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Patrimonio Arquitetonico
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GEOUSP - Espaço e Tempo, São Paulo, Nº 17, pp. 95 - 105, 2005
A revalorização das paisagens constituídas por elementos históricos, como o patrimônio arquitetônico, tem atribuído às paisagens urbanas contemporâneas um novo sentido no campo do consumo cultural. O patrimônio arquitetônico tornou-se, hoje, cenário revestido de valores mercadológicos, descompromissados com o passado e com o lugar - tendência global que reflete a
mundialização das relações, dos valores e das manifestações culturais. Na arena econômica, a tradicional subjetividade da cultura foi incorporada a uma racionalidade que busca legitimar identidades hegemônicas. Hoje, mais do que em períodos anteriores da história social, “(...) a economia, enquanto agente central de poder na sociedade, tem a capacidade
Este artigo baseia-se na análise da segregação sócio-espacial, fortalecida pelas novas territorialidades produzidas a partir das estratégias de intervenção e produção do espaço urbano. Uma das expressões deste processo ocorre na refuncionalização de patrimônios edificados, sobretudo nos Centros Históricos de cidades atrativas turisticamente. Esta forma de intervenção urbana, definida por meio do acesso às localizações privilegiadas, mediada pelo mercado imobiliário, e reproduzida a partir de uma verticalidade que impõe a espetacularização urbana, pode ser melhor entendida quando analisamos as políticas de redesenvolvimento das áreas centrais, antes abandonadas à deterioração, e hoje disputadas pelas atividades mais nobres da indústria cultural. PALAVRAS-CHAVE: Patrimônio cultural, turismo, sociedade de consumo
ABSTRACT: This article is based on the analysis of the socio-spatial segregation, strengthened by the new territorilities, produced according to the intervention and production of the urban space. One of the expressions of this process occurs in the space´s built inheritance refunctionalization, especially in the historical centre of the cities which are attractive because of the tourism. This way of urban intervention, established by the privileged access, connected by the property market, and reproduced according to an old verticality which imposes the urban spectacularization, it can be better known when we analyze the development politics of the central areas, in the past they were rejected to deterioration, and nowadays they are disputed by the noblest activities of the cultural industry. KEY WORDS: cultural inheritance, tourism, consumist society.
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parcialmente autônoma de criar estética, estilos, preferências de consumo e outros aspectos da ordem cultural, ou de escolher, a partir de impetuosas manifestações imaginativas, quais sobreviverão e de que modo” (Peet, 1997, p.135).
O que não significa que a ordem econômica seja, numa relação causal, a produtora de cultura, mas que a cultura é cada vez mais importante para o capitalismo. Para Peet (1997, p.141), o capitalismo estaria vivendo uma fase semiótica, onde o poder do signo toma o lugar do objeto. Não consumimos apenas os objetos em si, mas os signos e significados que eles incorporam.
Ao contrário do que se imagina, o capitalismo não destruiu os sistemas cognitivos que elegem mitos e símbolos para a interpretação do mundo. Ele acolheu esta construção social e associou à ela uma nova e vigorosa racionalidade econômica.
Em um sentido semelhante e tomando as paisagens laboriosamente construídas nas cidades, Santos (2002, p.24) nos lembra que: A economia política da cidade supõe o jogo das forças de mercado mais a regulação por ação ou omissão do poder público. Quanto à memória, tanto ela pode ser herdada do passado, como, simplesmente, projetada no futuro. A paisagem é uma herança que pode ou não ser preservada, ela também pode ser deliberadamente construída para tornar-se simbólica.
A apropriação dos bens culturais vem seguindo a conduta de transformação do patrimônio histórico em mercadoria, assim como a sua refuncionalização1 vem servindo agora à ideologia do consumo e não mais às práticas culturais representativas do sentimento de pertencimento das culturas e populações locais.
