o corpo, para a voz desses cantores intelectuais críticos da situação do estado de coisas no
Brasil.
Palavras-chave
: Canção popular. Crônica. Censura.
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ALEGRIAS, ESPERAS E OUTRAS CRÍTICAS DO SUJEITO

CANCIONAL CENSURADO

Leonardo Davino de Oliveira (Professor do Instituto de Letras da UERJ)

RESUMO

Este ensaio apresenta uma leitura comparatista de duas canções emblemáticas: “Alegria, alegria” de Caetano Veloso (1967) e “Pra não dizer que não falei das flores” de Geraldo Vandré (1968). Ambas apresentam o espírito do tempo (zeitgeist), são crônicas de um momento singularmente duro para a justiça social e a liberdade de expressão individual no Brasil. Opero com uma concepção mais ampla de crônica, que permite entender a atuação dos cancionistas como críticos dos variados e complexos aspectos da vida: do engajamento ao desbunde, do político ao banal. A crônica desliza dos jornais para o corpo, para a voz desses cantores intelectuais críticos da situação do estado de coisas no Brasil.

Palavras-chave: Canção popular. Crônica. Censura.

ABSTRACT

This essay presents a comparative reading of two emblematic songs: “Alegria, alegria” by Caetano Veloso (1967) and “Pra não dizer que não falei das flores” by Geraldo Vandré (1968). Both present the spirit of time (zeitgeist), they are chronic of a singularly hard moment for social justice and individual freedom of expression in Brazil. I operate with a broader conception of the chronicle, which allows us to understand the performance of the songwriters as critics of the varied and complex aspects of life: from engagement to hip, from politics to banality. The chronicle slides from the newspapers to the body, to the voice of these intellectual singers critical of the state of affairs in Brazil.

Keywords: Popular song. Chronic. Censorship.

campanha pelas Diretas já (1984), passando pelos enterros de vítimas da ditadura militar, em destaque: o jornalista Vladimir Herzog (1975) e o operário Santo Dias da Silva (1979). O apelo emotivo-romântico, mais próximo a “minha terra tem palmeiras onde canta o sabiá” (do poeta Gonçalves Dias) do que a “Brasil braseiro de rosas” (do poeta Sousândrade), impulsiona os tons épicos da canção de Vandré. Enquanto a consciência fragmentada de si e do país, cantada em flashes cinematográficos, marca a canção de Caetano. Ambas, porém, apresentam o espírito do tempo ( z eitgeist ), são crônicas de um momento singularmente duro para a justiça social e a liberdade de expressão individual no Brasil. Importa lembrar que, se as canções populares das décadas de 1930 e 40 eram majoritariamente dominadas pelas crônicas, sejam brejeiras, amorosas, jocosas, satíricas, da vida cindida entre um país rural e um outro (espelho do primeiro) com pretensões a moderno/cosmopolita, e nos anos 1950 a bossa nova atuou para sofisticar o gosto musical do brasileiro médio urbano, a discussão acerca da autenticidade nacional ganhou fôlego na década de 1960 com a vida se deslocando do livro (para poucos) e ganhando a canção (para o “povo”). Passada a fase eufórica juscelinista, a canção se politiza e passa a tratar das vicissitudes da multidão, recuperando traços de brasilidade dos tipos cancionais pré-bossa- novistas. Vejamos as consonâncias e as dissonâncias possíveis entre “Alegria, alegria” e “Pra não dizer que não falei das flores”, ou “Caminhando”, como ficou popularmente conhecida. Fato, aliás, também ocorrido com “Alegria, alegria”, muito mais conhecida por “Sem lenço, sem documento”.

