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A Brasiliana Dicotomia Urbano-Rural: Explicando a Inércia da Divisão de Espaços no Brasil, Notas de estudo de Economia

Este artigo aborda a dicotomia urbano-rural no brasil, procurando explicações para a inércia desta forma de pensar o espaço e apresentando os principais expedientes alternativos adotados em outros países. O texto também chama a atenção para algumas implicações teórico-históricas do problema e analisa a importância relativa do brasil rural.

Tipologia: Notas de estudo

Antes de 2010

Compartilhado em 11/05/2009

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A DIMENSÃO RURAL DO BRASIL
Estudos Sociedade e Agricultura, n. 22, Abril 2004, pp. xx
1. Introdução
No debate científico internacional sobre os possíveis destinos da ruralidade no mundo
contemporâneo há muito tempo foi desfeito o equívoco de se identificar a agropecuária
com o rural, como se alguma vez tivesse havido coincidência entre tal grupo de
atividades econômicas e o espaço (físico e social) no qual elas necessariamente mais
ocorrem. Além disso, a dinamização de muitas áreas rurais por atividades que pouco
ou nada têm a ver com a agropecuária faz com que se discuta intensamente as
características e tendências do que tem sido chamado de “nova economia rural”. Nos
países mais desenvolvidos chega a ser comum que tal ruralidade seja caracterizada
como “pós-industrial”, “pós-moderna” ou “pós-fordista”.
A imensidão territorial do Brasil e a profunda desigualdade de seu desenvolvimento
fazem com que abrigue situações rurais extremadas. Se por um lado foi possível
preservar nas vastas florestas amazônicas formas de pressão antrópica que mantêm
um metabolismo pré-neolítico com a natureza, por outro, várias manifestações de uma
economia rural das mais avançadas já ocorrem em algumas áreas de clima temperado
do domínio da mata atlântica e, sobretudo, dos campos e florestas meridionais. Não
há motivo, portanto, para que o caso brasileiro seja excluído desse crucial debate
sobre os possíveis destinos da ruralidade.
Todavia, há pelo menos duas questões que o precedem e lhe são básicas: o que é
ruralidade, e como ela deve ser medida. Duas questões que já são suficientemente
complicadas para que este artigo a elas se restrinja. Assim, antes de propor uma
maneira de avaliar a importância relativa do Brasil rural (seção 3), e chamar a atenção
para algumas implicações teórico-históricas do problema (seção 4), este artigo aborda
a dicotomia urbano-rural, procurando explicações para a surpreendente inércia dessa
maneira de pensar o espaço, e apresentando os principais expedientes alternativos
que vêm sendo adotados em outros países (seção 2).
1. 2. Tentativas de superar a inércia da dicotomia urbano-rural
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Baixe A Brasiliana Dicotomia Urbano-Rural: Explicando a Inércia da Divisão de Espaços no Brasil e outras Notas de estudo em PDF para Economia, somente na Docsity!

A DIMENSÃO RURAL DO BRASIL

Estudos Sociedade e Agricultura , n. 22, Abril 2004, pp. xx

1. Introdução

No debate científico internacional sobre os possíveis destinos da ruralidade no mundo contemporâneo há muito tempo foi desfeito o equívoco de se identificar a agropecuária com o rural, como se alguma vez tivesse havido coincidência entre tal grupo de atividades econômicas e o espaço (físico e social) no qual elas necessariamente mais ocorrem. Além disso, a dinamização de muitas áreas rurais por atividades que pouco ou nada têm a ver com a agropecuária faz com que se discuta intensamente as características e tendências do que tem sido chamado de “nova economia rural”. Nos países mais desenvolvidos chega a ser comum que tal ruralidade seja caracterizada como “pós-industrial”, “pós-moderna” ou “pós-fordista”.

A imensidão territorial do Brasil e a profunda desigualdade de seu desenvolvimento fazem com que abrigue situações rurais extremadas. Se por um lado foi possível preservar nas vastas florestas amazônicas formas de pressão antrópica que mantêm um metabolismo pré-neolítico com a natureza, por outro, várias manifestações de uma economia rural das mais avançadas já ocorrem em algumas áreas de clima temperado do domínio da mata atlântica e, sobretudo, dos campos e florestas meridionais. Não há motivo, portanto, para que o caso brasileiro seja excluído desse crucial debate sobre os possíveis destinos da ruralidade.

Todavia, há pelo menos duas questões que o precedem e lhe são básicas: o que é ruralidade, e como ela deve ser medida. Duas questões que já são suficientemente complicadas para que este artigo a elas se restrinja. Assim, antes de propor uma maneira de avaliar a importância relativa do Brasil rural (seção 3), e chamar a atenção para algumas implicações teórico-históricas do problema (seção 4), este artigo aborda a dicotomia urbano-rural, procurando explicações para a surpreendente inércia dessa maneira de pensar o espaço, e apresentando os principais expedientes alternativos que vêm sendo adotados em outros países (seção 2).

1. 2. Tentativas de superar a inércia da dicotomia urbano-rural

A ascensão das cidades na Europa, entre os séculos X e XII, foi um ponto de mutação na história ocidental e, portanto, do mundo. Todavia, já nos subseqüentes séculos XIII e XIV, suas relações com o entorno passaram a ser radicalmente alteradas, rompendo-se, assim, as marcas da “dicotomia cultural urbano-versus-rural”. São palavras do historiador Carlo M. Cipolla (1976). Seu colega Georges Duby (1973) situa ainda mais precisamente nas duas últimas décadas do século XII o início do domínio da economia urbana naquele continente. Por isso, uma pergunta parece inevitável: qual seria a razão da sobrevivência de tal dicotomia nas estatísticas demográficas até o início do século XXI?

Mesmo que sua agonia já dure uns seis ou sete séculos, a dicotomia urbano-rural continua nas estatísticas porque alguns de seus significados permaneceram válidos até meados do século XX. Por exemplo, no que se refere à saúde. Quando a ONU publicou sua primeira análise sobre as características e tendências da urbanização - no Demographic Yearbook for 1952 - dois fatos marcantes pareciam confirmar que a dicotomia mantinha todo o seu sentido: tanto a fertilidade quanto a mortalidade infantil eram bem distintas entre as populações urbanas e rurais. Em 1940, a fertilidade rural ainda chegava a ser o dobro da urbana em países tão diferentes quanto Finlândia e Panamá. E a mortalidade das crianças rurais era superior em mais de 80% dos países que dispunham de estatísticas razoáveis. Cinqüenta anos depois, o Demographic Yearbook mostra que a fertilidade permanece sistematicamente inferior entre as populações urbanas, embora o mesmo já não ocorra com a mortalidade infantil (Champion & Hugo, 2003).

No Brasil, um dos indicadores que mais parecem confirmar a atualidade estatística da dicotomia é a razão de sexo. Nas regiões Nordeste, Sudeste e Sul, são poucos os casos em que ocorre predominância masculina entre populações urbanas. E em todas as regiões o número de homens é sistematicamente superior ao número de mulheres entre as populações rurais. O Atlas do Censo Demográfico de 2000, recentemente publicado pelo IBGE, traz em sua página 42 um gráfico que só pode ser visto como um poderoso exemplo das razões que justificam a inércia estatística da dicotomia urbano-rural.

Todavia, o fato de fenômenos como a fertilidade e a predominância masculina permanecerem sistematicamente superiores entre os rurais não pode ser razão suficiente para que se continue a pensar que esta seja a principal fronteira espacial entre categorias populacionais. Diferenças internas às populações urbanas (ou rurais)

Além disso, os condados “nonmetro” são agora subdivididos em duas categorias: as “micropolitan áreas”, centradas em núcleos urbanos com mais de 10 mil habitantes, e “noncore” para o restante dos condados.

Para propósitos analíticos, o Serviço de Economia Rural, vinculado ao Departamento de Agricultura (ERS/USDA), utiliza um híbrido que resulta de uma mescla das duas classificações normativas oficiais. Os últimos resultados dessa abordagem estão nas tabelas 1 e 2.

Tabela 1 Comparação dos padrões de residência, EUA, 2000.

Rural Urbano Total Milhões % Milhões % Milhões %

“Nonmetro” 29,0 49,2 20,2 9,0 49,2 17, “Metro” 30,1 50,8 202,2 91,0 232,3 82, Total 59,1 100,0 222,4 100,0 281,5 100, Fonte: Cálculos do ERS/USDA com dados do Censo de 2000.

Tabela 2 Participação dos residentes “metro” e “nonmetro” vivendo em áreas rurais e urbanas, EUA, 2000 (porcentagens).

Rural (%) Urbano (%) Total (%) “Nonmetro” 58,9 41,1 100, “Metro” 12,9 87,1 100, Total 21,0 79,0 100, Fonte: Cálculos do ERS/USDA com dados do Censo de 2000.

Em resumo, pode-se dizer que o caso dos Estados Unidos é bem ambíguo. Por um lado, a dicotomia urbano-rural foi substituída pelo Census Bureau por uma interessante tricotomia formada pelas categorias “áreas urbanizadas”, “clusters urbanos”, e “áreas rurais”. Por outro, o OMB preferiu uma nova dicotomia – “metro” versus “nonmetro”. E para efeitos analíticos, o ERS/USDA intensificou a visão

dicotômica ao propor uma mescla que faz desaparecer a tricotomia recentemente introduzida pelo Census Bureau.

Bem diferente foi a solução encontrada pela OCDE. Após minuciosa análise das estatísticas referentes a 50 mil comunidades das 2 mil microrregiões existentes nos 26 países membros, a equipe de seu Serviço de Desenvolvimento Territorial passou a distinguir dois níveis analíticos. Ao nível local, foram classificadas apenas como urbanas ou rurais as menores unidades administrativas, ou as menores unidades estatísticas. Por exemplo: kreise na Alemanha, municípios na Espanha, counties nos EUA, cantons na França, comuni na Itália, concelhos em Portugal, e districts no Reino Unido. Numa segunda etapa, de nível microrregional, agregações funcionais – como províncias, commuting zones , ou Local Authority Regions - foram classificadas como mais urbanas, mais rurais, ou intermediárias.

A OCDE considera rurais as localidades que tenham densidade populacional inferior a 150 hab/km2 (ou, no caso específico do Japão, 500 hab/km2). Conforme esta definição, cerca de um terço (35%) da população da OCDE vive em espaços rurais que cobrem mais de 90% de seu território. Claro, essas participações variam bastante conforme o país considerado. Os habitantes de comunidades rurais são menos de 10% em países como a Holanda e a Bélgica, e mais de 50% nos países escandinavos.

Todavia, como as opções e oportunidades abertas para essas localidades rurais dependem essencialmente do relacionamento que possam manter com centros urbanos, o que realmente importa é a abordagem microrregional. Assim, para os propósitos analíticos da OCDE, suas 2 mil microrregiões foram classificadas em três categorias, conforme a participação da população que vive em comunidades rurais. Em regiões consideradas predominantemente rurais essa participação é superior a 50%. Nas consideradas significativamente rurais ela fica entre 15% e 50%. E nas regiões predominantemente urbanas a população que vive em comunidades rurais deve estar abaixo de 15%.

Cerca de um quarto (28%) da população da OCDE vive em regiões predominantemente rurais, em geral bastante remotas, nas quais a maioria das pessoas pertence a pequenas povoações pulverizadas pelo território. No extremo oposto, cerca de 40% da população da OCDE está concentrada em menos de 3% do território, nas regiões predominantemente urbanas. O terço restante (32%) vive nas regiões da categoria intermediária, que são chamadas de significativamente ou

que vem sendo usada desde os anos 1950, seria rural a população dos 4. municípios que tinham menos de 20 mil habitantes em 2000, o que por si só já derrubaria o grau de urbanização do Brasil para 70%.

A grande vantagem desse critério é a simplicidade. Todavia, há municípios com menos de 20 mil habitantes que têm altas densidades demográficas, e uma parte deles pertence a regiões metropolitanas e outras aglomerações. Dois indicadores dos que melhor caracterizam o fenômeno urbano. Ou seja, para que a análise da configuração territorial possa de fato evitar a ilusão imposta pela norma legal, é preciso combinar o critério de tamanho populacional do município com pelo menos outros dois: sua densidade demográfica e sua localização. Não há habitantes mais urbanos do que os residentes nas 12 aglomerações metropolitanas, nas 37 demais aglomerações e nos outros 77 centros urbanos identificados pela pesquisa que juntou excelentes equipes do IPEA, do IBGE e da Unicamp (Nesur) para produzir a Série Caracterização e Tendências da Rede Urbana do Brasil (1999 e 2002). Nessa teia urbana, formada pelos 455 municípios dos três tipos de concentração, estavam 57% da população em 2000. Esse é o Brasil inequivocamente urbano.

O problema, então, é distinguir entre os restantes 5.052 municípios existentes em 2000 aqueles que não poderiam ser considerados urbanos dos que se encontravam no “meio-de-campo”, em situação ambivalente. E para fazer este tipo de separação, o critério decisivo é a densidade demográfica. É ela que estará no âmago do chamado “índice de pressão antrópica”, quando ele vier a ser construído. Isto é, o indicador que melhor refletiria as modificações do meio natural que resultam de atividades humanas. Nada pode ser mais rural do que as áreas de natureza praticamente inalterada, e não existem ecossistemas mais alterados pela ação humana do que as manchas ocupadas por megalópoles. É por isso que se considera a “pressão antrópica” como o melhor indicador do grau de artificialização dos ecossistemas e, portanto, do efetivo grau de urbanização dos territórios.

A maior dificuldade não está, contudo, na seleção desse critério. A principal incógnita é a “dose”. Como saber qual seria o melhor corte (ou os melhores cortes)? Isto é, qual seria, por exemplo, o limite de densidade demográfica a partir do qual um território deixaria de pertencer à categoria mais rural e passaria a alguma outra categoria? Durante muito tempo foi considerado razoável 60 hab/km2 como um bom critério de corte. Foi a convenção adotada por Davidovich & Lima (1975) à luz dos dados do

Censo de 1970. No entanto, um exame dos dados do Censo de 2000 parece justificar uma atualização dessa convenção para 80 hab/km2.

Quando se observa a evolução da densidade demográfica conforme diminui o tamanho populacional dos municípios, não há como deixar de notar duas quedas abruptas. Enquanto nos municípios com mais de 100 mil habitantes, considerados centros urbanos pela citada pesquisa IPEA/IBGE//Unicamp, a densidade média é superior a 80 habitantes por quilômetro quadrado (hab/km2), na classe imediatamente inferior (entre 75 e 100 mil habitantes) ela desaba para menos de 20 hab/km2. Fenômeno semelhante ocorre entre as classes superior e inferior a 50 mil habitantes (50-75 mil e 20-50 mil), quando a densidade média torna a cair, desta vez para 10 hab/km2. São esses dois “tombos” que permitem considerar de pequeno porte os municípios que têm simultaneamente menos de 50 mil habitantes e menos de 80 hab/km2, e de médio porte os que têm população no intervalo de 50 a 100 mil habitantes, ou cuja densidade supere 80 hab/km2, mesmo que tenham menos de 50 mil habitantes.

Com a ajuda desse dois cortes, estima-se que 13% dos habitantes, que vivem em 10% dos municípios, não pertencem ao Brasil indiscutivelmente urbano, nem ao Brasil essencialmente rural. E que o Brasil essencialmente rural é formado por 80% dos municípios, nos quais residem 30% dos habitantes. Ao contrário da absurda regra em vigor - criada no período mais totalitário do Estado Novo pelo Decreto-lei 311/38 - esta tipologia permite entender que só existem verdadeiras cidades nos 455 municípios do Brasil urbano. As sedes dos 4.485 municípios do Brasil rural são vilarejos e as sedes dos 567 municípios intermédios são vilas, das quais apenas uma parte se transformará em novas cidades.

O principal, contudo, não é a abordagem instantânea da configuração territorial do Brasil. Mais importante é ressaltar uma tendência que não deveria ser tão ignorada. Mesmo que se acrescente ao Brasil urbano todos os municípios intermédios, considerando-os como vilas de tipo ambivalente que poderão se transformar em centros urbanos, chega-se a um total de 1.022 municípios, nos quais residiam em 2000 quase 118 milhões de pessoas. Nesse subconjunto ampliado, o aumento populacional entre 1991 e 2000 foi próximo de 20%, com destaque para as aglomerações não-metropolitanas e para os centros urbanos. Em ambos houve crescimento demográfico um pouco superior. Mas não se deve deduzir daí, como se faz com extrema freqüência, que todos os outros municípios - de pequeno porte e

possível que seja apenas uma mera coincidência o fato desses municípios terem poucos e esparsos habitantes, além de estarem distantes de aglomerações?

Tabela 3 Número de Municípios que não dispõem de selecionadas funções urbanas Brasil 2001.

Municípios Número

Sem serviço de esgotamento sanitário terceirizado 4. Sem manutenção e estradas e vias terceirizada 4. Sem varredura de ruas e limpeza terceirizadas 4. Sem museu 4. Sem plano diretor 4. Sem guarda municipal 4. Sem teatro ou casa de espetáculo 4.

Sem IPTU progressivo 4.

Sem instituição de ensino superior 4. Sem estação de rádio AM 4. Sem coleta de lixo domiciliar terceirizada 4. