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Guias e Dicas
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A mente Liberta, Takuan Soho, Traduções de Filosofia Oriental

Pensamento sobre a filosofia zen-budista.

Tipologia: Traduções

2020

Compartilhado em 07/06/2020

lucian-freitas-6
lucian-freitas-6 🇧🇷

4.7

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A M ENTE LIBERTA

Takuan Sōhō

Escrito de um Mestre Zen

a um Mestre da Espada

Prefácio

Os temas principais dos três ensaios aqui apresentados são a espada – que nós, ocidentais, somos incentivados a transformar em arados –, as técnicas e a mentalidade correta para utilizá‐Ia. Os textos, dois dos quais são cartas escritas a mestres espadachins, foram escritos por um monge zen, Takuan Sōhō, que fez o voto de trabalhar pela Iluminação e salvação de todos os seres. É provável que o leitor ocidental não compreenda de imediato o que leva um sacerdote budista a dedicar‐se a falar sobre esse instrumento de destruição e sobre os meios de domina‐Ia.

Há muito tempo que os japoneses estabeleceram uma íntima relação entre a espada e o espírito. Tanto na História como na mitologia, a espada se destaca como um instrumento de vida e morte, de pureza e honra, de autoridade e até de divindade. Sob o ponto de vista da História, foi a posse da espada de ferro que colaborou para que os migrantes vindos do continente asiático conquistassem o arquipélago japonês nos séculos II e III d.C.; o sucesso dessa conquista elevou a espada não só à categoria de um símbolo de vitória, mas também de objeto cerimonial. Sob o ponto de vista mitológico, foi a espada encontrada dentro do Yamata no Orochi – um dragão que foi morto pelo deus das tempestades – que se tornou depois uma das Três Insígnias Imperiais, símbolos de poder e de pureza que têm sido venerados pelos japoneses há quase dois milênios. Na prática, foi a casta dos samurais, com a espada em uma mão e a verdade espiritual na outra, que inspirou a maior parte dos valores perenes do país.

Essa associação não perdeu sua força quando os samurais começaram a dedicar‐se a outras ocupações, há pouco mais de um século. Mesmo nos dias de hoje, a fabricação de uma nova espada japonesa – embora pouco freqüente – ocorre em meio a uma atmosfera altamente espiritual. A obra é precedida de orações às divindades ligadas a esse ofício; o artesão, depois de submeter‐se a rituais de purificação, se veste exteriormente de trajes cerimoniais, e, interiormente, de uma postura reverente; e só então começa o trabalho. O proprietário da espada deve, por gratidão, assumir o mesmo estado mental; e, de fato, quando o executivo japonês reserva um momento tranqüilo em sua casa para desembrulhar sua espada, desembainhá‐Ia e limpá‐Ia, esse ato é visto como um exercício de meditação, e não como a apreciação ociosa de uma obra de arte.

A espada, o exercício espiritual e a mente liberta são em torno dos quais giram estes textos. Lembra‐nos o autor que, com esforço e paciência, essas três devem tornar‐se uma só. Devemos praticar, praticar com tudo aquilo que tivermos em mãos, até que a hesitação e a cobiça, nossos inimigos, sejam abatidas com a presteza, a força e a precisão de um golpe de espada.

Existem várias edições das obras aqui traduzidas, mas elas não parecem apresentar grandes diferenças entre si. Baseei esta tradução nos textos que constam do Nihon no Zen Goroku , Vol. 13, o qual, por sua vez, utiliza‐ se dos textos de Takuan Osho Zenshu, publicado pela Takuan Osho Zenshu Kanko Kai.

Agradeço sinceramente a Sra. Agnes Youngblood, que me ajudou naquelas partes da tradução que me foram mais dificultosas; a John Siscoe, pelo estímulo e pelas sugestões; e aos professores Jay Rubin e Teruko Chin, da Universidade de Washington, que, a uma distancia de mais de seis mil quilômetros e sobre uns bons centímetros de neve, me ajudaram com o material de apoio. Todo e qualquer erro deve ser imputado à minha pessoa.

No conjunto, os três textos são dirigidos à casta dos samurais, e os três buscam unir o espírito do Zen com o espírito da espada. Os conselhos dados combinam os aspectos práticos, técnicos e filosóficos do conflito. Em linhas gerais, e de um ponto de vista individual, pode‐se dizer que Fudochishinmyoroku trata não somente da técnica, mas do modo pelo qual o eu se relaciona com o Eu [Íntimo] durante o conflito e de como o indivíduo pode vir a tornar‐se um todo unificado. Taiaki , por outro lado, trata mais dos aspectos psicológicos do relacionamento entre o eu e o outro. Entre os dois, Reiroshu , "O Claro Soar das Jóias" , trata da natureza fundamental do ser humano; de como um espadachim, um daimio – ou, aliás, qualquer pessoa – , pode conhecer a diferença entre a justiça e o egoísmo e compreender a questão básica de como e quando morrer.

Os três textos fazem com que o indivíduo se volte para o conhecimento de si mesmo, e, logo, à arte de viver.

A esgrima como mera expressão de uma técnica e o Zen meditativo já existiam havia tempo no Japão; o Zen se estabelecera firmemente no final do século XII. Com Takuan as duas coisas chegaram a uma verdadeira união, e seus escritos e opiniões sobre a espada tiveram uma influência extraordinária sobre os rumos que a arte japonesa da esgrima tomou daquela época até hoje. Essa arte ainda é praticada com fervor, e reflete uma parcela significativa da visão de mundo japonesa. Firmando a união do Zen e da espada, a obra de Takuan influenciou os escritos dos grandes mestres daquela época e deu origem a um grande número de textos que continuam a ser lidos e aplicados, como o Heiho Kadensho de Yagyu Munenori e o Gorin no Sho de Miyamoto Musashi. Esses homens tinham estilos diferentes, mas suas conclusões reúnem intuições e entendimentos de nível elevadíssimo, quer sejam expressos como a "liberdade e espontaneidade" de Musashi, a "mente comum que não conhece regras" de Munenori ou a "mente liberta" de Takuan.

Para Takuan, a culminação do Caminho não eram a morte e a destruição, mas a Iluminação e a salvação. O conflito, visto segundo uma mente "reta" , não somente dá vida, como a dá em abundância.

Fudochishinmyoroku

O REGISTRO M ISTERIOSO DA

S ABEDORIA I MÓVEL

Takuan Soho

para Yagyu Munenori

Vendo essa figura, o homem comum sente medo e renuncia a ser um inimigo do Budismo. O homem próximo da Iluminação compreende que ela manifesta a sabedoria imóvel e se desfaz de toda ilusão. Assim como os maus espíritos não têm acesso a Fudo Myô , assim também não o têm ao homem que faz transparecer a sua sabedoria imóvel e é capaz de praticar na mente esse dharma. É esse o propósito das saudações a Fudo Myô.

Diz‐se que o que se chama Fudo Myô é a mente imóvel e o corpo irresistível.

Irresistível é aquilo que não é detido por nada.

Imóvel é olhar para algo e não fixar a mente. Isso porque, quando a mente se fixa em algo, o peito se enche de juízos e é agitado por vários movimentos. Quando esses movimentos se esgotam, a mente fixada se move, mas na verdade não se move de maneira alguma.

Supõe que dez homens, cada um deles com uma espada, se abatam repentinamente sobre ti. Se tu te desviares de cada espada sem fixar a mente em nenhuma ação, e passares de cada um ao seguinte, tua ação será perfeita para cada um dos dez.

Embora a mente aja dez vezes contra dez homens, poderá a ação deixar de ser perfeita se a mente não se fixar em nenhum deles e tu reagires a cada um deles sucessivamente?

Supõe, porém, que a mente se detenha perante um desses homens. Embora tu te desvies da sua espada, quando o próximo homem vier, a ação perfeita terá escapado de ti.

Considera a Kannon^2 de Mil Braços , que tem mil braços saindo de um só corpo. Se a mente se fixar no braço que segura um arco, os demais 999 serão perfeitamente inúteis. É porque a mente não se detém num determinado lugar que todos os braços são úteis.

Quanto a Kannon , por que ela tem mil braços ligados a um só corpo? Essa figura foi criada com a intenção de revelar aos homens que, mesmo que um corpo tenha mil braços, cada um deles será útil se a sua sabedoria imóvel for libertada.

Supõe que tu te depares com uma árvore. Se olhares para uma única folha vermelha, não verás nenhuma das outras. Quando o olho não se volta para nenhuma folha em particular e tu olhas a árvore com a mente absolutamente vazia, o olho é capaz de captar um número ilimitado de folhas. Mas quando uma única folha prende o olhar, é como se as demais folhas não estivessem lá.

Aquele que compreendeu isso é idêntico à Kannon de mil braços e mil olhos.

O homem comum crê, muito simplesmente, que ela é abençoada por ter mil braços e mil olhos. O homem de sabedoria imatura, perguntando‐se como alguém pode ter mil olhos, afirma ser ela uma mentira e cede à blasfêmia. Mas o homem dotado de alguma compreensão tem uma crença reverente baseada nos princípios e não precisa nem da fé simples do homem comum nem da blasfêmia do outro; ele compreende que o Budismo, por meio desse único objeto, manifesta muito bem o seu princípio.

Todas as religiões são assim. Percebi que o Xintoísmo, em especial, é assim.

O homem comum tem um pensamento superficial.

Aquele que ataca o Budismo é ainda pior.

Esta religião, aquela religião – existem várias; mas, no seu ponto mais profundo, todas elas chegam a uma única conclusão.

De qualquer modo, quando um homem pratica a disciplina e parte do território do principiante rumo à sabedoria imóvel , ele termina por voltar a cair de novo no nível do principiante, o lugar de repouso.

Isso tem uma razão de ser.

(^2) Kannon , uma Bodhisattva , Deusa da Misericórdia Budista (em sânscrito, Avalokiteshwara ). Era representada

originalmente como uma figura masculina. Em uma de suas três formas mais comuns de figuração, possui mil olhos e mil mãos.

Mais uma vez, podemos nos referir à tua própria arte marcial. Como o principiante nada sabe a respeito da postura corporal ou de como empunhar a espada, sua mente não se fixa em lugar algum dentro dele. Se alguém o golpeia com a espada, ele faz frente ao ataque sem ter nada em mente.

À medida que ele estuda várias coisas e aprende as diversas posturas, a maneira de segurar a espada e o lugar onde concentrar a mente, sua mente se fixa em muitos objetos. Nesse ponto, quando ele quer golpear um oponente, seu desconforto é muito grande. Mais tarde, à medida que os dias vão passando e o tempo vai se acumulando, de acordo com a sua prática, nem as posturas do corpo nem as maneiras de empunhar a espada terão importância. Sua mente se torna simples como era no princípio, quando ele nada sabia e ainda tinha tudo por aprender.

Nisso se vê o sentido de se dizer que o princípio é igual ao fim; é como contar de um a dez, quando o primeiro e o último número ficam adjacentes um ao outro.

Também em outras coisas – nas notas musicais, por exemplo, quando se vai da nota inicial, a mais grave, até a final, a mais aguda – o mais baixo e o mais alto ficam um ao lado do outro.^3

Nós dizemos que o mais alto e o mais baixo são semelhantes. O Budismo, quando se chega à sua profundidade, é semelhante ao homem que nada sabe do Buda ou da Lei de Buda. Não possui adornos nem qualquer outra coisa que possa chamar a atenção dos homens.

A ignorância e as aflições do princípio, o lugar de repouso e a sabedoria imóvel que vem depois tornasse uma só coisa. A função do intelecto desaparece, e chega‐se a um estado de Não‐Mente‐Não‐Pensar. Quando se chega ao ponto mais profundo, os braços, as pernas e o corpo já sabem o que fazer, mas a mente não tem nenhuma participação nisso.

O sacerdote budista Bukkoku escreveu:

Embora não se dedique a montar guarda Nos pequenos campos da montanha O espantalho Não está de pé em vão. Tudo é assim.

Para fazer um espantalho para os campos da montanha, o agricultor fabrica uma figura humana e põe‐lhe nas mãos um arco e uma flecha. Os pássaros e animais o vêem e fogem. Essa figura não tem mente de espécie alguma; mas, se os veados sentem medo e fogem, na medida em que ela cumpriu sua função, ela não foi criada em vão.

Esse é um exemplo do comportamento daqueles que percorreram boa parte de qualquer Caminho. Embora mãos, pés e corpo se movimentem, a mente não se fixa em lugar nenhum e a pessoa não sabe onde sua mente está. No estado de Não‐Mente‐Não‐Pensar , a pessoa chegou ao grau do espantalho nos campos da montanha.

Do homem comum que não encontrou seu caminho, podemos dizer que ele jamais teve sabedoria e que ela jamais se manifestará, quaisquer que sejam as circunstâncias. A sabedoria suprema, estando no mais remoto dos lugares, absolutamente não se manifestará. Por fim, o sabichão imaturo despeja sua sabedoria, direto do alto da cabeça, e isso é ridículo. Os trajes e as maneiras dos sacerdotes de hoje podem e devem ser vistos sob essa luz, e isso é motivo de grande vergonha.

Existe um treinamento que diz respeito ao principio e um treinamento que diz respeito à técnica.

O princípio é como já expliquei: quando se chega, nada se percebe. É como se a pessoa se tivesse desfeito de toda concentração. Escrevi extensamente sobre isso um pouco acima.

(^3) Neste ponto, o texto dá o nome das doze notas da escala musical usada na China e no Japão. Da mais grave para a

mais aguda, elas são: ichikotsu, tangin, hyojo, shozetsu, shimomu, sojo, fusho, tsukuseki, ban (dakei), banshiki, shinsen, kamimu.

Ele atribui esse poema à cortesã de Eguchi^5.

A última parte desse verso – "Só posso esperar / que tua mente não seja detida..." – pode ser mencionada corno algo que chega ao próprio coração das artes marciais. É essencial que a mente não seja detida.

No Zen, quando alguém pergunta "o que é o Buda?", deve‐se levantar o punho cerrado. Quando alguém pergunta "Qual é o sentido último da Lei de Buda?" , deve‐se responder imediatamente: "Um único ramo da cerejeira em flor" , ou "O cipreste no jardim".

Não se trata de escolher uma resposta boa ou má. Nós respeitamos a mente que não se fixa. A mente que não se fixa não é movida nem pela cor nem pelo cheiro.

Não importa que a forma dessa mente imóvel seja reverenciada como um deus, respeitada como um Buda ou chamada de Espírito do Zen ou Sentido Último; se a pessoa pensar e depois falar, mesmo que pronuncie palavras de ouro ou versos misteriosos, isso não passará da aflição do lugar de repouso.

Não se pode dizer que a ação da pedra e da fagulha tem a velocidade de um relâmpago?

Sabedoria imóvel é ser chamado e responder "Sim?" imediatamente. Quando se é chamado, a hesitação quanto ao por que e o para quê do chamado é a aflição do lugar de repouso.

A mente que se fixa ou é movida por algo é lançada na confusão – tal é a aflição do lugar de repouso, e tal é o homem comum. Ser chamado e responder sem intervalo é a sabedoria de todos os Budas.

O Buda e todos os seres não são duas coisas. Essa mente é considerada um deus ou um Buda.

Embora haja muitos caminhos – o caminho dos deuses, o caminho da poesia, o caminho de Confúcio –, todos eles compartilham da clareza dessa mente única.

Quando explicamos a mente com palavras, dizemos coisas tais como " Todos possuem essa mente" , ou "Bons e maus acontecimentos, o nascer e o pôr‐do‐sol ocorrem segundo o Karma" , ou "Quer a pessoa deixe sua casa, quer leve seu país à ruína, tal é um reflexo do seu caráter, pois tanto o bem quanto o mal dependem da mente da pessoa". Se as pessoas quiserem conhecer essa mente, elas decerto serão confundidas se não houver um ser verdadeiramente Iluminado que lhas mostre.

Neste mundo, não há dúvida de que há pessoas que não conhecem a mente. Também é claro que há aqueles que a compreendem, por raros que sejam. Embora às vezes surja alguém que a compreenda, não é habitual que essa pessoa aja de acordo com o que compreende; então, embora seja capaz de explicar muito bem a mente, é duvidoso que a compreenda em profundidade.

Pode‐se explicar a água, mas nem por isso a boca ficará molhada. Podem‐se fazer longas dissertações sobre a natureza do fogo, mas a boca não se aquecerá.

Sem tocar na água verdadeira e no fogo verdadeiro, ninguém pode conhecer essas coisas. Mesmo a explicação de um livro não o tornará compreensível. O alimento pode ser definido em poucas palavras, mas isso não basta para aliviar a fome.

Não se chega à compreensão a partir da explicação de outra pessoa.

Neste mundo, há budistas e confucionistas que explicam a mente, mas suas ações não correspondem às suas explicações. A mente dessas pessoas não é verdadeiramente Iluminada. Se a pessoa não esclarecer perfeitamente o que é a sua própria mente, ela não terá compreensão.

Muitos dos que estudam não compreendem a mente, mas não se trata de mera questão de números. Não há um só dentre eles que tenha uma boa disposição. É preciso dizer que a iluminação da própria mente depende da profundidade do esforço feito.

(^5) Eguchi localizava‐se dentro da moderna cidade de Osaka. Diz‐se que, certa noite, Saigyo parou por lá e pediu abrigo,

dando ensejo a essa resposta da cortesã.

1.5 ONDE SITUAR A MENTE^6

Nós Dizemos:

Se a pessoa situa a mente na ação do corpo do oponente, sua mente será capturada pela ação do corpo do oponente.

Se ela situa a mente na espada do oponente, sua mente será capturada por essa espada.

Se ela situa a mente em pensamentos sobre a intenção do oponente de golpeá‐la, sua mente será capturada pelos pensamentos sobre a intenção do oponente de golpeá‐Ia.

Se ela situa a mente em sua própria espada, sua mente será capturada por sua própria espada.

Se ela situa a mente na sua própria intenção de não ser atingida, sua mente será capturada por sua intenção de não ser atingida.

Se ela situa a mente na postura do oponente, sua mente será capturada pela postura do oponente.

O que isso quer dizer é que não há lugar onde situar a mente.

Certa vez, uma pessoa disse: "Onde quer que eu situe a minha mente, minhas intenções ficam presas ao lugar para onde ela vai, e eu perco o combate. Por isso, situo minha mente logo abaixo do umbigo 7 e não a deixo vaguear. Dessa maneira, sou capaz de mudar de acordo com as ações do meu oponente."

Isso é razoável. Mas, segundo o ponto de vista mais elevado do Budismo, situar a mente logo abaixo do umbigo e não deixá‐la vaguear não corresponde a um alto nível de compreensão, mas a um nível baixo. Corresponde ao nível da disciplina e do treinamento, ou ao nível da seriedade 8. Corresponde ainda ao dito de Mêncio: "Buscai a mente perdida." 9 Tampouco é esse o nível mais alto. Seu sentido é a seriedade. Quanto à "mente perdida", escrevi sobre isso em outra ocasião, e lá poderás encontrar a resposta.

Supõe que tu situes a mente abaixo do umbigo e não a deixes vaguear: tua mente será capturada pela mente que concebe esse plano. Tu não terás a capacidade de avançar e serás como um escravo, sem liberdade alguma.

Isso leva a uma pergunta: "Se o ato de situar a mente abaixo do umbigo me deixa preso e incapaz de agir, ela não tem utilidade nenhuma. Sendo assim, em que parte do corpo devo situar a mente?"

Respondi: "Se tu a situares na mão direita, ela será capturada pela mão direita e o corpo perderá sua capacidade de ação. Se tu a situares no olho, ela será capturada pelo olho e o corpo perderá sua capacidade de ação. Se tu a situares no pé direito, ela será capturada pelo pé direito e o corpo perderá sua capacidade de ação. Não importa onde a situes; se a situares num só lugar, o restante do corpo perderá a capacidade de ação."

Pergunta: "Então, onde situar a mente?"

Eu respondi: "Se não a situares em lugar nenhum, ela irá a todas as partes do teu corpo e o preencherá inteiramente. Dessa maneira, penetrando na tua mão, ela realizará a função da mão. Penetrando no teu pé, ela realizará a função do pé. Penetrando no teu olho, ela realizará a função do olho.

(^6) O termo traduzido por situar a mente em pode, evidentemente, ser traduzido também como concentrar‐se em. Esse

último verbo, porém, restringe o sentido original que o autor quis dar ao texto. Deve‐se manter em mente ambas as idéias. (^7) O tanden , ponto situado três dedos abaixo do umbigo, é considerado por alguns taoístas como a morada da própria

mente. Ele fica muito próximo do centro de gravidade do corpo e é muito mencionado nos textos sobre artes marciais. (^8) Seriedade , traduzida também como reverência, significa, para os neoconfucianos, uma atitude interior de atenção e

compostura aplicada aos esforços ativos. Enquanto estado desejável da mente, ela contém também, em certa medida, o sentido de meditação. (^9) A citação é tirada de Mêncio (Livro 6, parte 1, capítulo 11): "Disse Mêncio : 'A compaixão é a mente do ser humano. A

justiça é o seu caminho. É lastimável que ele abandone esse caminho e não confie nele; que ele perca a sua mente e não saiba buscá‐la. Quando um homem perde uma galinha ou um cachorro, ele sabe procurá‐los: mas, tendo perdido a própria mente, não sabe procurá‐la. O Caminho do Conhecimento resume‐se em buscar a mente perdida.'''

1.7 A MENTE DA MENTE EXISTENTE E A MENTE DA NÃO‐MENTE

A Mente Existente é idêntica à Mente Confusa e significa literalmente a "mente que existe". É a mente que pensa numa direção determinada, qualquer que seja o objeto de seu pensamento. Quando existe na mente um objeto de pensamento, surgem a discriminação e os pensamentos. É isso que se conhece como Mente Existente.

A Não‐Mente é idêntica à Mente Reta. Ela jamais se congela nem se fixa num determinado lugar. Chama‐se Não‐Mente o estado em que a mente não abriga nem discriminação nem pensamento, mas caminha pelo corpo inteiro e preenche o ser como um todo.

A Não‐Mente não se situa em lugar nenhum. Mesmo assim, ela não se assemelha à madeira ou à pedra. Chama‐se Não‐Mente onde não há lugar de repouso. Quando ela se fixa, há algo na mente. Quando não há nada na mente, chama‐se isso de mente da Não‐Mente. Chama‐se também Não‐Mente‐Não‐Pensar.

Quando essa Não‐Mente está bem desenvolvida, a mente não se fixa em nada nem sente falta de nada. É semelhante à água transbordante e existe dentro de si mesma. Manifesta‐se em sua melhor forma nas épocas de necessidade.

A mente que enrijece e se fixa num determinado lugar não funciona livremente. Do mesmo modo, as rodas de uma carruagem giram porque não estão rigidamente fixas. Se estivessem muito apertadas, não girariam. Também a mente não funciona quando se apega a uma situação determinada.

Supõe que haja algum pensamento dentro da mente; embora tu ouças as palavras ditas por outrem, não serás capaz de escutá‐las. Isso ocorre porque a tua mente se fixa nos teus pensamentos.

Quando a tua mente se inclina na direção desses pensamentos, embora tu ouças, não escutarás; e embora olhes, não verás. Isso ocorre porque há algo na tua mente, e esse algo que lá existe é o pensamento. Se tu fores capaz de eliminar esse algo que lá esta, tua mente se transformará na Não‐Mente , funcionará sempre que necessário e será perfeitamente adequada ao uso.

A mente que pensa em eliminar o que contém dentro de si será ocupada por esse mesmo ato. Se a pessoa não pensar a respeito, a mente eliminará os pensamentos por si mesma e por si mesma transformar‐se‐á na Não‐Mente.

Se a pessoa sempre trata a própria mente desse modo, um dia ela entrará neste estado por si mesma. Aquele que procura atingir esse estado à força jamais o atingirá.

Diz um velho poema:

Pensar: "Não vou pensar" – Também é algo que está nos pensamentos. Simplesmente não pense Sobre não pensar em absoluto.

1.8 LANCE O CANTIL NA ÁGUA E EMPURRE‐O PARA BAIXO;

ELE VAI VIRAR PARA CIMA E VOLTAR À SUPERFÍCIE

Empurrar um cantil, no caso, é empurrá‐la com a mão. Quando se lança um cantil na água e ele é empurrado para baixo, de repente ele escapa para um dos lados e volta à superfície. O que quer que se faça, é algo que não pára num só lugar.

A mente daquele que chegou [na outra margem] não se fixa nem por um momento num objeto determinado. É como empurrar o cantil para baixo d'água.

1.9 GERAR A MENTE QUE NÃO TEM LUGAR DE REPOUSO

Na nossa escrita sino‐japonesa, isso se pronuncia omushoju jijogoshin.

Não importa o que a pessoa faça; quando ela gera a mente que pensa sobre algo, a mente se fixa nesse algo. Portanto, deve‐se gerar a mente que não tem lugar onde se fixar.

Quando não se gera a mente, a mão não avança.

Aqueles que, ao avançar, geram a mente que de hábito se fixa nesse avanço, mas ao mesmo tempo não se fixam em absoluto no decurso da ação – estes se chamam os homens realizados de todos os Caminhos.

A mente apegada nasce da mente que se fixa. Também o ciclo da transmigração nasce daí. A fixação transforma‐se nos laços da vida e da morte.

Supõe que alguém olhe para as flores da cerejeira ou as folhas das árvores no outono. Enquanto a pessoa gera a mente que olha para essas coisas, é essencial não fixar‐se nelas.

Diz o poema de Jien^10 :

A flor que recende seu perfume diante da minha porta de junco O faz sem cuidados. Eu, porém, sento‐me e olho – Como é triste este mundo.

Isso significa: a flor desprende seu perfume, com a Não‐Mente ; enquanto isso, eu olho para ela e minha mente não vai além. É lastimável que a minha mente me tenha paralisado desse modo!

Faze disso um princípio secreto: ao veres ou ouvires, não detenhas a mente num lugar determinado.

A palavra seriedade é explicitada pelo dito: "Uma meta, nenhuma distração."^11 A mente é estabelecida num só lugar e não se deixa que ela se movimente. Mais tarde, mesmo ao desembainhar a espada para dar o golpe, considera‐se essencial não permitir que a mente se movimente na direção do golpe. Especialmente em questões tais como a de receber ordens do teu senhor, deve‐se manter a palavra seriedade diante dos olhos da mente o tempo todo.

Também no Budismo temos o espírito da seriedade. Quando soa três vezes o sino chamado Sino da Reverência , nós juntamos as mãos e nos inclinamos. Essa atitude de reverência, na qual a primeira coisa a fazer é entoar o nome do Buda, é idêntica a ter "uma meta, nenhuma distração" ou "a mente sem confusão".

O espírito de seriedade não é o nível mais profundo do Budismo. Conter a própria mente, sem deixá‐Ia confusa, é a disciplina do noviço que apenas principiou no caminho do aprendizado.

Essa prática, quando levada a efeito por muito tempo, leva àquele nível de liberdade em que se pode deixar a mente ir a qualquer direção. O nível acima mencionado, o de "engendrar a mente que não tem lugar de repouso" , é o mais elevado de todos.

O significado da palavra seriedade está em conter a mente e não enviá‐Ia a outros lugares; o pensamento é que, se a mente for liberada, ela se confundirá. O que ocorre nesse nível é uma constrição da mente, e não se permite sequer um til de negligência.

É como um gato que caçou um filhote de pardal. Para evitar que isso aconteça de novo, o gato é amarrado com uma corda e permanece sempre preso.

Se a minha mente está amarrada como um gato, ela não está livre e, provavelmente, é incapaz de atuar como deve. Quando o gato está bem treinado, a corda é desamarrada e deixa‐se que ele vá para onde

(^10) Jien (1155‐1225), também muito conhecido pelo nome de Jichin, foi um poeta e monge da escola Tendai.

(^11) Frase que era usada freqüentemente pelos neoconfucianos chineses para explicar a "seriedade".

Devemos ser como o lótus, que não é maculado pela lama sobre a qual cresce. Embora a lama exista, isso não deve nos amargurar. Deve‐se tornar a mente semelhante ao cristal polido, que permanece imaculado mesmo quando mergulhado na lama. Deve‐se deixar a mente ir para onde ela queira.

O efeito da constrição da mente é fazê‐la perder a liberdade. O controle estrito da mente é algo que só se faz no princípio. Quem permanece assim a vida inteira jamais atingirá o nível mais alto. Na verdade, nem sequer sairá do mais baixo.

Durante o treinamento, é bom fixar na memória as palavras de Mêncio: "Buscai a mente perdida." O grau supremo, porém, está contido no que disse Shao K'ang‐chieh: "É essencial perder a mente."

Eis um dos ditos do sacerdote Chung‐fêng^16 : "Detende a posse de uma mente que foi libertada." O significado dessas palavras é idêntico ao do dito de Shao K'ang‐chieh, segundo o qual devemos deixar a mente livre. Sua importância reside em advertir‐nos a não procurar a mente perdida nem amarrá‐la num único lugar.

Chung‐fêng também disse: "Não vos prepareis para a retirada." Isso equivale a ter uma mente que não pode ser alterada. Significa que o homem deve cuidar para que, embora tenha avançado com sucesso uma ou duas vezes, não se resigne à retirada quando estiver cansado ou em circunstâncias imprevistas.

1.11 UMA BOLA ATIRADA NA CORRENTEZA JAMAIS SE DETERÁ^17

Segundo um ditado, "Uma bola atirada na correnteza jamais se deterá."

Isso significa que se tu atirares uma bola na água corrente, ela flutuará sobre as ondas e jamais se fixará num só lugar.

1.12 ROMPEI O ISTMO ENTRE O ANTES E O DEPOIS

Há uma frase que diz: "Rompei o istmo entre o antes e o depois." Não libertar a mente dos momentos passados, deixar que permaneçam vestígios da mente presente – ambas as coisas são más. Isso significa que se deve romper decididamente o intervalo entre o antes e o agora. A importância disso está em cortar o fio que liga o antes e o depois, o agora e o que já foi feito; isto é, não deter a mente.

1.13 A ÁGUA INCENDEIA O CÉU, O FOGO LAVA AS NUVENS

Não queimes hoje os campos de Musashino. Meu esposo e eu jazemos ocultos na relva da primavera.^18

Houve quem interpretasse o significado desse poema desta maneira:

(^16) Chung‐fêng (1263‐1323): sacerdote Zen da China sob a Dinastia Yuan.

(^17) Do Pi Yen Lu , coleção de problemas, ditos e anedotas dos patriarcas Zen. Um monge perguntou a Chao‐chou: "Um

bebê recém nascido é dotado das seis percepções?" Disse Chao‐chou: "Atira uma bola na correnteza." O monge então perguntou a T'ou‐tze: "O que significa 'Atira uma bola na correnteza'?" Disse T'ou‐tze: "Ela jamais se deterá." (^18) Poema encontrado no final da duodécima seção do lse Monogatari (século IX). Eis a seção: Há muito tempo, um

homem roubou uma jovem de outro homem e levou‐a para Musashino. Lá, sendo considerado um ladrão, ele foi perseguido pelo governador da província. Então, escondeu a moça num matagal e fugiu. Disse um viajante: "Há um ladrão neste campo" , e os perseguidores prepararam‐se para acender uma fogueira a fim de expulsá‐lo dali com a fumaça. Em sua angústia, a jovem gritou: "Não queimeis hoje os campos de Musashino. / Meu esposo e eu jazemos ocultos / na relva da primavera.”

Enquanto as nuvens brancas se juntam / As glórias da manhã logo se extinguem.

Há algo que tenho meditado somente nos meus momentos de solidão e sobre o que devo aconselhar‐te. Sei que isso não passa de uma opinião minha, humilde e questionável, mas sinto que este é o momento correto; logo, devo escrever aquilo que vejo.

Tu és um mestre de artes marciais sem igual no passado ou no presente, e por isso a tua dignidade nobiliárquica, as tuas rendas e a tua reputação resplandecem como o sol. Acordado ou dormindo, tu não deves jamais esquecer essa dádiva; e, a fim de retribuir este favor, o teu único pensamento deve ser o de cumprir com os teus deveres de lealdade, de dia e de noite.

A lealdade total reside, em primeiro lugar, em corrigir a mente, disciplinar o corpo, não dividir nem por um fio os pensamentos acerca do teu senhor, e não alimentar ressentimento pelos outros nem culpá‐Ios. Não negligencies a tua faina diária. Em casa, sê filial; não permitas que nada de indecente ocorra entre esposo e esposa, sê correto nas formalidades, não te ligues a concubinas, aparta‐te do caminho da sensualidade, sê austero como pai e age de acordo com o Caminho. Ao empregar subordinados, não faças distinções calcadas no sentimento pessoal. Emprega homens que sejam bons e liga‐os a ti; reflete sobre as tuas deficiências, conduz com justiça o governo da tua província e afasta os homens maus.

Dessa maneira, os bons serão dia a dia recompensados, e os demais serão naturalmente influenciados ao ver que seu senhor ama o bem. Assim, eles mesmos apartar‐se‐ão do mal e voltar‐se‐ão para o bem.

Dessa maneira, senhor e servo, superior e inferior, serão homens de bem; e, quando os desejos pessoais se tornarem exíguos e o orgulho for abandonado, a província abundará em riqueza, os filhos terão a mesma mente que os pais e superiores e inferiores trabalharão juntos como mãos e pés de um só organismo. Então, a província por si mesma se tornará pacífica. É esse o princípio da lealdade.

Esse soldado, tão absolutamente dedicado, provavelmente seria da tua predileção em qualquer situação, mesmo se tivesses o comando de centenas de milhares de homens. Quando o conjunto da mente da Kannon de Mil Braços está correta, cada um dos mil braços é útil; do mesmo modo, se o espírito da tua arte marcial estiver correto, a função de toda a tua mente será livre, e mil inimigos estarão sujeitos à tua espada. Isso não é, porventura, uma lealdade grandiosa?

Ninguém fora de ti é capaz de discernir se a tua mente está correta ou não. O bem e o mal estão presentes em cada pensamento que surge. Aquele que pensa sobre os fundamentos do bem e do mal, e faz o bem e abstém‐se do mal, verá que sua mente se corrigirá por si mesma.

Conhecer o mal mas não abster‐se dele é uma enfermidade dos desejos. Quer se trate de um amor da sensualidade, quer de uma condescendência com as próprias paixões, é sempre uma questão de a mente desejar algo. Então, mesmo que houvesse um homem bom ao teu lado, o seu bem não teria utilidade nenhuma se não cativasse o teu capricho. Encontrar agrado num homem ignorante, afeiçoar‐se a ele e designar‐lhe um cargo, sem ter em conta o homem bom que está próximo de ti, é o mesmo que não ter nenhum homem bom ao teu lado.

Nesse caso, mesmo que um senhor empregasse milhares de homens, dificilmente haveria um que lhe servisse bem num momento de emergência. Quanto aos jovens ignorantes e maus que de início haviam se mostrado tão atraentes, eles jamais pensariam em sacrificar a própria vida quando confrontados com uma situação real, pois seus corações estavam na injustiça desde o início. Jamais ouvi falar de um homem que, não tendo a mente correta, tivesse sido de boa valia ao seu senhor.

O fato de que tal coisa possa estar ocorrendo na tua escolha de aprendizes é motivo de grande vergonha.

Eis algo que ninguém sabe: em decorrência de uma inclinação escusa, um homem pode ser arrastado pelos maus hábitos e por fim cair no mal. É possível que tu penses que ninguém conhece esses teus pecados; mas, uma vez que "nada é tão evidente quanto aquilo que mal se vê"^19 , se eles forem conhecidos da tua própria

(^19) A citação baseia‐se na Doutrina do Justo Meio (capítulo 1): "Nada é tão visível quanto aquilo que está oculto, nada é

tão evidente quanto aquilo que mal se vê. Por isso, o cavalheiro é cuidadoso quando está sozinho."

Reiroshu

O C LARO SOAR DAS J ÓIAS

Takuan Soho

Não há nada que nos seja mais querido que a vida. Um homem pode ser rico ou pobre; mas, se não tiver uma vida longa, não terá atingido seu verdadeiro propósito. Mesmo que tivesse de despender milhares em bens e riquezas, deveria fazê‐lo se com isso pudesse comprar a vida.

Diz‐se que a vida vale muito pouco em comparação à retidão da mente^1. Na verdade, a retidão da mente é o bem mais estimado.

Nada é mais precioso que a vida. No entanto, no momento em que é preciso desfazer‐se desta vida tão amada para firmar‐se na retidão da mente, não há nada que seja tão estimado quanto essa retidão.

Ao examinar o mundo com cuidado, constatamos que há muita gente que não se importa em perder a vida. Supõe tu, porém, que uma pessoa em mil morreria pela retidão da mente? Parece que, ao contrário de toda expectativa, na humilde casta dos servos há muitos que o fariam. Mas, entre aqueles que se consideram sábios, é difícil encontrar quem faça o mesmo.

Num dia de primavera, enquanto eu meditava sobre essas coisas, uma pessoa se apresentou e disse algo como o que segue: "Embora a riqueza nos agrade o coração, a vida é a maior das riquezas. Quando se apresenta o momento da escolha, o homem se desfaz de toda a sua riqueza para manter intacta a própria vida. Mas quando pensamos que o mesmo homem não hesitaria em perder a vida tão querida pelo bem da retidão da mente, constatamos que o valor da retidão da mente é maior que o da própria vida. O desejo, a vida e a retidão da mente – entre esses três, não é a última a mais amada pelo homem?"

Naquela época, respondi algo como o que segue: "Desejo, vida e retidão da mente – dizer que a retidão da mente é a mais amada das três é apenas natural. Mas dizer que todos os homens, sem exceção, amam a retidão da mente acima de tudo, é algo que não corresponde à verdade. Não há nenhum homem que ame o desejo e a vida e conserve a retidão da mente em seus pensamentos."

Então uma outra pessoa disse: "A riqueza é um adorno da vida. Só a vida tem valor, pois, sem ela, a riqueza é inútil. Entretanto, diz‐se que há muitos que não se importam em perder a vida pelo bem da retidão da mente."

Perguntei: "Qual o homem que não se importa em perder a vida por amor à retidão da mente?"

Ele respondeu: "Há muitas pessoas neste mundo que não toleram um insulto e que, junto com seus inimigos, perdem a vida numa luta. Isso quer dizer que elas atribuem o primeiro lugar à retidão da mente e não se importam com a vida. Elas não morrem pela riqueza ou pela vida, mas pela retidão da mente.

Aqueles que foram mortos no fragor da batalha, é impossível conhecer‐lhes o número. Todos eles morreram pela retidão da mente. Sabendo‐se disso, pode‐se dizer que todos os homens amam a retidão da mente acima do desejo e da vida."

Eu disse: "Morrer por ter sido humilhado ou insultado assemelha‐se à retidão da mente, mas não é de modo algum. Morrer assim é esquecer‐se de si mesmo na cólera do momento. Não é, em absoluto, uma manifestação de retidão da mente. O nome mais apropriado para isso é ira, e nada mais. Antes de a pessoa ter sido insultada, ela já se havia apartado da retidão da mente, e é por isso que sofreu o insulto. Se a mente da pessoa é correta no relacionamento com os outros eles não a insultarão. Tendo sido insultada, a pessoa deve admitir que já havia perdido a retidão da mente antes da ofensa."

A retidão da mente é questão de suma importância.

Sua substância é idêntica ao Princípio do Céu, que dá vida a todas as coisas. Quando ela é adquirida pelo corpo humano, é chamada a natureza própria da pessoa. Seus outros nomes são virtude, o Caminho,

(^1) Retidão da mente foi o termo finalmente escolhido para traduzir o japonês gi , embora esteja longe de ser um

equivalente exato. Entre as alternativas levadas em conta, justiça foi rejeitada porque, em última análise, o ocidental satisfeito com o próprio senso de justiça pode sentir‐se "justificado" em corrigir os outros. Probidade ("integridade irrepreensível") é muito mais próximo e não deve ser esquecido. A ênfase está em que a pessoa corrija primeiro a si mesma, através da reflexão, do treinamento e da disciplina. Isso não leva automaticamente ao proselitismo, e em geral não leva de maneira alguma. Na verdade, o Zen e a artes marciais estão repletos de relatos de pessoas que, querendo submeter‐se ao discipulado, impuseram‐se enormes sofrimentos e humilhações para se tornarem dignas de receber os ensinamentos do mestre.