











Estude fácil! Tem muito documento disponível na Docsity
Ganhe pontos ajudando outros esrudantes ou compre um plano Premium
Prepare-se para as provas
Estude fácil! Tem muito documento disponível na Docsity
Prepare-se para as provas com trabalhos de outros alunos como você, aqui na Docsity
Os melhores documentos à venda: Trabalhos de alunos formados
Prepare-se com as videoaulas e exercícios resolvidos criados a partir da grade da sua Universidade
Responda perguntas de provas passadas e avalie sua preparação.
Ganhe pontos para baixar
Ganhe pontos ajudando outros esrudantes ou compre um plano Premium
Comunidade
Peça ajuda à comunidade e tire suas dúvidas relacionadas ao estudo
Descubra as melhores universidades em seu país de acordo com os usuários da Docsity
Guias grátis
Baixe gratuitamente nossos guias de estudo, métodos para diminuir a ansiedade, dicas de TCC preparadas pelos professores da Docsity
Uma análise detalhada sobre a propriedade fiduciária, especificamente sobre a alienação fiduciária de bens imóveis, na lei 8.668 e no código civil. O texto aborda as características distintas da propriedade fiduciária em comparação com a propriedade resolúvel, as espécies de propriedade fiduciária e a influência do trust na construção do modelo teórico de propriedade fiduciária no direito brasileiro.
Tipologia: Esquemas
1 / 19
Esta página não é visível na pré-visualização
Não perca as partes importantes!
Raphael Manhães Martins Advogado. Tutor da Escola de Direito do Rio de Janeiro da Fundação Getúlio Vargas
- FGV. Mestrando em Direito pela Universi- dade Federal do Rio Grande do Sul.
O todo sem a parte não é o todo; A parte sem o todo não é parte; Mas se a parte faz o todo, sendo parte, Não se diga que é parte, sendo todo [...] Gregório de Matos e Guerra
1. “O TODO SEM A PARTE NÃO É O TODO / A PARTE SEM O TODO NÃO É PARTE” Sinédoque é um tropo que consiste em tomar a parte pelo todo, o todo pela parte; o gênero pela espécie, a espécie pelo gênero e por aí vamos. Se tal figura é empregada nas mais be- las construções literárias, sendo um espaço privilegiado para a criatividade do artista, parece-nos que deveria ser empregada com certa parcimônia pelo legislador. Isso na medida em que, ao contrário do artista, o legislador não deve buscar uma expansão
do leque de possibilidades hermenêuticas do intérprete, mas sim delimitá-lo. Apesar de esta advertência parecer banal, ela não é de todo despicienda, quando aplicada às recentes tentativas legislativas de construir, no direito brasileiro, um modelo normativo para a propriedade fiduciária. Mesmo com uma abundância de estudos e trabalhos acadêmicos dedicados a erigir os seus fundamentos dogmáticos^1 , conforme bem observado por Melhim Chalhub quan- to a um de seus aspectos, estas tentativas têm sido realizadas de forma “tímida, esparsa e errática”.^2 Num voo rasante, como de quem quer apenas observar os contornos de determinada paisagem, o que se verifica é a profusão de signos linguísticos aliada à falta de um tratamento sistemático do instituto. Vejamos: A propriedade fiduciária foi incorporada ao direito brasilei- ro pela Lei 4.728, de 14.07.1965 (Lei do Mercado de Capitais). Na ocasião, ao regular o negócio jurídico da “alienação fiduciária em garantia” em seus arts. 66 e parágrafos e posteriores altera-
(^1) Versando sobre o tema da propriedade fiduciária ou uma de suas espécies, no direito brasileiro, os seguintes trabalhos foram consultados na elaboração deste trabalho: ALVES, Vilson Rodrigues. Alienação fiduciária em garantia. Campinas: Millenium, 1998; BUZAID, Alfredo. “Ensaio sobre a alienação fiduciária em garantia”. RT 401/9-29. São Paulo: Ed. RT, mar. 1969; CAMINHA, Uinie. Securitização. São Paulo: Saraiva, 2005; CAVALCANTI, José Paulo. O penhor chamado alienação fiduciária em garantia. Recife: Companhia Editora de Pernambuco, 1989; CHALHUB, Melhim Namem. Negócio fiduciário: alienação fiduciária.
No Código Civil, o legislador retomou a ideia da propriedade fiduciária, inclusive para diferenciá-la da propriedade resolúvel, dedicando àquela um capítulo, compreendendo os arts. 1.361 a 1.368. Entretanto, atentando para tais artigos, verifica-se que eles se referem apenas à situação tratada na Lei 4.728/1965, isto é, à alienação fiduciária em garantia de bem móvel. Não se referem à alienação fiduciária em garantia de bem imóvel, nem ao que o próprio legislador já havia definido como propriedade fiduciária ou regime fiduciário. Na última oportunidade que teve, na Lei 10.931, de 02.08.2004, o legislador tratou do tema através da denominada “afetação patrimonial”, um dos mecanismos de modernização do sistema de financiamento imobiliário, pelo qual os bens afetados ao desenvolvimento de uma incorporação imobiliária não se con- fundiriam com o patrimônio do incorporador, permanecendo como patrimônio separado. Mas, apesar do aspecto arrojado da nova legislação, ainda incorremos no mesmo problema onomástico. E assim vamos... Nessa matéria, nosso legislador enfrenta o que poderíamos chamar de um “problema de sinédoque”. Afinal, sem preocupações de sistematizar o instituto que se propôs a in- troduzir no direito brasileiro e movido pelo seu natural casuísmo (a busca de soluções para situações específicas e não para defi- ciências sistêmicas), tem-se perdido reiteradas oportunidades de conferir ao tema um tratamento adequado e fundado em valores e aspectos que são comuns às suas diversas espécies. Isto, por cer- to, em prol da segurança jurídica e da máxima efetividade social do instituto. Como resultado, perdeu-se um pouco em relação à compreensão de sua natureza jurídica e, mais importante, da sua dinâmica na vida social. Entretanto, o papel da doutrina é justamente realizar a pon- te que separa a forma casuística com que o legislador tratou o instituto (as partes) e o conceito geral da propriedade fiduciária (o todo).
de constituição de garantias ou de excussão por quaisquer dos credores da companhia secu- ritizadora, por mais privilegiados que sejam; VI – só responderão pelas obrigações inerentes aos títulos a ele afetados”.
O presente trabalho, portanto, propõem-se a, a partir da análise destas diversas espécies de propriedade fiduciária do or- denamento jurídico, bosquejar uma delimitação do que podemos chamar de um modelo de propriedade fiduciária^5. Não se trata, por certo, de um mero exercício de elucubra- ção, apenas para amoldar mais uma abstração ao sistema jurídico
(^5) Para tanto, será de grande valia o instrumental teórico fornecido por Miguel Reale, princi- palmente o seu sistema de modelos, que podem ser compreendidos como “estruturas nor- mativas” que ordenam as situações fáticas “segundo valores, numa qualificação tipológica de comportamentos futuros, a que se ligam determinadas consequências” ( Fontes e mode- los no direito: para um novo paradigma hermenêutico. São Paulo: Saraiva, 1994, p. 17). (^6) ASCARELLI, Tullio. Problemas das sociedades anônimas e direito comparado. São Paulo: Quorum, 2008, p. 156.