Boaventura de Sousa Santos (2001, p.47) lembra dos padrões de utilização de espelhos entre os indivíduos para referir-se ao uso de espelhos na sociedade: “as sociedades são a imagem que têm de si vistas nos espelhos que constroem para reproduzir as identificações dominantes num dado momento histórico”. Os
espelhos sociais seriam as instituições, as normatividades, as ideologias capazes de cimentar as práticas sociais a ponto de atribuir- lhes identidades. São processos sociais que ganham vida própria no tempo histórico. O problema é que, com o tempo, naturalizamos o espelho e de sujeitos tornamo-nos seu objeto: “o olhar monumental, tão fixo quanto opaco, do espelho tornado estátua que parece atrair o olhar da sociedade, não para que este veja, mas para que seja vigiado” (Santos, B.de S., 2001, p. 48). Os ícones valorizados na paisagem urbana contemporânea parecem ganhar esta autonomia de estátuas que nos vigiam para sermos reproduzidos por elas. As ideologias fundadoras da racionalidade econômica nelas contidas, fortalecem identidades culturais e devem ser decifradas, pois são sistemas de poder que se infiltram na produção cultural de identidades. A cidade, natureza transformada e artificializada pela ação social, acumula nos seus artefatos o tempo humano. A mudança de postura ideológica da sociedade em relação ao seu patrimônio cultural revela novos universos simbólicos que perfazem um processo contínuo de alteração de valores. Quando nos referimos à preservação do patrimônio cultural 2 (natural, edificado ou imaterial), remetemo-nos a um processo histórico seletivo de atribuição de valores às formas e às práticas culturais que engendram intervenções, decisões e escolhas balizadas por um projeto político que a estrutura social de cada tempo constrói. Por isto os bens culturais tombados como patrimônio representam, tradicionalmente, os grupos sociais hegemônicos (a arquitetura colonial, os palácios, as pirâmides, as igrejas, entre outros). Só recentemente os artefatos e os bens simbólicos da cultura popular (as vilas operárias, o artesanato, as tradições imateriais) ganharam prestígio de patrimônio cultural – ainda que estes tenham um valor secundário como capital cultural e na construção da identidade nacional -, denotando maior ênfase à escala das culturas
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arquitetura, nas artes plásticas e na literatura. Os trabalhadores indígenas mais qualificados, inseridos nesse processo onde “mercado, máquina e mimetismo pareciam sócios” (idem, p.103), superam a fase da multiplicação das cópias desritualizadas e passam a salientar, a partir de uma interpretação do que lhes era imposto, os produtos híbridos – marcados pelos traços das duas culturas. É desta forma que “os pintores índios descobriam nos grotescos europeus a inversão ou a negação da ordem visual que a Igreja pretendia impor-lhes” (idem, p.172), e passam a incluir nessas pinturas os símbolos da sua própria mitologia (guerreiros mexicanos, serpentes fantásticas, animais exóticos). “Abrindo um espaço de relativa liberdade na ordem visual ocidental, os grotescos podiam inspirar os índios curiosos por formas novas e preocupados em salvaguardar
Por quê, então, nos incomodamos tanto com a questão da identidade, da autenticidade e da originalidade dos patrimônios culturais? A condução à memória de um passado
Tomando como referência Walter Benjamin (1974), Canclini (1994) e Gonçalves (1988) abordam a questão da autenticidade dos patrimônios culturais. Ambos observam que a autenticidade dos objetos de arte vinculou-se às técnicas modernas de reprodução, ou seja, o autêntico foi associado ao original e o inautêntico à cópia ou reprodução – embora esta concepção tenha se estruturado em um período onde a técnica não permitia a banalização da reprodução como vemos hoje. Com a modernidade, as novas formas de arte, como o cinema e a fotografia, desqualificam esta discussão.
Assim, as modernas técnicas de reprodução retirariam a aura dos objetos de arte e dos monumentos4 , e os objetos auráticos seriam apenas aqueles possuidores de
originalidade, singularidade e permanência. O patrimônio cultural, ao tomar para si o papel de definidor de identidade “de pessoas e de coletividades como a nação, o grupo étnico etc.” (Gonçalves, 1988, p.267), imprime legitimidade aos signos e aos monumentos nacionais ao serem reconhecidos pela sociedade. O uso simbólico dos objetos e monumentos para definir as identidades coletivas é recorrente na construção de categorias culturais. Assim, expressões como “Isto é o Brasil” ou “Isto somos nós, negros brasileiros” revelam o sentimento de identificação entre esses monumentos, aquilo que eles representam, e aqueles que os olham. Em outras palavras, através dessa retórica da identificação entre Brasil e [por, exemplo] igrejas barrocas em Minas ou um terreiro de candomblé em Salvador, definimos a nação como barroca, religiosa, católica, mineira, ou negra, afro, nagô e baiana. E, como num passe de mágica, nos sentimos todos de algum modo autênticos portadores desses mesmos atributos” (Gonçalves, 