CAMINHANDO CONTRA O VENTO / SEM LENÇO E SEM DOCUMENTO CAMINHANDO E CANTANDO E SEGUINDO A CANÇÃO

A distância de postura entre os sujeitos cancionais de cada canção aparece expressa desde os primeiros versos. Enquanto o sujeito da canção de Caetano Veloso canta um “caminhando” contrário ao que o vento, o espírito do tempo ( zeitgeist ), exige, a saber, o engajamento político do indivíduo nas lutas sociais, o sujeito da canção de Geraldo Vandré convoca o “povo” a seguir essa canção (esse ar) da época. “Olha que a vida tão linda se perde em tristezas assim / Desce o teu rancho cantando essa tua esperança sem fim / Deixa

que a tua certeza se faça do povo a canção / Pra que teu povo cantando teu canto / Ele não seja em vão”, canta o sujeito de “Porta-estandarte”, de Geraldo Vandré e Fernando Lona, em uníssimo com o sujeito de “Caminhando”. Se canção é sopro, é ar, o sujeito da canção “Pra não dizer que não falei das flores” convida ao canto coral, crente de que o empenho deve estar no coletivo, nas passeatas que reuniam jovens exigindo mudanças nas estruturas antigas de nosso sistema político. Sublinhe-se que Vandré mais tarde iria rejeitar os usos políticos de sua canção, afirmando que menos do que uma “música de protesto”, “Caminhando” seria uma “canção de amor”, no máximo, “crônica da realidade”, “canção expiatória”, “música de angústia” (NUZZI, 2016). Em “Alegria, alegria”, o “vento” dialoga com outra canção também de 1967 – “Travessia”, de Milton Nascimento e Fernando Brant, cujos versos “Meu caminho é de pedra / Como posso sonhar? / Sonho feito de brisa / Vento vem terminar” refletiam a urgência de afirmação da vida e a desesperança no coletivo expressas pelo sujeito da canção de Caetano. Sem tempo a perder, este sujeito recusa o sonho e quer “seguir vivendo”. Atitude que corrobora com os versos finais de “Travessia”: “Já não sonho, hoje faço / Com meu braço e meu viver”. O personalismo, talvez o narcisismo enviesado, ou seja, aquele que faz sem esperar companhia ou retorno de outrem, unem os sujeitos de Caetano e Milton/Fernando. Por outro lado, afasta-os do sujeito de Vandré. Fato é que desde o título o sujeito de “Caminhando”, ao se referir às “flores” está, por metonímia, evocando os desbundados, marginais, alienados adeptos do slogan “paz e amor” e que, dirá o sujeito mais adiante, “acreditam nas flores vencendo o canhão”. Lembremos que a imagem do hippie estadunidense serviu de modelo para a dicionarização do desbundado entre nós: cabelos longos, roupas largas, uma flor em uma das mãos e o símbolo “paz e amor” na outra mão. Seria um gesto do cantor “engajado” convocando os “alienados” para juntarem-se ao canto? Mais adiante o mesmo sujeito convocará os “soldados armados, amados ou não” a também compor esse coro por um país melhor. “Caminhando”, seria, portanto, uma canção feita por um sujeito empenhado na união da direita política radical com os “alienados”? Ao resguardar-se na afirmação “pra não dizer