domínio sobre o bem, estamos tratando de uma propriedade re- solúvel.^10 Nessa modalidade de propriedade limitada, o proprietário (resolúvel) que adquire um bem, sob condição ou termo, atua como proprietário para todos os fins, sendo-lhe lícito praticar os atos de administração e disposição sobre a coisa. Com o imple- mento da condição ou o advento do termo, resolvem-se os direi- tos reais concedidos na sua pendência, retornando a coisa ao seu proprietário anterior (o proprietário diferido), em favor do qual operou-se a resolução. Caso caduque a condição, o proprietário resolúvel torna-se o proprietário pleno da coisa, uma vez que de- sapareceu a restrição que pendia sobre a propriedade. O proprietário diferido, enquanto pendente a condição ou o termo, tem apenas uma expectativa de direito, ou seja, não é proprietário do bem. Apenas após o implemento da condição ou o advento do termo é que este pode reivindicar a coisa em poder de quem quer que esteja, como lhe faculta o art. 1.359 do CC/2002. Note-se que a propriedade resolúvel está presente em uma série de outros negócios jurídicos, como a venda a contento, a do- ação com cláusula de reversão,^11 a compra e venda com cláusula de preempção ou preferência, a compra e venda com cláusula de reserva de domínio etc.^12 A propriedade fiduciária também é uma propriedade limita- da, mas não pela vontade das partes, como ocorre no negócio sus- pensivo, e sim por determinação legal,^13 em decorrência da cele- bração de um negócio jurídico que atribui ao bem ou ao conjunto de bens determinada finalidade específica, seja ela de garantia, de administração ou de inversão, segundo a tripartição defendida por Orlando Gomes.^14
(^10) GONÇALVES, Aderbal da Cunha. Op. cit. , p. 151. (^11) FACHIN, Luiz Edson. Op. cit. , p. 320. (^12) VIANA, Marco Aurelio S. Op. cit. , p. 571. (^13) Sem a determinação legal, estaríamos diante de um negócio fiduciário em garantia. (^14) Op. cit. , p. 15. Para o referido autor, os negócios fiduciários poderiam ser de três espé- cies: (a) de garantia, que visa a substituir o penhor e a hipoteca, aproximando-se da retro- venda; (b) de administração, quando o bem é transferido para ser administrado por um terceiro e não pelo seu beneficiário, na medida em que este pode não ter capacidade
Assim, enquanto na propriedade resolúvel a autonomia da vontade apõe uma limitação ao direito de propriedade, a fim de subtrair parte da finalidade econômica desse direito, utilizando-se dele para outro fim prático que não aquele determinado em lei, a propriedade fiduciária é criada, por lei, justamente para atender determinadas necessidades e a limitação lhe é intrínseca.^15 Nesse sentido, conforme Yaëll Emerich, tratando da proprie- dade fiduciária no direito francês: “il est vrai que la propriété fiduciaire constitue un mode particulaire de la propriété. Il s’agit d’abord d’une propriété finalisée. La fiduciaire ne dispose, pas de l’intégralité des prérogatives d’un propriété ordinaire, puisqu’il doit agir dans un ‘but déterminé’ par le constituant”.^16 Na “alienação fiduciária em garantia”, quer de bem móvel ou imóvel, a propriedade fiduciária tem a finalidade, atribuída por lei, de garantir o adimplemento de uma obrigação. Quando houver a cessação deste escopo, por perdão da dívida, adimplemento da obrigação ou a renuncia à garantia, haverá a extinção da alienação fiduciária e, consequentemente, da propriedade fiduciária.^17 No “patrimônio de afetação” da incorporação imobiliária e na “propriedade fiduciária” dos Fundos de Investimento Imobiliá- rio, por outro lado, a finalidade é a administração, isto é, deter- minada universalidade de bens é transferida para um terceiro com o propósito exclusivo de ser administrada por este. Isso, porque, presumidamente, o incorporador e o administrador do fundo têm maiores condições técnicas do que aqueles que cederam, fiducia- riamente, seus bens para gerir tal patrimônio.