1988, p.268). Para Gonçalves, a aceitação deste tipo de autenticidade reforça o seu papel como um instrumento de retórica na associação entre patrimônio e nação. Ele toma, então, dois exemplos emblemáticos (Colonial Williamsburg, no Estado da Virginia, Estados Unidos5 , e Ouro Preto, em Minas Gerais, no Brasil 6 ) para dissolver a reflexão dicotômica entre o autêntico e o inautêntico, e propõe uma forma não- aurática de autenticidades. Para esta concepção alternativa, a capacidade de recriação ou reprodução seria mais marcante do que a herança e o vínculo orgânico com o passado. O patrimônio não-aurático possibilitado pela reprodutibilidade técnica é o patrimônio que estamos construindo hoje; inúmeras disneylândias escancaram a natureza do patrimônio cultural como uma construção ficcional que exagera na cenarização e artificializa a memória por meio do espetáculo. Mas é esta construção que a sociedade contemporânea valoriza como patrimônio a ser
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consumido nas atividades do lazer e do turismo. Então podemos afirmar que as formas valorizadas como patrimônio cultural são cada vez menos puras; ou são falseadas, reproduzidas7 , ou agregam formas e estilos que dissolvem as fronteiras das representações sócio-culturais. O patrimônio que valorizamos no período contemporâneo é promíscuo na mistura das formas e eclético nos seus usos, mas temos dificuldade em lidar com esta realidade pois, como salienta Gruzinski (2001, p. 48): “a compreensão da mestiçagem choca- se com hábitos intelectuais que levam a preferir os conjuntos monolíticos aos espaços intermediários. Com efeito, é mais fácil identificar blocos sólidos do que interstícios sem nome. Preferimos considerar que ‘tudo o que parece ambíguo só o é na aparência, e que a ambigüidade não existe’. Os enfoques dualistas e maniqueístas seduzem pela simplicidade e, quando se revestem da retórica da alteridade, confortam as consciências e satisfazem nossa sede de pureza, inocência e arcaísmo”. Canclini (1994, p. 95) nos lembra que a urbanização, a mercantilização, a indústria cultural e o turismo não são, necessariamente, os inimigos do patrimônio. São, isto sim, as marcas do nosso tempo que, de um modo ou de outro, contextualizam e colocam no centro do debate a natureza da atual valorização do patrimônio cultural. O medo da homogeneização cultural, do desenraizamento a que nos submeteríamos em uma aldeia global e na difusão planetária do neoliberalismo impede-nos de estruturar um sistema de idéias que dê conta da hibridação da cultura – embora estes híbridos já estejam presentes na recomposição das formas do patrimônio cultural e mesmo em uma nova subjetividade que nos liga a elas. Na pós-modernidade, a proeza técnica fez renascer o encantamento das formas, mesmo que estas estejam desconectadas do sentimento de pertencimento e de identidade tradicionalmente associados ao patrimônio cultural. Como afirma Choay (2001,
p. 207), “a mundialização dos valores e das referências ocidentais contribuiu para a expansão ecumênica das práticas patrimoniais”. Mas a grande questão não é mais sobre o conflito entre a homogeneização das paisagens nos projetos de revitalização, requalificação ou enobrecimento, e a resistência do lugar. Enquanto as demandas de um mercado global, das ideologias do consumo e da indústria cultural banalizam as formas do patrimônio arquitetônico, este vem revelando o presente sendo construído como memória. Assim, ao mesmo tempo em que as formas encontram-se cada vez mais misturadas com os traços de diferentes culturas, os conteúdos sociais revelam as identidades culturais do nosso tempo, onde o consumo estético das formas tem mais valor do que o seu uso social democrático. Devemos olhar, então, para o conteúdo que vem refuncionalizando o patrimônio e atribuindo-lhe novos valores. Como geógrafos devemos, ainda, desvendar os diferentes usos do patrimônio no território, e buscar entender de que modo um “lugar de cumplicidade cultural” (Canclini, p.96), ao ser valorizado pelo olhar externo, no caso, do turismo, produz territorialidades excludentes ao próprio lugar. Não basta reavivar o valor dos patrimônios locais. É preciso entender, como diz Canclini (p.100) que “os movimentos contemporâneos de transnacionalização e desterritorialização da cultura (migrações, indústrias culturais etc.) têm mudado os processos de formação, produção e transformação dos patrimônios simbólicos em relação aos quais se definem o perfil de vida cotidiana e os traços de identificação dos grupos”. A valorização de uma paisagem, de um lugar, de uma região, de uma territorialidade como patrimônio revela um campo de disputa entre três sujeitos sociais (ou agentes, como querem alguns): o Estado, as empresas e a sociedade civil. O problema não é a transformação da natureza em cenário, ou das práticas e artefatos culturais em espetáculo. A pós-modernidade nos trouxe esses valores de aceitação e até de
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monumentos por todos os meios, a fim de multiplicar indefinidamente o número de visitantes”.
Em inúmeros países, o redesenvolvimento das zonas portuárias marítimas8 e dos centros históricos de cidades industriais são exemplos contemporâneos destes projetos. A desindustrialização, a competitividade global e os recursos tecnológicos geraram novas possibilidades de organização dos fluxos da produção e das estruturas sócio-espaciais das cidades, resultando em uma retração dos capitais investidos nessas áreas. Por conseguinte, ocorreu o declínio da importância econômica e a degradação das infra-estruturas de inúmeros centros urbanos e de zonas portuárias de todo o mundo. Os projetos de revitalização, nestes casos, têm procurado uma parceria entre o Estado, que investe em infra-estruturas e programas não-rentáveis, o setor privado que é estimulado a investir nestas áreas por meio de empreendimentos comerciais, e a sociedade que, através do consumo de bens e serviços da indústria cultural reintegra estas áreas à malha urbana. A ideologia empresarial do governo urbano passa a conceber o planejamento aos fragmentos, selecionando áreas que possam atrair o capital. Os inúmeros projetos de revitalização (de centros históricos, de portos marítimos, de centros de convenções) transformaram-se na marca distintiva da “competição entre as cidades pela posição de centros de consumo” (Dodson & Kilian, 2001, p. 203). Tendo como base o consumo e não a produção, estes modelos são importados entre as cidades, impulsionando a transição para a acumulação flexível e para uma cultura urbana pós-moderna, que toma como característica a espetacularização do planejamento (Harvey, 1987, p. 270). Segundo Harvey (1992, pp.80- 81), que permanece refletindo sobre o pós- modernismo na cidade: “O fetichismo (a preocupação direta com aparências superficiais que ocultam significados subjacentes) é
evidente, mas serve aqui para ocultar deliberadamente, através dos domínios da cultura e do gosto, a base real das distinções econômicas” Este projeto, capturando as singularidades do lugar expressas em seu patrimônio arquitetônico e imaterial (costumes, festas, ritos), reinventa a memória local, resgata o seu capital simbólico e cultural como espetáculo, e padroniza as suas formas tornando-as atrativas para a mercantilização do lugar que, no processo de acumulação flexível, é transformado em mercadoria turística. O resgate das concepções de cenário e espetáculo se justifica, de um lado, pela importância dada a iluminação, a maquiagem, aos ornamentos e ao embelezamento e, de outro, às inúmeras atividades programadas para atrair cada vez mais visitantes (apresentações musicais, teatrais, comemorações, festividades etc.). Tomando os centros e os bairros antigos incorporados como produtos do consumo cultural, Choay (2001, pp. 224-25) descreve os dispositivos que instituem as semelhanças destas áreas nos projetos de revitalização: “(...) sistemas gráficos de sinalização e de orientação; estereótipos do pitoresco urbano: alamedas, pracinhas, ruas, galerias para pedestres, pavimentação ou lajeados à antiga, guarnecidos de mobiliário industrializado standard (candelabros, bancos, cestinhos de lixo, telefones públicos) de estilo antigo ou não, alegrados, de acordo com o espaço disponível, com esculturas contemporâneas, chafarizes, vasos rústicos de flores e arbustos internacionais; estereótipos do lazer urbano – cafés ao ar livre com mobiliário adequado, barracas de artesãos, galerias de arte, lojas de objetos usados e ainda, sempre, por toda parte, sob todas as suas formas (regional, exótica, industrial), o restaurante”. Este tipo de projeto de revitalização de áreas urbanas localiza o global no local e responde com as especificidades do lugar às demandas internacionais. O lugar e suas territorialidades pretéritas são transformados pelas verticalidades - ações pontuais de agentes
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hegemônicos, externos à dinâmica sócio- espacial local (Santos, 1996, p.225) -, que incidem na remodelagem das formas arquitetônicas e na refuncionalização social.
Os centros históricos das cidades brasileiras mais adensadas ganham destaque especial nos inúmeros projetos de revitalização10 , hoje tão em voga, alimentados pelo setor turístico. Este mecanismo consiste em enobrecer, refuncionalizar, requalificar uma dada área através do investimento de diversos capitais destinados à sua apropriação, segundo padrões de uma parcela dominante da sociedade, do ponto de vista político e econômico. Em inúmeros centros históricos de capitais nordestinas, as populações locais (em geral pobres, mendigos e prostitutas) foram desapropriados de suas antigas territorialidades para dar lugar a centros culturais, cafés, casas de espetáculos, restaurantes. Enquanto os projetos de revitalização carregam nas tintas para salientar as formas que agora exibem a estética da espetacularidade para o consumo do lazer, os usos sociais seletivos destas áreas não disfarçam o processo de segregação sócio- espacial. Apesar do revigoramento das formas, a fragmentação social acentua-se no uso direcionado ao consumo cultural, ou seja, exclusivo aos grupos sociais economicamente privilegiados.
