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Transcrição do curso ministrado pelo filosofo Olavo de Carvalho.
Tipologia: Transcrições
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Não perca as partes importantes!
Aula 2 6 de março de 2018 [ versão provisória ] Para uso exclusivo dos alunos do Seminário de Filosofia. O texto dessa transcrição não foi revisto ou corrigido pelo autor. Por favor, não cite nem divulgue esse material. Boa noite a todos. Sejam bem-vindos. Hoje eu queria entrar na parte mais prática do negócio: estudando obstáculos fundamentais ao exercício da inteligência. O primeiro obstáculo advém da própria natureza das coisas: nós só podemos dizer aquilo que nós pensamos, ou seja, não aquilo que nós percebemos. Quer dizer, se não houver uma operação de formalização e esquematização feita dentro da nossa consciência, a fala simplesmente não sai. Nós não temos nenhum meio de expressar diretamente os objetos ou mesmo a sensação que eles nos trazem. Isso quer dizer que praticamente nós nunca dizemos o que estamos vendo, só dizemos o que estamos pensando. Se temos consciência disso então podemos desenvolver uma série de mecanismos, corretivos ou adaptativos, para nos mantermos o mais próximo possível dentro do mundo de nossa percepção. Agora, as imagens que povoam a nossa memória e das quais extraímos aquilo que vamos dizer são de duas fontes: as percepções diretas ou os elementos imaginários que coletamos aqui ou ali – por exemplo, aquilo que lemos, que ouvimos falar etc. A maneira de tratar essas duas coisas é completamente diferente. Na maior parte dos casos podemos observar que a expressão mais próxima possível de uma experiência direta é uma coisa muito difícil para as pessoas, pois as nossas experiências, sensações e percepções são individualizadas e, na maior parte dos casos, dificílimas de transmitir, mas a linguagem com que nós falamos é a mesma para todos e embora ela mude no curso dos tempos – introduz termos novos, adquire novas construções etc. – ela ainda continua sendo um produto padronizável, por assim dizer. Aí nós temos uma série de dificuldades: primeiro, perceber corretamente; segundo, memorizar corretamente; terceiro, a transposição disso numa linguagem. Só no momento em que se transpõe uma dessas percepções em linguagem é que nós nos apropriamos dela. Isso quer dizer que aquilo que nós conseguimos nos apropriar e verbalizar a partir do nosso conjunto da experiência é muito pequeno e muito facilmente alterável desde fora. Por exemplo, se o indivíduo passou por qualquer um desses empreendimentos de grupos de encontro, psicoterapias, ou qualquer outro destes tipos de manipulação da consciência, é mais do que óbvio que ele não se lembre completamente do processo e que não saiba o que é que está dirigindo o curso de seus pensamentos. Portanto, a primeira coisa a se fazer seria remover isso aí; voltar atrás e dizer o que foi percebido de fato.
Existem várias experiências em que se reúne uma plateia e um sujeito faz acontecer alguma coisa na frente deles. Daí, depois, cada um descreve aquilo de uma maneira diferente – é evidente que isto pode acontecer, mas isto não acontece sempre e realmente não é a regra geral. Por exemplo, se alguém ver um gato caminhando sobre a mesa e perguntar às quarenta pessoas ali presentes o que elas viram, todas irão dizer que viram um gato sobre a mesa. Mas, pode acontecer, sobretudo se for um acontecimento programado, de surgir uma divergência nas narrativas. Ora, todas essas divergências são baseadas, não na estupidez, na ignorância, ou na falha da percepção humana, mas no fato de que o objeto ou fato percebido tem em si mesmo muitos aspectos que podem ser observados desde muitas perspectivas. Desde o século XVIII, pelo menos, os filósofos, os psicólogos, os estudiosos do ser humano em geral, dedicaram uma atenção extraordinária ao problema da mente humana e, hoje em dia, ao cérebro humano, tentando encontrar ali a chave da cognição. Mas acontece que isso é impossível, pois não haveria cognição nenhuma se não houvesse um negócio chamado mundo. Então, é claro que se vocês querem obter uma visão clara do que é o conhecimento humano, vocês deverão estudar as relações entre o sujeito e o objeto, entre o cognoscente e o cognoscido, entre a mente humana e o mundo. Mas se vocês me perguntarem: “Existe alguma disciplina que estude isso?”. Não, não tem nenhuma. Todas as disciplinas vão focar ou no mundo – por exemplo, um sujeito que está estudando geografia não está interessado nos procedimentos cognitivos que o cérebro dele teve de desempenhar para conhecer a geografia, ele está interessado diretamente nos objetos da geografia – ou na mente humana – se o sujeito for estudar essa mesma disciplina pelo lado psicológico ou filosófico ele terá que se concentrar nisso quase que incoercivelmente. Hoje mesmo estávamos conversando, eu e a Paula, que me trouxe uma gravação de um médico conhecido dela. Ele leu (ou ouviu) algo que eu disse a respeito da tipologia do Carl Jung e viu que eu levantava o seguinte problema: O Jung descreve a tipologia dos vários tipos da mente humana segundo quatro funções cognitivas – intuição, sensação, pensamento e sentimento – conforme elas tenham uma orientação introvertida ou extrovertida – temos, portanto, oito tipos fundamentais. E ele diz que em toda pessoa há uma função que domina, que esta é a mais consciente e, por outro lado, a função oposta se torna inconsciente e, de certo modo, atrapalha a função mais consciente. Por exemplo, ele coloca assim – notem bem, isso é o Jung que afirma; eu particularmente não concordo com nada disso, na verdade eu acho que tudo isso está errado; isso é o que ele diz: a intuição se opõe a sensação – portanto se no sujeito predomina a função intuitiva, a sensação ficará inconsciente, ele terá uma má percepção das situações físicas sensíveis entorno; o pensamento se opõe ao sentimento – portanto em um indivíduo no qual predomine o pensamento haverá uma espécie de sentimento atrofiado, porém este sentimento atrofiado terá um peso na conduta dele, a sua vida inconsciente se centrará naquela função atrofiada, a função secundária. E, conforme ele seja um intuitivo, sensitivo, perceptivo, “pensamentivo”, extrovertido, etc., a sua função dominante se centrará em objetos do mundo exterior ou do mundo interior. Exemplo: se o sujeito é um sensitivo introvertido, ele é hipersensível aos seus estados físicos e às pequenas mudanças do ambiente físico; automaticamente a função intuitiva dele ficará atrofiada e será uma fonte de problemas para ele – ele poderá ter falsas intuições, falsos pressentimentos etc. Só que o Jung define – quando vamos ver a descrição de cada uma das funções – a intuição como uma função cognitiva que funciona por via do inconsciente. Tão logo li isto eu perguntei: “Se a função dominante é consciente, como é possível que uma delas só opere por via do inconsciente?”. Então esse médico, doutor Mário não sei das quantas, disse que é possível que a função opere por via do inconsciente, quer dizer, a intuição opera inconscientemente, mas o objeto dela, o resultado do conhecimento obtido, é consciente: bom, isso aí é possível. Eu estou dando esse exemplo só para mostrar para vocês como a psicologia dos últimos dois séculos se centra sempre no problema do sujeito, sempre na mente humana, no consciente ou inconsciente, nos reflexos condicionados – tudo isso está em nós. Mas daí eu pergunto: “E o mundo? Não existem
Em decorrência também da tradição kantiana, tudo no mundo se dividiu entre duas coisas: existe a natureza, que é um negócio que funciona de acordo com certas leis permanentes que a ciência teoricamente investiga; e existe a cultura, que é tudo o que nós criamos – as linguagens, as artes, os costumes etc. Bom, mas se essas coisas são separadas como é que uma pode afetar a outra e a outra pode afetar a uma? Ou seja, simplesmente não há uma ciência da relação entre o ser humano e o universo objetivo – isso desapareceu. Então, se você é um indivíduo mais chegado às ciências físicas você vai tentar explicar tudo em função de processos naturais, mas se você for chegado em ciências sociais ou em psicologia você vai explicar tudo em função da cultura. O obstáculo que isso cria a inteligência humana é monstruoso, pois se já se tem a divisão prévia e, às vezes, até a classificação prévia de tudo o que está acontecendo, ou a coisa se enquadra no que o sujeito entende com os conceitos que ele tem ou ele simplesmente não pode enxergá-la. Isso quer dizer que a famosa dúvida sobre o mundo exterior se impregnou de tal modo, sobretudo no ambiente das ciências humanas, que tudo é explicado em função da subjetividade e da cultura, inclusive ações físicas que mudam o mundo material entorno e que, ou se baseiam num conhecimento desse mundo material ou então é tudo loucura. Como todos nós fomos educados dentro dessa cultura, nós todos estamos acostumados a quando termos algum problema nos perguntarmos: “O que há de errado comigo?”. Quando começamos a observar tudo o que está errado no ambiente físico e social entorno, eu acho que a pergunta se inverte. E a pergunta é a seguinte: “Como é que eu posso tentar, examinando a mim mesmo, descobrir o que está se passando entorno?” – é absolutamente impossível. É a mesma coisa que tentar descobrir em si mesmo os pensamentos de um outro. Isto é um vício generalizado, quer dizer, todos nós somos psicologistas, toda a nossa sociedade moderna é psicologista. A ideia de que nós não percebemos as coisas corretamente, de que a nossa percepção é errada, está tão impregnada na nossa cultura que há técnicas inteiras para se modificar o modo de percepção do sujeito como se houvesse algum defeito constitucional. Se pensarmos bem, o que é a programação neurolinguística? É fazer as pessoas verem as coisas de uma certa maneira. Por que isso é possível? Porque não se admite que haja uma maneira correta, tudo é subjetivo. Então, tem a mente do paciente e tem a mente do programador neurolinguístico e ele irá impor ao indivíduo um novo padrão. Se compararmos o ambiente arquitetônico urbano, ele é muito mais uniforme do que uma floresta, por exemplo. Na floresta as formas são tão variadas que frequentemente o sujeito se perde ali no meio
tempo num ambiente que é um cruzamento de subjetividades e não um conjunto de coisas e fatos. Estão entendendo? Isso aqui é fundamental para o que eu vou dizer em seguida. Uma das primeiras providências para vocês liberarem suas inteligências é se voltarem ao ambiente físico – mudar a hierarquia. “Espera aí! Existe o planeta Terra e eu estou aqui, estou assentado em cima dela. Eu não sei exatamente qual é o formato do planeta Terra” – inclusive existem pessoas que dizem que a Terra é plana; seja ela plana ou esférica, o fato é que estamos em cima dela – “a Terra me impõe uma serie de possibilidades e limitações”. Por exemplo, eu tenho um determinado tamanho e não outro. Eu tenho um certo coeficiente de força física que eu posso aumentar um pouco, mas não tanto – eu posso treinar a vida inteira para ficar fortão, mas nunca vou ser forte como um urso, por exemplo. Ou seja, existem limites físicos que são absolutamente instransponíveis e é essa a realidade em cima da qual se constrói o mundo humano. Em toda e qualquer situação devemos atentar primeiro para quais são os condicionantes físicos dela e entender que eles são a realidade primária e não o mundo humano construído em torno. Mesmo porque esse mundo humano se modifica com tal velocidade que, se a natureza se modificasse também com a mesma velocidade, ela já teria terminado – é claro, existem mudanças na natureza, mas são lentas e nunca são estruturais, são apenas mudanças de detalhes. No mundo humano, nós podemos, em questão de dias, mudar todas as regras, todas as normas, todas as proibições e, aliás, isso acontece. Por exemplo, num golpe de Estado, onde um sujeito toma o poder: ele pode baixar um monte de leis onde tudo o que era permitido fica proibido e vice-versa e nós já somos metido nesse ambiente numa velocidade impressionante. Isso quer dizer que, enquanto nos orientamos apenas pelo ambiente humano, claramente nós estamos perdidos, estamos fora da realidade – esse é o primeiro ponto. Eu me lembro de quando eu era moleque uma vez eu vi uma foto de um general de 1,20m de altura passando em revista a soldados de 1,90m. Eu olhava aquilo e pensava: “Porque eles obedecem esse baixinho?”. Evidentemente não era por nenhum fator de ordem física, mas era por uma rede enormemente complexa de obrigações e proibições na qual cada um deles acreditava – cada um daqueles soldados poderia pegar o baixinho e jogar dentro da lata de lixo sem a menor dificuldade. Inclusive, quando fomos para Roraima, para uma conferência com os militares, estava lá a tropa toda e o comandante era um hominho de 1,20m de altura – “Ih, olha lá aquele personagem daquela fotografia!”. [risos] É só a partir do ambiente físico que podemos reconstruir nossas memórias de uma maneira realista – não tem outro jeito. Agora, Aristóteles já ensinava que inteligência não opera diretamente sobre os dados dos sentidos, ela só opera em cima daquilo que foi guardado na memória, isto é, de tudo aquilo que foi percebido, ela abstrai algumas formas capazes de serem repetidas na mente – aí nós já temos uma primeira seleção. Ora, selecionamos essas formas baseados em que interesse? Qual é o critério de seleção? Geralmente as pessoas nem sabem qual é o critério. Porque então prestaram atenção nisto e não naquilo? Porque tais e quais mensagens se impregnaram na memória enquanto outras, que faziam parte do mesmo cenário, desapareceram? Portanto, domar a memória para que ela se concentre nos pontos que são realmente importantes, mas isso só acontece se houver uma paixão pelo conhecimento e se for predominante em relação às outras. Por exemplo, nós podemos selecionar as imagens conforme as coisas sejam agradáveis ou desagradáveis. Ou conforme sejam temíveis – o sujeito tem medo de certa coisa e quando ela aparece ele não consegue a esquecer. Se o sujeito tem medo de gato e vê um gato, ele não vai esquecer desse gato certamente. Mas o gato era o personagem determinante da situação? Ou foi apenas, por um hábito subjetivo, que ele o guardou na memória e esqueceu-se do resto? O quê que nossa memória guarda e qual é o critério de seleção que usamos?
qualquer jogo que se desenvolva para esse tipo de aptidão seria o máximo da inteligência. Esse praticante seria maior do que Michelangelo, Shakespeare, Isaac Newton, etc., e de fato não é assim. Sendo assim, a primeira coisa a fazer é se assegurar de que aquilo que você está pensando existe. De que aquilo faz parte da experiência real. E para isso, é preciso moldar a memória de tal modo que ela deseje refletir o que de fato aconteceu. Em primeiro lugar, aquilo que aconteceu com você mesmo. Todos nós temos recordações de fatos que sucederam a nós. Alguma vez você já parou para pensar, fechar os olhos e lembrar: “Será que foi assim mesmo?”. Ninguém faz isso. Ninguém é ensinado a fazer isso. Por exemplo: “Vou contar aminha vida”. Eu pessoalmente não poderia contar a minha vida, porque me aconteceu tanta coisa. Eu vivi dez vidas. Mas alguma coisa eu lembro. E frequentemente eu faço isso – “Como foi realmente aquilo?”. Vejam, isso é muito difícil, pois a memória é temporária; ela não guarda tudo eternamente. E frequentemente nós nos lembramos de algo, mas nós não temos a imagem visual daquilo; só nos sobra o sentimento que tivemos. Por exemplo, se você teve medo de alguma coisa: talvez tenha sumido a imagem da coisa temida e tenha sobrado somente o medo – então, aí você pode inventar um análogo. Você não vai estar mentindo se fizer isso; é uma imprecisão controlada. Mas, eu pergunto, algum dia algum professor tentou desenvolver em você essa memória? Eles não ligam para isso. Entretanto tudo está baseado nisso; toda a operação da inteligência humana está baseada nisso. Primeiro, começar a prezar a sua memória. Houve uma época em que as pessoas faziam uma campanha contra a decoreba. Diziam que isso não podia, que era preciso ensinar o espírito crítico, o julgamento crítico, ao invés de ensinar a ficar decorando as coisas. Vocês sabem por que os chineses são os melhores alunos do mundo? Porque para aprender a escrever em chinês é preciso de cara saber cinco mil caracteres; ter todos eles na memória – é por isso que eles são inteligentes. A memória é a coisa mais importante para o ser humano, o raciocínio não é tanto e sobretudo quanto ao que eles chamam de pensamento crítico, isto é, criticar alguma coisa. A gente não pode esquecer aquilo que dizia John Stuart Mill: “A crítica é a função mais baixa da inteligência”. Criticar é simplesmente dizer “não” aonde alguém disse “sim”, criticar é apenas um discordar. A regra número um é aperfeiçoar a memória. Isso não quer dizer desenvolver uma grande memória; não estou falando para vocês aprenderem alguma técnica mnemônica, existem muitas e elas funcionam. Há, por exemplo, um sujeito chamado Dominic O’Brien, capaz de entrar numa sala com duzentas pessoas, ser apresentado a elas e em seguida repetir o nome de cada uma. Esse sujeito ganhou oito vezes o campeonato mundial de memória – mas não é disso que estou falando. Estou falando da memória real, que o sujeito tem da sua vida real e das suas experiências reais – isso é outra técnica completamente diferente – que é aquilo que chamamos de anamnese. Anamnese é vencer o esquecimento e tentar obter uma descrição narrativa mais real daquilo que aconteceu. Agora, imaginem o que acontece quando um sujeito lê alguma coisa: instantaneamente aquilo cria uma imagem na mente dele e ele começa a raciocinar a partir dali. Ele não está lidando com elementos da memória pessoal, mas com elementos ficcionais, que lhe foram dados por outra pessoa e ele está tomando aquilo como premissa. O que fazer, então, quando se trata não do acontecimento que nós presenciamos, mas de algo que alguém nos disse, ou nós lemos no jornal, ou que vimos no Jornal Nacional? A primeira coisa é tentar imagina aquilo. Ao tentar imaginar o sujeito, imediatamente, já vê se aquilo é possível ou impossível. Por exemplo, você ouve a narrativa de um crime – você está lidando com a memória alheia, são coisas que você não presenciou. Como é que você vai dar àquilo uma substância de realidade para, em seguida, poder raciocinar sobre aquilo? Lembrando Aristóteles: “Nós não raciocinamos sobre percepções sensíveis, mas só sobre elementos guardados e conservados na memória”. Então, se elemento de memória vem para você pronto de fora, é claro que tudo o que você for pensar em seguida já estrará pré-determinado no conteúdo da memória. O sujeito te contou que aconteceu isso assim e
assim e você começa a raciocinar a partir dali, porque você não viu aquilo, não foi testemunha ocular; você só tem esse pedaço de memória que foi enxertado desde fora. Então, a primeira coisa é você tentar contar para você mesmo esses acontecimentos com realismo, ou seja, imaginar. No instante em que você faz isso, está personalizando aqueles elementos de memória
Se alguém perguntar assim: uma conta de dois mais dois tem quantos resultados certos? Resposta: um. E quantos resultados errados? Infinitos. Portanto, se o sujeito fosse testar um por um, ele não iria acabar nunca. Isso quer dizer que a dúvida sobre todos os nossos conhecimentos é praticamente inevitável. A dúvida é precisamente um estado no qual não se consegue apoiar numa ideia ou na outra: o sujeito se apoia em uma, ela cai; ele se apoia na outra, ela cai também. Isso pode acontecer milhões de vezes na vida. Por que ter medo disso? Um truque que eu sempre uso para isso é o seguinte: “E se eu não chegar a nenhuma conclusão sobre isso, o que irá mudar na ordem das coisas?”. Nada. O mundo por acaso está esperando que eu resolva o problema para ele? “Se eu não resolver isto aqui, o mundo vai acabar?” Não irá acontecer absolutamente nada. Apenas vou ter de adiar o problema para o dia seguinte. Essa, para mim, é uma ideia que me tranquiliza e que eu sempre sugiro para os alunos. Pensem assim: “Do que é que depende eu ter uma certeza sobre isto?”. Nada depende. É uma coisa que está apenas na minha cabeça. A tolerância para com o estado de dúvida requer um equilíbrio emocional anterior. É quase como um equilíbrio físico. Eu lembro, por exemplo, de quando eu pratiquei o Tai Chi – pratiquei por muito tempo. Eu desenvolvi tal equilíbrio físico que eu andava de ônibus sem me segurar no balaústre – agora não tenho mais isso; um carrapato me picou e eu perdi isso. Isso me ajudou muito. Ter equilíbrio físico permite uma liberdade de pensamento enorme: pensar uma coisa, depois pensar a contrária, pensar mil hipóteses sem chegar à conclusão nenhuma, adiar a conclusão quantas vezes for preciso para poder obter uma resposta mais firme. Isso não é ensinado em parte alguma. Não há um sistema de ensino que se dedique a isso. Se vocês se perguntarem: “O que se deve ensinar para uma criança?”. Vocês já viram quantas propostas de programas pedagógicos existem no mundo? São milhares. E todos eles são repletos de conhecimentos que teoricamente a criança precisaria ter. Na verdade, ela não vai precisar de nenhum deles. Por quê? A criança não vai aprender o que está no programa. Ela só vai aprender aquilo que ela quiser aprender. Ela vai fazer a sua própria seleção, querendo ou não. Uns vão preferir uma coisa, outros vão preferir outra e assim por diante. O começo da educação humana é cem por cento emocional – emocional e físico, só. Não precisa desenvolver mais habilidade nenhuma. Não precisa aprender nada. Quando uma criança quer aprender uma coisa: ninguém segura; ela aprende. O meu filho Gugu, quando tinha onze anos, apareceu com um livro de física da universidade: “Pai, eu quero ler esse livro” – “Mas está escrito em inglês” – “Não tem importância, eu vou aprender inglês”. Ele aprendeu inglês e seis meses depois ele estava lendo o livro. Era um livro universitário, mas ele meteu na cabeça que iria ler aquilo e leu. Eu não consigo ler aquele livro, quer dizer, um livro de física que é muito superior ao meu, que parou na escola secundária – se bem que eu tive uma boa educação nisso aí. E, no entanto, estava lá o garoto de onze anos lendo o livro. Qualquer habilidade que uma criança queira desenvolver, se não houver impedimento, ela vai desenvolver. Portanto, não é preciso estimulá-la a estudar – e nem deve fazer isso. Apenas deixe o neguinho seguir o caminho que ele quer e o ajude e reforce naquilo que ele quer. Daí o sucesso do John Taylor Gatto, ele só faz isso: ele ensina tudo a partir do que a criança quer aprender. Se o sujeito não fez a pergunta, o que ele pode fazer com a resposta? Para que serve a resposta? Ele vai guardar aquilo na memória? Por quanto tempo? Ele vai guardar até a data do exame, depois ele esquece. Quer dizer, em geral, os sistemas de ensino são imbecilizantes – praticamente todos eles. O erro é sempre o mesmo: desconfiar da vontade de aprender que a criança tem; achar que a criança é um bicho preguiçoso, que ela não vai buscar o conhecimento e que os pais precisarão inculcar isso nelas, o inculcar nunca funciona – isso não existe; não é verdade. Agora, o efeito que isso tem pelo resto da vida do sujeito é uma coisa absolutamente devastadora. Eu posso dizer isso a vocês porque eu tive a sorte de – esses dias mesmo eu estava contanto isso para o Luciano Pires – não ser educado; ninguém me educou. Eu, aos dez anos de idade, estava solto no
mundo para fazer o que eu bem entendesse. Quer dizer, tudo o que eu fiz, eu posso dizer como o Jânio Quadros: “Fi-lo porque qui-lo” – isso aí foi o que me deu uma flexibilidade enorme. É claro que durante vinte anos eu vivi em estado de dúvida – mas qual é o problema de viver em estado de dúvida? O filosofo Alain dizia: “O sujeito só consegue dormir porque ele está persuadido de que todos os problemas podem ficar para amanhã” – isso é uma coisa enormemente verdadeira, quer dizer, se a resolução do problema pode ser adiada, então significa que não é tão grave assim. Esta calma, essa paciência, a tolerância para com o estado de dúvida, são absolutamente necessários. No meio de tudo isso existe essas sucessivas transições, vamos dizer, da experiência para a memória, da memória para um discurso narrativo ou imaginativo, do narrativo ou imaginativo para o senso da verossimilhança – desde que o senso da verossimilhança seja próprio e não aprendido dos outros; porque uma coisa é parecer verossímil para você, outra coisa é ser verossímil para todo o mundo. Se o sujeito espera do meio social uma confirmação do que ele está pensando, ele já emburreceu na mesma hora. Tem aquele velho ditado: “Numa fileira de burros, a velocidade do conjunto é determinada pela velocidade do mais lento” – não é assim? Então, tudo o que um sujeito quiser aprender junto com os outros, ele irá aprender certamente num ritmo mais lento. Por exemplo: se eu estou dando uma aula, é possível que um aluno entenda o que eu digo e os outros não? É sempre possível. Agora, é possível que o conjunto entenda sem que nenhum entenda em particular? É isso. Confiar na autoridade do coletivo já é castrar a inteligência na mesma hora. Esta é outra regra: saber é saber algo que os outros não sabem. Se vocês não têm essa firme disposição de: “Eu quero conhecer as coisas, eu quero conhecer a verdade sobre isto, sobre aquilo e eu quero conhecê-la pessoalmente e não faço questão de que todo mundo diga que eu tenho razão”. Para mim aconteceu este negócio miraculoso de as pessoas saírem às ruas com um cartaz escrito “Olavo tem razão”. Mas isso aconteceu depois de setenta anos de eu não ter razão nenhuma perante mim mesmo. Então, foi aceitando não ter nenhuma confirmação do meio que eu acabei obtendo a maior confirmação do século – isso nunca aconteceu na história humana; de um escritor ser confirmado pela população; em certos pontos, é claro, apenas em certas coisas que eu disse, não todas. É claro que isso é muito reconfortante. Mas e se eles dissessem que eu não tenho razão? E se ninguém concordasse comigo? Bom, não deixaria de ser verdade do mesmo modo. Então, só quando se obteve a verdade personalizadamente, sem precisar de confirmação alguma, é que se tem a segurança para dizer aquilo e, mais dia, menos dia, o pessoal acaba concordando – até porque não há outro jeito. Todos esses fatores que eu estou mostrando para vocês são desprezados pelo sistema de educação, pela mídia, pelas autoridades etc. É como dizer: “Tudo conspira contra a inteligência humana”. Por exemplo, se a pessoa entrou num desses grupos de encontro, tipo Kurt Lewin, onde ela é sutilmente levada a aprovar certas ideias ou a adotar certas condutas: tudo está no sutilmente. Pois, se houve uma indução sutil, ela não sabe o que foi que determinou a sua adesão ou não – ela não pode saber, pois não pode dizer se foi por influência de fulano; a influência passa por ela sem que ela perceba. Isso sempre cria um “buraco na memória”, a pessoa não sabe como aconteceu a transição entre o antes e o depois. Significa o seguinte: ela já não está entendendo o que se passa com ela mesma. Qualquer desses grupos, dessas atividades de PNL, grupos de encontros, grupos de terapia, etc., tudo isso sempre será ruim, porque sempre haverá a indução sutil e a indução sutil tem que passar despercebida. [1:00] O programador neurolinguístico não vai chegar para a pessoa e dizer: “Olha, eu vou te convencer de tal e qual coisa assim e assim, por isso e por isso...” – não. Ele vai fazer com que ela vá aderindo àquilo sem perceber. Uma das maneiras mais lindas para modificar o comportamento é sugerir certas atividades que parecem lúdicas ou teatrais. Eu me lembro daquele caso em que o Gerald Thomas, um professor universitário da Suécia, achou lindo, ele disse: “Neste fim de semana vocês vão fazer um experimento de sexo oral homossexual – era uma classe só de homens – e, assim que o fizer, vocês vão engolir. Na segunda-feira vocês façam um relatório científico da experiência”. Mais de 80% achou aquilo
em geral. Um certo número de pessoas pode se livrar disso e desenvolver a sua inteligência até o último limite sem que isso faça mal a ninguém. Mas, isso que eu estou ensinando a vocês não se pode adotar em todas as universidades – não se pode e nunca será adotado. O coeficiente de imbecilização terá de continuar de algum modo. Agora, dentro dos próprios movimentos revolucionários aconteceu que, se as suas primeiras gerações foram constituídas de intelectuais, que ficaram marginalizados na sociedade, a própria continuidade desse movimento exige que eles deixem de ser compostos de gênios forçados e comecem a ser compostos de imbecis também. O que é um movimento revolucionário cheio de gênios? É um movimento revolucionário cheio de dissidências – também não é possível administrar isso. Então, entram para o partido nazista, no partido fascista, tanto faz, eles podem entrar ali porque eles são gênios – gênios revoltados e, de fato, os fundadores eram todos assim; não se pode negar que Lênin fosse assim, ou que Mussolini fosse também. Mas e os seguintes? Os seguintes terão de obedecer ao chefe, ao partido, ao Führer etc. Sempre será preciso uma massa de idiotas. Esse é um problema que eu também nunca vi ser estudado em parte alguma: a função pública da imbecilidade e a imbecilidade programada. Existem provas da imbecilidade programada, o livro da Charlotte Iserbyt que eu mencionei ontem, The Deliberate Dumbing Down of America : ela pega todos os decretos que moldaram o sistema educacional americano e mostra que todos eles se destinavam a baixar o nível de inteligência das pessoas. Isso é uma maldade? Bom, eu não sei se é uma maldade. Se for julgar individualmente é claro que é, pois está prejudicando as pessoas. Mas e do ponto de vista do equilíbrio social? Eu não vejo outra maneira. Por isso que quando me convidam para ser Ministro da Educação eu considero isso uma ofensa. Porque daí ou eu vou ter que criar uma multidão de gênios e criar uma crise permanente ou eu vou ter que criar idiotas também. Eu não quero fazer nem uma coisa, nem outra. É por isso que todo o meu esforço educacional é dirigido a certos indivíduos e não a uma massa. Quando me perguntam se tenho algum projeto para a educação brasileira: “Deus me livre!”. O próprio fato de ter de tratar a educação como um problema de Estado já é uma tragédia. Porque durante séculos, milênios, não foi assim. A educação era de um indivíduo, do professor, para um certo grupo de alunos. Sócrates teve quantos discípulos? Vinte, trinta. Só isso. O resto da população nem entendia o que ele estava falando. Agora, se nomeasse Sócrates como ministro da educação: seria uma tragédia. Mas, a partir da hora em que o Estado assume a obrigação de educar as pessoas e pior, assume a obrigação de educar todo mundo, de democratizar a educação, ele criou um problema que terá de solucionar de algum modo e a solução é sempre a imbecilização em massa. A própria transferência da atividade da educação, do desenvolvimento cognitivo, para o adestramento comportamental é um reflexo disso que eu estou falando. Isto é, essa massa toda de moleques que está aí na escola: o que vamos fazer com eles? “Bom, nós temos de inventar um jeito de eles se comportarem de uma maneira que a gente os aguente.” Uma educação estatal, pública, uma educação democratizada, só pode ter esse objetivo. Nunca pode ter o objetivo de transformar todo mundo em gênio. Houve alguns lugares, por exemplo, a União Soviética, onde havia um ensino técnico-científico de altíssimo nível e por isso mesmo as ruas estavam cheias de varredores com diplomas de PhD em engenharia, em física etc. – isso era endêmico lá. Até que alguém percebeu: “Opa! Nós temos que parar com isso. Vamos copiar o Estados Unidos e dar uma educação imbecilizante também”. Eu não sei a solução desse problema. Na verdade, ninguém sabe. Eu acho que ninguém colocou esse problema. Vamos esquecer agora a sociedade, o Estado, a nação e vamos pensar em nós. “Nós todos fomos vítimas deste negócio. Nós todos fomos imbecilizados de alguma maneira e nós não queremos mais isso. Eles podem criar tantos idiotas quanto queiram, mas nós não queremos estar nesse grupo.” Nós também temos que perguntar: quanto intelectuais um país precisa? Intelectuais do tipo formadores de
opinião, de alto nível. É um número relativamente pequeno. No Brasil, se houvesse cem, seria mais do que suficiente. Bom, nós queremos estar entre esses cem. Então, o nosso objetivo é o seguinte: nós vamos nos tornar pessoas capazes de analisar situações, compreendê-las, explicá-las na medida do possível e sermos úteis, até certo ponto. Eu acho que só faz sentido o sujeito estudar comigo se essa é a ideia dele, quer dizer, se ele quer fazer um trabalho diferenciado, superior à média e um trabalho que esteja centrado não no desenvolvimento da sua carreira profissional, mas na solução de problemas objetivos. Ainda que isso não resulte em nenhum benefício para a sua carreira profissional. Ou seja, das duas tecnologias mencionadas pelo Zinovyev – tecnologia de fazer alguma coisa e tecnologia de subir na vida – temos de fazer de modo que a primeira predomine, ainda que com sacrifício próprio. Essa é a única esperança. A duplicidade de critérios já é um fator imbecilizante, porque não será possível pensar certas coisas que irão prejudicar a carreira, o sujeito está proibido de pensar isso. Em toda universidade existe uma corrente de pensamento que predomina ali dentro. Aqui, no Estados Unidos e na Inglaterra, é a tal da filosofia analítica – que aprenderam com Bertrand Russell, Wittgenstein entre outros – que é uma filosofia convencida de que a única coisa que existe para o filósofo fazer é analisar a linguagem desde o ponto de vista lógico. Bom, por mim, eu já rejeito essa proposta de primeira. Como é que eu posso analisar a linguagem em si mesma? A linguagem sempre faz referência a um objeto e essa referência constitui quase tudo nela. Se eu isolo a linguagem como sendo um domínio independente, então eu já estou analisando uma coisa que nem existe. Por mais que eu me aprimore nisso aí, estarei sempre fora da realidade. Mas o fato é que essa corrente domina as universidades americanas. Se o sujeito já não se enquadra nisso, então já não tem possibilidade de carreira. E se tudo nele se rebela contra isso, “Isso não funciona, isso é perda de tempo, isso é imbecilização também”, bom, ele pode dizer isso dentro de uma universidade desde que ele tenha uma personalidade monstruosamente forte capaz de intimidar e vencer os outros. Só que daí é preciso ter dupla genialidade: precisa da genialidade intelectual e precisa de uma força de vontade de ferro. Quer dizer, tem de ser uma mistura de Aristóteles com Napoleão Bonaparte. Onde você vai achar um cara desses? Não há. Bom, talvez tenha havido – dizem que o Eugen Rosenstock foi isso, que ele venceu a burrice da universidade e impunha a sua própria regra; bom, pode acontecer, mas é uma coisa muito rara. O primeiro requisito de tudo isso é nós levarmos o nosso desejo de conhecimento a sério; sempre lembrando que conhecimento é descobrir alguma coisa que os outros não sabem. O que não quer dizer que tudo o que vamos descobrir é novidade absoluta, não; mas é novidade para o nosso meio. Já me aconteceu de eu descobrir coisas que depois eu mesmo vi que já existia havia dez séculos. A teoria do conhecimento por presença, quando eu descobri aquilo eu fiquei “sou o novo Aristóteles, sou o gostosão etc.” e depois eu vi que um filósofo persa havia descoberto a mesma coisa no século XI. Bom, mas no meio em que eu estava aquilo era novidade absoluta. Naturalmente quando a gente descobre essas coisas acaba tendo dificuldade até de explicar, pois não há uma linguagem comum, quer dizer, sempre um conhecimento novo exige uma nova forma de linguagem altamente personalizada na qual vai expressar-se aquilo. Na busca pelo conhecimento, a personalização é tudo. Primeiro vocês vão ter de moldar a memória para que ela reflita corretamente a percepção. Isso se divide em dois: a percepção direta daquilo que se observou e existe a memória secundária que são elementos que absorvidos da cultura em torno e que primeiro é preciso ser trabalhada numa espécie de narrativa ficcional para que depois essa possa examinada. Aí surge também o problema das fontes, quer dizer, de onde recebemos este material cultural? Quais são as fontes nas quais confiamos? Aí já há um erro inicial, pois, o interesse deve estar na veracidade, e não na confiabilidade das fontes. Vocês querem a confiabilidade das fontes, por quê? Porque isso os tranquiliza. Quer dizer que se aparecem cem pessoas inteligentes mentindo para você e um idiota dizendo a verdade, você vai confiar nas cem pessoas? Isto aqui é básico: fonte confiável não existe,
fazer é escrever uma coisa que dê a mesma impressão. Não se tem muito controle disso. Não se trata, portanto, de descrever a experiência meticulosamente do ponto de vista material, não é isso. Se trata de expressar-se de tal modo que, analogicamente, gere uma sensação, um sentimento análogo no ouvinte e isso, evidentemente, é uma habilidade literária. Sem isso, o resto da sua atividade cognitiva é só formalismo e convencionalismo. É uma linguagem literária concreta o que nos arraiga na realidade – só ela faz isso – , nenhuma outra atividade humana pode fazer isso. Existe analogia entre isso que eu estou dizendo e outras artes. Por exemplo, um pintor não precisa reproduzir uma cena com exatidão científica, porque o que ele está querendo transmitir é o sentido da cena. As obras de Poussin retratam várias cenas de batalhas horríveis, pessoas cortando as cabeças umas das outras etc., essa é a emoção que ele quer transmitir. Então, ele vai ter que articular as várias formas dos vários personagens para dar essa impressão. Por exemplo, ele vai juntar em um só quadro vários horrores que ele viu em diferentes momentos. Não se trata de uma reprodução literal, mas da reprodução adequada de um conjunto que vai passar ao observador o mesmo sentimento de horror que ele teve quando viu aquilo. Assim, se está dentro de uma comunicação controlável, não exata, mas controlável. O que permite que a gente faça isso é justamente o fato de que a linguagem corrente e, portanto, a linguagem literária também, não é constituída de correspondências biunívocas, mas de uma coleção de significados possíveis que vão ressoar de maneiras diferentes em pessoas diferentes. Esta flexibilidade, esta imprecisão, é justamente o que permite a fidelidade na reprodução e transmissão da experiência. Portanto, sem a formação literária isso simplesmente não é possível. Entenderam? Aluno: Esse pintor que está produzindo esse quadro, ele sabe, ele tem a consciência de que ele quer passar... Olavo: Claro! Se não como é que ele vai passar? Aluno: Não sei, às vezes parece que existe uma certa intuição na hora de fazer a obra, uma certa expressão pura sem uma intenção clara para ele, prévia... Olavo: Mas se ele não sabe o que ele vai pintar, como é que ele vai pintar? Isso é impossível. Eu vou entrar nesse assunto depois. Aluno: Eu já vi entrevista com alguns artistas que dizem não saber qual vai ser o resultado final da obra que estão produzindo, mas que vão intuitivamente produzindo alguma expressão de alguma coisa que estão sentindo, mas eles só conseguem, às vezes, entender posteriormente o que fizeram. Olavo: Isso pode acontecer evidentemente, quer dizer, o artista não tem um plano integral do efeito, mas ele precisa saber claramente qual emoção ele tem e qual está expressando. Se não, não há como expressar. Pode acontecer o acidente de o sujeito querer expressar uma coisa e acabar expressando outra, mas isso aí será um quadro falhado. Eu já vi, por exemplo, muitos filmes em que o diretor queria fazer a gente chorar e eu morria ri. Aluno: O senhor mencionou hoje que uma sociedade talvez não tenha mercado para uma quantidade enorme de gênios. Mas na aula de ontem o senhor comentou que Leibniz passou anos e anos como bibliotecário. A gente vive numa sociedade em que cada vez as pessoas estão mais longe... quer dizer, gênios também podem varrer rua, gênios também podem plantar. Há um pessoal que está convergindo, é o que o pessoal chama de economia da abundância. Há várias pessoas que acreditam que daqui alguns anos a maioria de nós não terá nem o que fazer. Fisicamente, hoje, no Brasil, a maioria das pessoas adultas não tem atividade produtiva nenhuma. Esta ideia poderia ser aplicada no século XX, quando mandavam o cara para a escola para ele se idiotizar. Mas, hoje, se houvesse mercado para tantos braçais, seria uma contradição haver tanta universidade. A melhor idade dele de serviço braçal, que é quando é jovem, na Europa, os jovens são eternos estudantes e, quando saem de lá, já perderam boa parte do potencial de fazer alguma coisa útil.
Olavo: Bom, vamos supor que a inteligência artificial consiga substituir toda a mão-de-obra humana por robôs, então ninguém terá nada para fazer. Você acha que essa multidão de desocupados será treinada para virar gênio? Aluno: Talvez. Olavo: Veja, essa é uma situação pior do que a anterior. Na anterior, não há função na sociedade para tantos gênios. Muito bem, agora você tem uma multidão de gênios que, por definição, não tem função alguma. Aluno: Mas eles podem ser gênios sem ter função. Assim como Leibniz era gênio e bibliotecário. A gente pode ter gênios varrendo a rua. Olavo: Não, eles não vão virar gênios, eles vão virar drogados. É isso o que realmente acontece. Por quê? Porque você não tem função, você não serve para nada, os robôs tomaram o seu lugar – eles até mandam em você – e você é um gênio que tem quociente de inteligência de 210. Aluno: Mas os robôs vão passar a realizar a função física, e você vai passar a fazer a função intelectual, como hoje tem pessoas que tem canais no YouTube... Olavo: E existe alguma viabilidade de transformar toda essa produção intelectual em alguma coisa de [útil]? Aluno: Alguma parte deles vai ser artista, outra vai se dedicar à vida espiritual, nem todo mundo precisará ser intelectual. Olavo: Bom, mas é a mesma coisa. Eles estão nas atividades superiores. Aluno: O autor do livro Sapiens sugere que terá de ser colocado para a humanidade a participação em jogos, ou seja, jogos precisarão ser criados para entreter, digamos assim, ocupar as pessoas. Aluno: Só ressalvando que esse cara é um ativista cultural, um gayzista, todas as profissões que ele teve na vida foi em decorrência do ativismo gayzista... Aluna: Você está falando do Sapiens? Eu parei de ler logo na primeira página. Eu queria ver qual é a desse cara. Quando ele começou a falar, logo na primeira página, [1:30] que vai ser possível a gente regredir e conviver com espécies que não são humanas, eu falei: “Vou fechar esse livro, esse cara é louco”. Aluno: Mas eu não estou levando em consideração se ele está certo ou não, estou só seguindo a linha de raciocínio... Olavo: Imaginem que coisa horrível: você é um gênio sem função social nenhuma e tudo o que você faz não serve para absolutamente nada. Aluno: A função social e econômica não pode convergir, professor. Como as universidades, antigamente, não eram um negócio. Pode haver instituições, no futuro, onde a pessoa se desenvolva intelectualmente, mas que isso não signifique necessariamente a produção de coisas físicas... [inaudível]. Antigamente a universidade não era uma coisa comercial, o senhor falou isso na aula passada, não foi? Olavo: Sim, mas o sujeito não terá função nenhuma, porque a economia já estará toda organizada para isso. Aluno: Mas o desenvolvimento de altas ideias não tem relação necessária com a economia. Olavo: Mas a humanidade pode suportar tantas ideias maravilhosas? Não é possível isso.
grau de educação que faça com que passem a ter papéis sociais que não sejam necessariamente econômicos; desenvolvendo material, como está acontecendo na internet: pessoas que nunca seriam ouvidas na academia e em lugar algum, se não houvesse internet. Hoje em dia há milhões de pessoas que seguem... Aluno: Acho que o que você está perguntando – talvez seja até a uma pergunta para o professor – é a possibilidade de nós termos, em algum momento, uma nova realidade desconectada com a realidade física. Seria tipo aquilo que foi colocado no filme Matrix, de estaríamos vivendo em uma realidade, não mental, pois não seria orgânico, seria, digamos assim, uma simulação onde existiria uma nova realidade. Olavo: Bom, esse tipo de sociedade já está sendo construída hoje. O próprio diálogo na internet: em geral as pessoas não fazem a menor ideia do que estão falando, mas elas se comunicam umas com as outras, e essa comunicação passa a constituir uma segunda realidade para elas. Aluno: Mas o senhor acredita que existe a possibilidade de em algum momento termos algum nível de consciência que não seja ligado a um corpo físico, à mente, a algo orgânico? Olavo: Não, espera aí. Em primeiro lugar, todo mundo tem isso. Mas isso não quer dizer que esta segunda camada de realidade seja aquela que está na cultura ambiente. Eu vejo, por exemplo, que eu mesmo entrei em certas dimensões que são superiores ao corpo físico, evidentemente, mas elas não têm vigência social. Por exemplo, você vai entrar nas experiências místicas: “Ah, vamos criar então uma multidão onde todos terão experiências místicas, todo mundo conversa com Jesus Cristo”. O que o governo vai fazer com essas pessoas? Vai drogar todas. Aluno: Seria uma coisa diferente. Seria, por exemplo, o senhor poder ser um software , digamos assim; estou falando de transferência de consciência: o Olavo agora é um software , o Leandro é um software , todos nós aqui somos, não temos mais um corpo, não temos mais as características que temos hoje. A questão é: se isso seria possível ou não, se isso é uma expressão de um fetiche... Olavo: Bom, isso é possível, mas as pessoas vão continuar tendo corpos. Aluno: Em tese, não. Aluno: O Raymond Kurzweil defende que não. Ele diz que esse é o passo definitivo para uma nova abordagem da ciência... Olavo: Não, isso é inteiramente absurdo. É uma enganação diabólica strictu sensu. Aluno: ...do Google, exatamente essa parte que se dedica à perversidade da pessoa viver para sempre ser separada da empresa principal. Os caras estão investindo bilhões nesse tipo de... Olavo: Escuta, mas “eternidade da consciência” e o sujeito continua fisicamente vivo? Aluno: Você pode ter o Olavo virtual e o Olavo real; como tem bots hoje em dia, só que muito mais... Olavo: Bom, o Olavo virtual continua existindo depois de eu morrer, certo? E ele é incorporado por outras pessoas. Na verdade, isso já acontece... Aluno: ...o seu bisneto poderia conversar com o senhor. Olavo: Isso já acontece. É uma coisa que já existe. Mas não afeta em nada o fato de que a pessoa vai morrer e de que ela não vai participar ativamente da conversa. Aluno: Será uma simulação do senhor. Aluno: É um fetiche, então.
Olavo: Evidente. Por exemplo, a gente tem uma certa comunicação com Dostoievski. Mas é uma comunicação onde só eu falo. Eu recebo o que ele já disse e ele não pode interferir de novo na conversa. Isso aí já existe. Mas isso sempre vai esbarrar na mortalidade física. E o que seria um software sem nenhum suporte físico e material? Aqui tem um software maravilhoso, mas ele não está em nenhum computador, ele não depende de eletricidade... Ou seja, ninguém tem acesso a essa porcaria. Sem o suporte físico nada existe. Essa ideia, vamos dizer, da “incorporalidade”, é uma doutrina diabólica mesmo. Tudo o que existe tem uma corporalidade. Aí precisamos lembrar do Gurdjieff: perguntaram para ele: “Mas Deus é material?” – e ele respondeu: “Se Deus não fosse material, nada seria material”. Então, algum tipo de presença material Deus tem o tempo todo, se não houver a presença material, não há nada, nada aconteceu. Aluna: Você assistiu o primeiro episódio da nova temporada do Black Mirror? É sobre isso aí... Aluno: A gente sem cai na discussão né... A aparência fenomênica ou a coisa em si. Olavo: Sim. Isso é o kantismo elevado ao enésimo grau. Aluno: Do mesmo jeito que o nosso software está em cada célula do nosso corpo, no DNA, o software , o programa está nos “zeros” e nos “uns” [código binário] magnéticos do disco. Fisicamente ele está em algum lugar. Mesmo que seja no computador... Olavo: Sim, mas isso não é uma presença humana real, isso é uma imitação. Você terá uma belíssima convivência entre simulacros. Aluna: Até o DNA não se expressa maquinalmente dessa maneira. Ele como que escolhe se ele se expressa o não. Ele pode ter, por exemplo, uma genética, uma expressão imperfeita e não se expressar de jeito nenhum. Então, não há essa equivalência, isso é muito mais uma, como o professor fala...
Bom, vamos então, agora, à sessão de perguntas. Houve uma sessão informal aí de perguntas, um tanto anárquica, mas então agora vamos colocar em ordem. Aluno: Professor, o ato de escrever não seria de uma certa forma um processo de organização de memória... Olavo: Claro que é. Mas você não precisa escrever. Uma narrativa oral também serve. Desde que ela reflita a sua experiência efetiva e que você não tente reproduzi-la com precisão – não é esse o problema – , mas com uma articulação de sentido que corresponda ao que aconteceu realmente. Aluno: E existe uma maneira, uma técnica de escrita, especificamente falando, que seja mais eficiente para produzir essa organização de ideias? Olavo: Existem inúmeras, mas todas elas são baseadas na literatura de ficção. Inclusive a narrativa histórica, as técnicas de narrativa histórica, são todas copiadas da literatura de ficção. Simplesmente não há outras. São camaradas que passaram a vida contando histórias. Eles sabem mil jeitos de contar estórias – temos de aprender com eles, não tem jeito. Na quase totalidade dos casos, a busca da precisão é o contrário da busca da realidade, porque a precisão é apenas um ideal formal que se tem na cabeça.