ou competência para fazê-lo por si; ou (c) de inversão, assim considerando aqueles em que concede-se ao fiduciário certa soma de dinheiro para que a aplique, com a obrigação de pagar a renda estipulada e devolver o capital transferido, logo que seja reclamado. (^15) MOREIRA ALVES, José Carlos. Op. cit. , p. 115. Neste sentido, o Código Civil de 2002, no art. 1.361, tratou de distinguir as duas figuras, esclarecendo que propriedade fiduciária seria uma espécie de propriedade resolúvel ( sic. ), criada com o escopo exclusivamente de garantia (“Considera-se fiduciária a propriedade resolúvel de coisa móvel infungível que o devedor, com escopo de garantia, transfere ao credor”). (^16) EMERICH, Yaëll. “Les fondements conceptuels de la fiducie française face au trust de la common law: entre droit des contrats et droit des biens”. Revue internationale de droit comparé n. 1, 61ème année, jan.-mar. 2009, p. 68 – grifo no original. (^17) MOREIRA ALVES, José Carlos. Op. cit. , p. 120.
variam conforme a propriedade e a finalidade a que se destina. Na alienação fiduciária em garantia, por exemplo, não se resolve a propriedade, mas se consolida a posse na figura do credor, que passa a ter o ônus de vendê-la para pagar-se e devolver o bem ao alienante. No patrimônio de afetação, por outro lado, podem os adquirentes do imóvel tomar para si a administração do bem afe- tado a fim de empregar tal patrimônio na consecução das finalida- des da propriedade fiduciária. Uma vez assentada esta diferença, resta verificar os valores que subjazem e dinamizam esta propriedade fiduciária:
3. AQUILO QUE É COMUM ÀS PARTES E AO TODO 3.1. Fidúcia. A compreensão do conteúdo do valor fidúcia é matéria por demais extensa e controversa para os limites do presente traba- lho. Entretanto, para os fins ora propostos, parece adequada a ideia apresentada por Fritz Schutz para a fidúcia ( fides )^19 em seu clássico estudo sobre os princípios da sociedade romana. Nesse sentido, o indigitado autor defende que o conteúdo significativo mínimo de fides na sociedade romana antiga, seria o dever de agir conforme a palavra empenhada.^20 Apesar de singela a definição, é esse o valor fundamental que sustenta a posição jurídica de proprietário fiduciário: ele deve agir conforme a palavra empenhada. Essa ideia reitora impregnará a propriedade fiduciária em qualquer uma de suas modalidades, e não apenas por uma questão de onomástica. Por trás da propriedade fiduciária reside, em toda a sua força motriz, um ato de fidúcia, menor no caso daquelas com o escopo de garantia, maior nas de administração, mas sempre presente.
(^19) “Es gehört zu ihnen Lebensprinzipien, treu zu sein. Natürlich haben auch sie sich gele- gentlich des Treubruchs schuldig gemacht, aber die Existens ihrer Maxime wird dadurch so Wenig beeinträchtigt wie die Existenz einer Rechtsnorm durch ihre Übertretung. Sie stre- ben in der Tat ernstlich nach Treu; Treulosigkeit ist ihnen ein sozialer Makel” ( Prinzipien des römischen Rechts. Berlin: Duncker & Humbolt, 1954, p. 151). (^20) Loc. cit.