contrário, se lança na realidade urbana e múltipla para estilhaçar a confiança nas instituições (Estado e religião), representadas pelo casamento, pela imprensa, pela escola. Aqui o sujeito atravessa a cidade sufocada de “tantas notícias” massacrantes e desestabilizadoras da individualidade, na outra há a crença na igualdade catártica entre as pessoas que serão guiadas pelo sujeito da canção que vive para consertar “a morte, o destino, tudo [que] estava fora do lugar”. Ao desacreditar, o sujeito da canção de Caetano Veloso, para “seguir vivendo”, precisa ir indo; enquanto que o sujeito da canção de Vandré segue crendo no poder aglutinador, amparando-se no noutro, delegando ao coletivo as ações que urgem autonomia e emancipação. Consequentemente, o sujeito de “Alegria, alegria” inventa gestos inapreensíveis pelo sistema paternalista e tirano, colonialista e imperialista. Dito de outro modo era preciso superar o otimismo patriótico, adotando certo pessimismo afirmativo, base da negatividade tropicalista , para que o desmascaramento social e a multiplicidade de dicções e tensões impulsionassem mudanças profundas na motivação de ser brasileiro. Com este projeto de afirmação de uma terceira via, Caetano confundiu não apenas as forças repressoras de direita, mas também os até então colegas à esquerda. Diferentemente do sujeito de “Caminhando”, que ainda queria unir desbundados e armados. Citando o Nietzsche de Ecce Homo , João Camilo Penna (2017) escreve que “o essencial da tragédia não é ‘livra-se’, ou ‘purificar’ os afetos perigosos, o ‘pavor e a compaixão’, por meio de veemente descarga’. O dionisíaco não tem absolutamente nada a ver com esta visão medíocre do trágico. Ele consiste, ao invés, na superação do pessimismo, ‘para além do pavor e da compaixão’, como eterno prazer do devir que compreende também o prazer da destruição, ou seja: ‘ser em si mesmo’” (p. 102). Eis o olhar direto nos olhos do negativo que Caetano Veloso pretendia com a Tropicália. E fez isso seguindo a máxima do poeta Vladimir Maiakóvski, “sem forma revolucionária não há arte revolucionária”, e ecoando as famosas palavras da poeta Lou Andreas-Salomé, “Não tente adequar sua vida a modelos, nem queira você mesmo ser um modelo para ninguém”. O sujeito de Caetano Veloso não diz como deve ser feito, mas impele à ação, ao movimento, à experimentação, deixando o ouvinte livre para trilhar o próprio caminho.

O SOL SE REPARTE EM CRIMES / ESPAÇONAVES, GUERRILHAS / EM CARDINALES BONITAS / EU VOU VEM, VAMOS EMBORA, QUE ESPERAR NÃO É SABER

O sujeito de “Alegria, alegria” canta a presentificação imanente e constituinte em contraposição ao desejo de futuro, horizonte transcendente, ordenador (externo e superior). Nesse sentido, enquanto o sujeito de Vandré convida, o sujeito de “Alegria, alegria” vai fazendo, experimentando. Ambos em suas formas contínuas: “Caminhando...”. Um buscando a união, a conjunção pelas semelhanças no desejo de futuro melhor, o outro despojando-se de valores antigos de controle da identidade social. O sujeito de Caetano está na rua, não se furta do enfrentamento. Ele adere incondicionalmente ao real e prefere afirmar mais a individualidade, sinônimo de singularidade na multidão, do que ser “massa”, facilmente controlada e manipulável. O desbundado se via nessa encruzilhada: mudar o mundo ou “curtir um barato”? Diferente da esquerda armada, os desbundados não pretendiam tomar o poder, ou impor um modelo de sistema melhor. Ao contrário, os desbundados queriam cair fora de todo e qualquer sistema. Caetano Veloso (1997) escreve que desbunde é “esse nome que a contracultura ganhou entre nós – a bunda tornada ação com o prefixo des a indicar antes soltura e desgoverno do que ausência – deixava o hip – quadril – dos hippies na condição de metáfora leve demais” (p. 469). Para o cancionista, “desbundar significava deixar-se levar pela bunda, tomando-se aqui como sinédoque para ‘corpo’ a palavra afro-brasileira que designa essa parte avizinhada das funções excrementícias e do sexo (mas que não se confunde totalmente com aquelas nem com este), sendo uma porção exuberante de carne que, não obstante, guarda apolínea limpeza formal” (idem). A fuga pelo misticismo, orientalismo, terapias alternativas, psicologia corporal, sexualidade libertária e ecologia regiam a ética dos desbundados. Fuga, nesse caso, é mais o reconhecimento do fracasso das velhas formas de viver e menos uma recusa do enfrentamento dos problemas. Se a revolução implicava em mudança nas instituições, os desbundados resistiam pelo inapreensível, inclassificável, no ir indo visceral do movimento do corpo solto na rua, deslocando-se da asfixia paralisante. Portanto, o desbunde no Brasil

da autonomia do indivíduo em meio à multidão. “Por que os homens, quando se encontram na comunidade, têm de abafar as suas diferenças pessoais? Os homens podem se congregar também através das ações individuais”, pergunta e afirma Marcelo, personagem de Stella Manhattan (SANTIAGO, 2017, p. 133).

EM CARAS DE PRESIDENTES / EM GRANDES BEIJOS DE AMOR / EM DENTES, PERNAS, BANDEIRAS / BOMBA BRIGITTE BARDOT QUEM SABE FAZ A HORA, NÃO ESPERA ACONTECER

Há um misto de ingenuidade e crueldade no sujeito que diz “quem sabe faz a hora”, como se as possibilidades e oportunidades para fazer “acontecer” fossem iguais para todos os brasileiros. E como se a “revolução” fosse apenas uma questão de “vontade”. Essa alusão à igualdade entre as pessoas nega a multiplicidade da multidão. É justamente desse todos- povo que o sujeito de “Alegria, alegria” vai se descolar, buscando percorrer caminho próprio de dor e delícia, desviando-se tragicamente do controle do Estado. Num gesto semelhante ao Doutor Fausto de Thomas Mann, que escreveu: “Para o adepto das luzes, o termo e o conceito ‘povo’ sempre conservam qualquer traço de arcaico, inspirador de apreensões, e ele sabe que basta apostrofar a multidão de ‘povo’ para induzi-la à maldade reacionária” (2011, p. 55). Para Zuza Homem de Mello (2003), “de todos os participantes do II Festival da Excelsior, quem mais se beneficiou foi inegavelmente Geraldo Vandré. Seu desejo de fazer canções identificadas com os anseios e os valores culturais do povo de seu país passou a ser viável e, principalmente, reconhecido” (p. 92). Para o pesquisador, “a vitória foi uma injeção de ânimo como ele [Geraldo] nunca sentira antes. Vandré passou a se dedicar sozinho a uma obra que se alinhava com uma nova forma de arte no Brasil, as músicas de festival” (idem). O fato das canções conterem críticas não é algo necessariamente novo, a canção já é usada nas feiras medievais para noticiar, reivindicar, intervir, criticar, comunicar, panfletar. A chamada “canção de protesto” moderna é irmã das protest songs estadunidenses e da nueva canción latino-americana, mantendo o caráter de resistência cultural. Não podemos esquecer que Ludwig van Beethoven utiliza o “Hino da alegria”, ou a “Ode à alegria”,

poema de Friedrich Schiller, para criar o quarto movimento da sua “Nona sinfonia”. Isto porque, neste poema Schiller defende uma visão idealista da humanidade como sinônimo de irmandade, visão compartilhada por Beethoven. A “Ode à alegria” de Beethoven, portanto, divulga (poderíamos dizer “panfleta”?) as ideias de fraternidade universal e o pensamento livre, em oposição à injustiça e tirania. Essa informação é importante para pensar os versos “Somos todos iguais, braços dados ou não” que agem “informando e delineando a necessidade de uma arte participante, forjando o mito do alcance revolucionário da palavra poética” (HOLLANDA, 2004, p. 21). Alinhada ao fortalecimento da identidade latino-americana promovida pela Revolução Cubana de 1959, no Brasil, tendo como artífices Carlos Lyra, Nelson Lins e Barros, Geraldo Vandré e Sérgio Ricardo, a “canção de protesto” vai propor a valorização da brasilidade e a união nacional e latino-americana em torno da defesa e da salvaguarda desta identidade, que naquele momento significava o encontro com a “música de raiz” e a “fé no povo”. Por exemplo, depois de saldar “Quechuas, Tamoios, Mapuches, Tabajaras, Guaranis / Incas, Astecas e Maias, Aimarás e Tupis”, o sujeito da canção “De América” (Geraldo Vandré), canta: “Si es quien seguir al mismo fin / Llega a sentir a la unidad / Hay que buscar, hay que seguir / Y repartir la soledad / De américa, de américa”. Sem esquecermos-nos de “Soy loco por ti América” (Torquato Neto, Gilberto Gil e José Carlos Capinan): “Estou aqui de passagem, sei que adiante um dia vou morrer de susto, de bala ou vício”. Nas canções de Vandré o conteúdo político supera a tríade solar bossa-novista – flor, amor e dor – e glosa o “morro” e o “sertão”. Não deixa de ser curioso como isso contamina também o sujeito de Caetano Veloso que vai rimar “Brasil” e “fuzil”, em detrimento do nacionalista “anil”. Escreve Caetano: “O tropicalismo começou em mim dolorosamente. O desenvolvimento de uma consciência social, depois política e econômica, combinada com exigências existenciais, estéticas e morais que tendiam a pôr tudo em questão, me levou a pensar sobre as canções que ouvia e fazia. Tudo o que veio a se chamar de tropicalismo se nutriu de violentações de um gosto amadurecido com firmeza e defendido com lucidez” (1997, p. 254).

Em Caetano Veloso, mediação e representatividade são problematizadas quando o cancionista se depara com a ação de Paulo Martins, personagem do filme Terra em transe do cineasta Glauber Rocha. Lembremos: Paulo Martins, político à esquerda e poeta, tapa a boca de um líder sindical e diz: “Estão vendo quem é o povo? Um analfabeto, um imbecil, um despolitizado”. A leitura que Caetano faz da cena é, aliás, duramente criticada por Roberto Schwarz no ensaio “ Verdade tropical : um percurso de nosso tempo” (2012), em que o autor apresenta uma análise do livro de memórias de Caetano Veloso (1997). Escreve o cancionista: “quando o poeta de Terra em transe decretou a falência da crença nas energias libertadoras do ‘povo’, eu, na plateia, vi, não o fim das possibilidades, mas o anúncio de novas tarefas para mim” (p. 116). A catarse medicamentosa, veneno que cura, experimentada por Caetano fará o tropicalista romper com qualquer transcendência consoladora, bem como com o papel de mediador incorporado pelo “homem da terra” que persiste e luta contra a tirania e exploração latifundiária: “Eu que plantei muito e não tenho nada / Ouço tudo e calo na caminhada (...) Quanto mais eu ando, mais vejo estrada / Mas se eu não caminho eu não sou é nada” (“Ventania”, de Geraldo Vandré e Hilton Acioli). Para Rafael Julião (2017), “a representação de povo brasileiro feita nesse universo político-ideológico (e não o povo em si) é posta em xeque no filme de Glauber, o que leva Caetano a rever aquelas posições, que ele já vinha olhando com desconfiança desde antes, conforme exemplifica o artigo de 1965, em que defende a bossa nova a despeito do nacionalismo anti-imperialista de Tinhorão, ou contra as propostas de Augusto Boal no mesmo ano” (p. 367). Por sua vez, Roberto Schwarz (2012) escreve que “do ponto de vista da esquerda, a cena – uma invenção artística de primeira força – era um compêndio de sacrilégios, fazendo uma espécie de chacota dolorosa das certezas ideológicas do período” (p. 77). Schwarz parece não compreender que para Caetano o gesto do poeta no filme se desdobrava no verso tropicalista “Não temos tempo de temer a morte”, ou seja, o que era uma metáfora, também era diagnóstico e urgia ser terapêutico.

O SOL NAS BANCAS DE REVISTA / ME ENCHE DE ALEGRIA E PREGUIÇA / QUEM LÊ TANTA NOTICÍA? PELOS CAMPOS HÁ FOME EM GRANDES PLANTAÇÕES / PELAS RUAS MARCHANDO INDECISOS CORDÕES

Na única vez em que a palavra “alegria” do título aparece no plano discursivo- literário o que chama a atenção é que ao invés de surgir dobrada, a “alegria” vem acompanhada de “preguiça” – macunaímica? De repetir velhas formas de enfrentamento? A canção que vinha sendo executada em ritmo acelerado, condizente com o ir indo do sujeito cancional, desacelera, descontinua o caminhar preguiçosamente, o sujeito cancional alonga as vogais no exato momento em que o sol bate na banca de revista revelando o Sol – o jornal contracultural, contra a cultura do mesmo, do sufoco ideológico e das utopias. Esse procedimento rítmico também se dará quando o sujeito evocar “ela”, a que “pensa em casamento” – “ela nem sabe até pensei / em cantar na televisão / o sol é tão bonito” – ratificando a apreciação da luminosidade em tempos sombrios : ela/televisão/sol, trindade promotora da singularidade do sujeito tropicalista no mundo de “amores vãos”. Sobre o título, Caetano comenta que “havia a distância necessária para a crítica – para mim, uma condição da liberdade –, mas havia a alegria imediata da fruição das coisas” (1997, p. 166). E completa escrevendo que “essa consciência da alegria assim situada me levou a eleger como título (sem, contudo, incluir na canção) o cordão “alegria, alegria!”, que o animador de TV Chacrinha emprestara do bom cantor de samba-jazz em vias de aderir a um comercialismo vulgar (mas nem por isso menos delicioso) Wilson Simonal” (idem). Destacam-se ainda os versos “Sem lenço sem documento / Nada no bolso ou nas mãos / Eu quero seguir vivendo, amor / Eu vou” que fazem uma citação direta e desconstrutiva de Jean-Paul Sartre (1984) quando este escreve que o que ama em sua loucura é que ela sempre o protegeu contra as seduções da elite: “nunca me julguei feliz proprietário de um talento: minha única preocupação era salvar-me – nada nas mãos, nada nos bolsos – pelo trabalho e pela fé” (p. 183). Ao mesmo tempo, a citação ajuda o sujeito caetânico a rejeitar também as flores dos hippies estadunidenses, já que suas mãos seguem vazias, livres. Este jogo lúdico e intertextual entre o testemunho e o questionamento

depende do coro. “A alegria é a prova dos nove / E a tristeza é teu porto seguro”, canta o sujeito de “Geleia geral” (Torquato Neto e Gilberto Gil), indicando que a alegria tropical não é apolítica. O desbundado brasileiro sabe que o golpe militar foi forjado nas franjas conservadoras de nossa frágil vivência republicana e democrática.

POR ENTRE FOTOS E NOMES/ OS OLHOS CHEIOS DE CORES / O PEITO CHEIO DE AMORES VÃOS AINDA FAZEM DA FLOR SEU MAIS FORTE REFRÃO / E ACREDITAM NAS FLORES VENCENDO O CANHÃO

Os versos emparelhados – “saber”, “acontecer” – do refrão de “Caminhando” apontam a intenção de uno, ou seja, as rimas emparelhadas figurativizam o convite para que cantor e ouvinte sigam em uníssono. Diferentemente de “Alegria, alegria”, cujo refrão – “Eu vou, por que não? Por que não?” – funciona mais como uma lírica intimidação do que um convite. Segundo Augusto de Campos, “no contexto maior da música popular brasileira, aquele ‘Por que não?’ do estribilho tomou características de um desabafo-desafio. E foi com esse sentido que o compositor, na primeira apresentação da música, triunfando sobre o desagrado com que um público preconcebido recebera o conjunto acompanhante dos Beat Boys, terminou, ao final, por proclamar, braços abertos à plateia conquistada: ‘Por que não?’” (1978, p. 153). No enfrentamento da vida e sua afirmação trágica, um (“Caminhando”) crê não ser reativo – porque supostamente convida todos, está aberto à alteridade – e é, o outro (“Sem lenço, sem documento”) poderia se pensar reativo, por não diluir-se na massa, e não é, posto que promova a alteridade. Para Marcos Napolitano, “a busca constante de referências musicais e culturais revelava as vicissitudes de um artista [Vandré] que, mais do que outros, incorporou a tarefa de criação de uma canção ‘de massa’, engajada e exortativa, dentro das estruturas do mercado. Essa tarefa era incrementada pela radicalização do quadro político do país, que parecia impregnar o trabalho de Vandré mais do que o de outros músicos” (NAPOLITANO, 2007, p. 127). E completa destacando que “a partir de 1967, [Geraldo] tornou-se o músico brasileiro mais identificado com a versão brasileira da “canção de

protesto”, superando Nara Leão. Essa mudança de referencial foi causa e efeito da grande popularização da MPB, entre fins de 1966 e 1968, cuja demanda requeria canções mais diretas e exortativas, inspiradas nas formas musicais anteriores à bossa nova” (idem). Lembremos-nos dos versos “O mundo foi rodando nas patas do meu cavalo / E nos sonhos que fui sonhando, as visões se clareando / As visões se clareando, até que um dia acordei” (“Disparada”, de Théo de Barros e Geraldo Vandré). É esse sujeito esclarecido e desperto que toma para si a tarefa de tocar – aboiar – o levante popular. Mas isso não é manter o povo “gado”? O povo deixa de ser “gado” só porque quem está guiando agora é um sujeito “vindo do povo”? Zuza Homem de Mello anota que “Vandré é acompanhado [durante a apresentação de “Caminhando”] por um monumental coro de mais de 20 mil vozes que se abrem com a intensidade de quem dispara versos com sua mais verossímil arma para combater a ditadura militar, o canto” (MELLO, 2013, p. 293). Em seguida, “no dia 23 de outubro veio a degola: a música de Vandré era proibida pelo governo de ser executada em rádios e locais públicos em todo território nacional. O cerco se fechava à sua volta a despeito de sua música ser muito cantada nas reuniões em casas particulares” (MELLO, 2003, p. 299). Por fim, o golpe engoliu engajados e desbundados, massacrando subjetividades. Até porque, conforme Jorge Amado registra em O sumiço da santa , “até os policiais, corações de lama, sangue de barata, estremeceram, sentiram o sopro da vida e da beleza” (2010, p. 272) de “Alegria, alegria”. Além disso, o capitalismo também teve a habilidade necessária de absorver, formular e controlar o tropo tropical. O namoro com o mercado sempre foi o calcanhar de Aquiles da Tropicália. “Ela nem sabe até pensei em cantar na televisão”, diz o sujeito de Caetano, confessando para nós ouvintes o desejo inconfessado a “ela”, a que faz o sujeito desacelerar o ritmo do caminhar. O desejo de uma arte total, à la Hélio Oiticica, mobiliza o sujeito de “Sem lenço, sem documento” que quer fazer uso da televisão – instrumento de comunicação de massa a serviço da propaganda do golpe militar, e que incomodava bastante a determinado setor da esquerda de elite, atenta às reivindicações dos estudantes e operários de então – para propagar as utopias da liberdade e da expressão dos movimentos libertários e contraculturais.

ELA PENSA EM CASAMENTO / E EU NUNCA MAIS FUI À ESCOLA HÁ SOLDADOS ARMADOS, AMADOS OU NÃO

“Os estudantes do TUCA, considerados os mais politizados entre os frequentadores de festivais, não se conformavam que Caetano e Gil não assumissem uma atitude clara de reação ao militarismo e ainda demonstrassem no palco uma certa falta de virilidade que não se coadunava com quem fosse contra a ditadura. A postura máscula de Vandré, um dos ídolos dessa facção, era o oposto”, (MELLO, 2003, p. 277). Essa Macheza vandreniana simbólica se sustenta em versos como “Meu amor foi embora / Quem é homem não chora / Mas eu vou viver a chorar”, de “Quem é homem não chora” (Geraldo Vandré e Vera Brasil); e “O terreiro lá de casa / Não se varre com vassoura / Varre com ponta de sabre / Balas de metralhadora / Quem é homem vem comigo / Quem é mulher fique e chora” (“Cantiga Brava”, Geraldo Vandré). Sem esquecer o antológico “Eu venho lá do sertão e posso não lhe agradar / Aprendi a dizer não, ver a morte sem chorar”, de “Disparada” (Théo de Barros, Geraldo Vandré). Por sua vez, ao instar a alteridade, o sujeito tropicalista afirma aquilo que Virgínia Woolf, citando Coleridge, inferiu ao pensar que as grandes mentes são andróginas: “É quando ocorre essa fusão que a mente é fertilizada por completo e usa todas as suas faculdades. Talvez uma mente puramente masculina não consiga criar, do mesmo modo que uma mente puramente feminina (...). [Coleridge] quis dizer, talvez, que a mente andrógina é ressoante e porosa, que transmite emoções sem empecilhos, que é naturalmente criativa, incandescente e indivisa” (WOOLF, 2014, p. 139). Daí que, enquanto “ela pensa em casamento”, ele “bebe uma coca-cola e nunca mais foi à escola”, reverberando os versos de “O seu amor” (Gilberto Gil), “O seu amor / Ame-o e deixe-o livre para amar / Ir aonde quiser”, e desfazendo o coro militarista que dizia “Brasil, ame-o ou deixe-o”.

EU TOMO UMA COCA-COLA / ELA PENSA EM CASAMENTO / E UMA CANÇÃO ME CONSOLA / EU VOU QUASE TODOS PERDIDOS DE ARMAS NA MÃO

A evasão consoladora identificada em “Caminhando” é rejeitada pelo sujeito que, em ritmo acelerado, diz “Eu vou”. No entanto, de acordo com Walnice Nogueira Galvão (1976), se “é na obra de Caetano Veloso que se encontra um tratamento particular do mito dO DIA. Tratamento que situa O DIA ao nível da mitologia privada e não mais ao da mitologia coletiva” (p. 101), a autora lembra que “a obra de Caetano Veloso, até a ruptura metropolitana de ‘Alegria, alegria’, mostra-se a tal ponto impregnada pelo destino comum aos homens de sua terra que praticamente todo o seu imaginário é referido a esse destino” (p. 103). Depois a autora lista uma série de exemplos. Naquele contexto, tomar uma Coca-cola era uma subversão à lógica da esquerda nacionalista. O refrigerante imperialista é bebido pelo sujeito que devora as influências estadunidenses na cultura brasileira. Cabe reforçar: o sujeito de “Alegria, alegria”, deste modo, “por que não?” nega a mediação e o mediador, seja de direita, seja à esquerda. Ele é representante de si, dono de uma experiência real, autêntica, própria, subjetiva, portanto, excluída da força homogeneizante dos corpos, do condicionamento às estruturas estabelecidas. Ao assumir este caminho não mediado, o sujeito da canção desvencilha-se dos discursos de opressão dos quais a democracia representativa parece marcada. Para ele, as desobrigações ideológicas pré-fabricadas e, portanto, também promotoras do empobrecimento da experiência, da redução da experiência a zero, possibilitam a resistência do indivíduo forçado ontologicamente a ser massa, figura vazia de pura obediência. Assim, o que Roberto Schwarz lê como “apolítico” é, posso arriscar, um gesto radicalmente político e, consequentemente, calcado numa utopia própria das esquerdas, para todos. Ainda para João Camilo Penna, “Caetano retoma a diferença para com os ‘amigos de esquerda’: enquanto eles acreditavam que os militares vinham de Marte (...), os tropicalistas percebiam que a ‘ditadura era uma expressão do Brasil’. Fora a travessia das profundezas conservadores do Brasil, a vivência na ‘carne’ desta realidade, que pode levar à conclusão de que ‘não somos um fracasso total’” (2017, p. 239).

POR ENTRE FOTOS E NOMES / SEM LIVROS E SEM FUZIL / SEM FOME, SEM TELEFONE / NO CORAÇÃO DO BRASIL