Ao se tornar alvo de uma fruição apenas circunstancial e essencialmente estética, a revitalização do patrimônio arquitetônico cria uma nova territorialidade, descompromissada com o lugar e com as populações locais. Mesmo que as antigas formas permaneçam, o conteúdo social dos bens tombados submete-se às mudanças de conteúdo e de significado social, agora impulsionados pela nova vocação turística destas áreas. Porém, isto não significa afirmar que estas intervenções sejam sempre negativas do ponto de vista da democratização dos seus usos. O problema é dar demasiada importância às formas (arquitetônicas, culturais ou naturais), e atribuir-lhes um valor econômico em detrimento do seu valor cultural original,
destituindo destas paisagens o que as transforma em lugar: as habitações, os usos pretéritos, o sentimento de pertencimento das populações locais, a sobrevivência das comunidades tradicionais. Também não significa que não temos mais saídas. No período histórico atual, a lógica globalizante revela uma nova racionalidade da organização sócio-espacial contemporânea, revestindo de novos valores e conteúdos tanto o espaço dos fluxos, que diz respeito à circulação, à informação e à comunicação, quanto o espaço dos fixos ou das formas, referente aos objetos naturais e técnicos presentes na paisagem, incluindo o patrimônio histórico. As chamadas verticalidades acabam por subverter a ordem dessa dinâmica local e impor novas funções às formas. Segundo Santos (1996, p.206): “Na união vertical, os vetores de modernização são entrópicos. Eles trazem desordem às regiões onde se instalam, porque a ordem que criam é em seu próprio e exclusivo benefício. Isso se dá ao serviço do mercado, e tende a corroer a coesão horizontal que está posta ao serviço da sociedade civil tomada como um todo”. Nesse sentido, devemos tentar compreender esta desordem que se instala. A refuncionalização que vem ocorrendo nas cidades ou nas regiões está conectada a um movimento maior, a um processo mundialmente abrangente de revalorização mercadológica do patrimônio (Joly, 2002, p.25) - quer sejam cidades, centros históricos, áreas naturais, artefatos ou práticas culturais. Contudo, a organização da atividade turística não apenas potencializa este processo, como pode orientar a condução do mesmo. O problema não se reduz às estratégias do planejamento turístico que preservam apenas o contexto cenográfico do patrimônio histórico arquitetônico e procedem a mercantilização dos artefatos tradicionais que perdem, no valor de troca, a qualidade dos seus componentes materiais e simbólicos originais (Canclini, 1994, p. 101). Muitos caiçaras do litoral norte paulista, por exemplo, conseguiram, na fabricação
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século XVIII, entra em decadência e é esquecida ao longo do século XIX. Na década de vinte foi redescoberta e totalmente reconstruída por John Rockefeller. Tudo o que havia sido construído ao longo do século XIX foi destruído e a reconstrução reinventou o século XVIII. Através da recriação/ encenação reproduziu a cena histórica com a utilização de artefatos e atores profissionais. (^6) Descoberta inicialmente pelos modernistas, Ouro
Preto é elevada à condição de Cidade Monumento Mundial pela Unesco, na década de sessenta.
Possuidora de uma arquitetura religiosa barroca do século XVIII, é símbolo da construção da identidade e da memória nacional, apresentando os atributos de singularidade e permanência. (^7) Não estamos nos referindo as técnicas de reprodução que são idealizadas para preservar o exemplar original, mas àquelas que imprimem uma estandardização às formas dos conjuntos paisagísticos de centros históricos, por exemplo. (^8) Os exemplos mais estudados de revitalização portuária são os de Londres, Sydney, Toronto, Baltimore e Hong Kong. (^9) Sobre esta abordagem ver especialmente Featherstone (1995) e Dodson & Kilian (2001). (^10) Entre os vários exemplos podemos citar Salvador (BA), São Luis (MA), Recife (PE), Fortaleza (CE), São Paulo (SP), Campinas (SP), Curitiba (PR), e Manaus (AM) que, seguindo os passos de Belém (PA), também está implantando um projeto de revitalização do Porto
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Trabalho enviado em fevereiro de 2005.
Trabalho aceito em março de 2005.