Quem bem percebeu a existência deste valor foi Pontes de Miranda ao observar que, subjacente a toda outorga da titularida- de ou da posse de um determinado bem ou direito a um terceiros, existe o elemento fiduciário.^21 Tanto é esse o caso que, na alienação fiduciária em garantia, encontraremos dois atos fiduciários, quais sejam: de um lado, a transferência da propriedade em garantia ao proprietário fiduciá- rio e, de outro, a transferência da posse direta do bem ao devedor. Por conta desse duplo ato de transferência fiduciária, teremos a necessidade de uma dupla proteção. Pelo lado do devedor fidu- ciante, há previsão expressa no art. 66-B, § 2.º, da Lei 4.728/ que aquele que “alienar ou der em garantia a terceiros, coisa que já alienara fiduciariamente em garantia, ficará sujeito à pena pre- vista no art. 171, § 2.º, I, do Código Penal”. Pelo outro lado, entretanto, conforme bem esclareceu Alfre- do Buzaid, o domínio não era apenas formal ou limitado; “todavia, não se pode deixar de reconhecer que o fiduciário está indireta- mente vinculado, no exercício de suas faculdades de proprietário, a obrigações assumidas em face do fiduciante ou que derivam, quanto a ele, da natureza da boa-fé do negócio fiduciário; se ele deseja evitar responsabilidade, deve comportar-se, em relação à coisa, de modo a não contravir as obrigações”.^22 Neste sentido, a fidúcia, enquanto elemento da relação obrigacional, provoca o estreitamento, ou melhor, o fortale- cimento dos vínculos da relação jurídica obrigacional. Afinal, a parte da relação jurídica marcada pelo elemento fiduciário necessariamente se coloca em uma posição de maior vulnerabi- lidade, sujeitando-se aos possíveis efeitos nocivos do comporta- mento do auter. Isso na medida em que a fides leva o fiduciante a “abrir suas guardas”, impossibilitando-o de precaver-se con- tra todas as consequências nefastas de uma quebra do dever fiduciário.
(^21) Curiosamente, Pontes de Miranda denominava o negócio fiduciário de garantia atípico como “transmissão em garantia” e reservava para o negócio típico a alcunha de “transmis- são fiduciária, em garantia” ( op. cit ., t. LII, p. 339). (^22) Op. cit. , p. 19.
Em primeiro lugar, no seu aspecto interno, a segurança fun- damenta a afetação patrimonial na medida em que sua causa nada mais é do que a mitigação de riscos externos à relação jurídica, sendo relevante conceituar o que seria essa afetação patrimo- nial: O patrimônio, conforme a tradicional teoria formulada no século XIX por Aubry et Rau e inspirada nos estudos pandectísticos de Zachariae, é compreendido como o conjunto de bens de uma pessoa, formando uma universalidade de direito,^24 que, conforme definição de nosso Código Civil, viria a ser “o complexo de relações jurídicas, de uma pessoa, dotado de valor econômico”.^25 Desta forma e segundo a mesma teoria tradicional, o patri- mônio seria “une enveloppe indissociablement liée à la personne (...) et regroupant la totalité de ses biens et de ses dettes. Cette construction juridique, dynamique car no figée dans le temps, est vue comme permettant à ça résonné de s’engager, en garantissant que ses biens présents et futurs de ses dettes actuelles et à ve- nir”.^26 Pela afetação patrimonial, por outro lado, parte do patrimô- nio anteriormente detido pelo sujeito separa-se do seu patrimônio geral, tendo em vista que aquele passa a estar “afetado” a deter- minada finalidade, seja esta determinada pela vontade das partes ou por lei.^27 Por conta dessa afetação patrimonial, os bens ( rectius as relações jurídicas tendo por objeto tais bens) objeto do patrimô- nio afetado não se confundem ou se misturam com o restante do patrimônio geral do fiduciário, na medida em que esse patrimô- nio carece de uma finalidade específica, enquanto aquele outro o tem.
(^24) EMERICH, Yaëll. Op. cit. , p. 61. (^25) Art. 91 do CC/2002. (^26) EMERICH, Yaëll. Op. cit ., p. 61-62. (^27) Conforme Pontos de Miranda: “Todo patrimônio especial tem um fim. Esse fim é que lhe traça a esfera própria, lhe cria a pele conceptual, capaz de armá-lo ainda quando nenhum elemento haja nele (...) A especialidade do patrimônio faz nascerem direitos, pretensões, ações e exceções que não tinha o titular do patrimônio geral, de que foi separado (...)” ( Op. cit. t. V. p. 379).
Importante esclarecer que o patrimônio afetado não queda sem titularidade^28 nem constitui uma mera expectativa de direito. Ao contrário, o patrimônio tão somente ganha autonomia em rela- ção ao patrimônio restante, de forma que os feixes de relações ju- rídicas que compõem cada um dos patrimônios não se entrecruzam, mas têm no mesmo titular um dos seus polos. Também não se pode considerar uma mera expectativa de direito, na medida em que o direito não se encontra na pendência de uma condição resolutiva. Assim, o conjunto relações jurídicas que compõe o patrimô- nio fiduciário ganha autonomia^29 em relação ao restante do patri- mônio geral do fiduciário. Mas é importante notar que a ideia de um patrimônio autônomo ao comum não é uma exclusividade da propriedade fiduciária. Ao contrário, a autonomia patrimonial está presente em uma série de institutos do direito brasileiro como, por exemplo, na falência, na ausência, em regimes matrimoniais, na herança quanto às dívidas do falecido etc.^30 Na propriedade fiduciária, entretanto, a afetação patrimo- nial assume um caráter instrumental à consecução das específicas finalidades econômicas e/ou financeiras reconhecidas pelo legisla- dor em cada uma das espécies dessa propriedade. Isso na medida em que a afetação patrimonial visa a “resguardar tais negócios contra riscos patrimoniais estranhos ao ambiente específico da si- tuação que se visa a proteger e às obrigações a ela vinculadas de forma específica”.^31
(^28) Em sentido contrário, vide SALOMÃO NETO, Eduardo. O trust e o direito brasileiro. São Paulo: Ed. LTr, 1996., p. 62. (^29) Esta autonomia significa que um mesmo sujeito pode vir a ser titular de mais de um patri- mônio, na medida em que o que os definirá não é a titularidade, mas a destinação comum das relações jurídicas que o compõem. A questão foi bem observada por Uinie Caminha, para quem a teoria clássica ou subjetiva do patrimônio vinculava este à própria personali- dade do sujeito, de forma que a existência de um único titular seria o elemento de coesão do conjunto de direitos e deveres que o compunham. Pela teoria moderna ou objetiva, entretanto, o fator de coesão deixa de ser a ligação com determinada pessoa, para ser a destinação comum a um conjunto de bens e direitos. Assim: “ao contrário da teoria clássi- ca, pela teoria moderna é factível uma pessoa possuir mais de um patrimônio, desde que afetados a fins diferentes” (CAMINHA, Uinie. Op. cit. , p. 118-119). (^30) CHALHUB, Melhim Namem. Op. cit. , p. 91-92. (^31) Idem. Afetação patrimonial no direito contemporâneo cit., p. 115.
Essas limitações decorrem do reconhecimento de que, se o patrimônio afetado constitui um feixe ou centro de relações jurí- dicas próprias, vinculados à finalidade para a qual foi constituído, não poderiam relações jurídicas estranhas a estas finalidades, e que constituem o patrimônio comum (do fiduciário ou do fiducian- te) ou um outro patrimônio afetado a outra finalidade, interferir ou prejudicar aquele objetivo. Assim, tratou-se de regular, por um lado, a contaminação da propriedade fiduciária pelos passivos do fiduciário e, por outro, que a própria situação econômico-financeira do fiduciário viesse a resvalar nessa propriedade. Exemplo paradigmático dessa proteção é o patrimônio de afetação nas incorporações imobiliárias.^34 Conforme a regra geral prevista no § 1.º do art. 31-A: “O patrimônio de afetação não se comunica com os demais bens, direitos e obrigações do patrimônio geral do incorporador ou de outros patrimônios de afetação por ele constituídos e só responde por dívidas e obrigações vinculadas à incorporação respectiva”. Em havendo patrimônio de afetação numa incorporação imo- biliária, os bens e direitos que estiverem compreendidos no patri- mônio fiduciário (não apenas o terreno, mas todo o complexo de relações jurídicas vinculados ao desenvolvimento de um empreen- dimento imobiliário) não podem se comunicar com o patrimônio do fiduciário ou com os demais empreendimentos imobiliários de- senvolvidos pelo próprio incorporador.^35 Outrossim, em decorrência desta afetação patrimonial, não apenas o incorporador sofre restrições em relação à utilização dos
(^34) As referências a seguir foram introduzidas pela Lei 10.931/2004, na Lei 4.591/1964. (^35) Essa afetação é um mecanismo interessante para evitar o que o mercado denomina de “pedalar” os resultados das incorporações, isto é, o incorporador, tendo em vista não haver uma separação patrimonial entre suas incorporações, passa manipular o resultado e as receitas de um empreendimento com o dos demais. O resultado da incorporação su- peravitária serve para encobrir o resultado das deficitárias. Além dos problemas eviden- tes relacionados a aspectos de governança corporativa, tal prática criava a preocupante situação de que, em caso de falência da incorporadora, os empreendimentos, ainda que superavitários, eram arrastados pelos prejuízos da empresa falida pelas dívidas acumula- das com os demais empreendimentos deficitários, derrubando todos como se fossem pinos num jogo de boliche.
bens e direitos relacionados, objeto da propriedade fiduciária,^36 como os próprios frutos do patrimônio de afetação passam a inte- grá-lo, não se comunicando com o restante do patrimônio do deve- dor, e devendo ser aplicados no custeio das despesas relacionadas à incorporação.^37 E mais: a manutenção da efetiva afetação patrimonial passa a constituir uma obrigação do incorporador, conforme os termos do seu art. 31-D: “Incumbe ao incorporador: (...) II – manter aparta- dos os bens e direitos objeto de cada incorporação”, cabendo-lhe não apenas manter e movimentar os recursos financeiros do patri- mônio de afetação em conta de depósito aberta especificamente para tal fim, como manter uma escrituração contábil completa e específica para cada patrimônio de afetação, ainda que esteja desobrigado pela legislação tributária. Mas tão relevante quanto proteger o patrimônio das demais relações jurídicas do fiduciário com terceiros é a proteção do pa- trimônio de afetação em relação à própria situação econômico- financeira do fiduciário. Para tanto, em primeiro lugar, no caso de falência do in- corporador, os seus efeitos não atingem os patrimônios de afeta- ção constituídos, “não integrando a massa concursal o terreno, as acessões e demais bens, direitos creditórios, obrigações e encar- gos objeto da incorporação”.^38 E mais, como de nada adiantaria proteger o ativo afetado se a sua utilização ficasse a cargo de um administrador judicial ou do incorporador falido, a própria lei autorizou os adquirentes de unidades imobiliárias a assumirem o patrimônio afetado e o
(^36) Por exemplo, no caso do § 3.º do art. 31-A da Lei 4.591/1964: “Os bens e direitos integran- tes do patrimônio de afetação somente poderão ser objeto de garantia real em operação de crédito cujo produto seja integralmente destinado à consecução da edificação correspon- dente e à entrega das unidades imobiliárias aos respectivos adquirentes”. (^37) “Art. 31-A (...) § 4.º No caso de cessão, plena ou fiduciária, de direitos creditórios oriun- dos da comercialização das unidades imobiliárias componentes da incorporação, o produto da cessão também passará a integrar o patrimônio de afetação, observado o disposto no § 6.º (...) § 6.º Os recursos financeiros integrantes do patrimônio de afetação serão utilizados para pagamento ou reembolso das despesas inerentes à incorporação.” (^38) Caput do art. 31-F da Lei 4.591/1964.
genérico que, naquilo que não for contrário às disposições das leis específicas, deve condicionar a interpretação/aplicação do insti- tuto. Para tanto, os elementos que unificam e funcionalizam as diversas espécies de propriedade fiduciária são os aludidos valores da fidúcia e da segurança. Tais valores, além de representarem o elemento nuclear (ainda que matizada) das diversas espécies, serão os parâmetros para a resolução dos casos concretos de qual- quer instituto que incorpore a propriedade fiduciária. 4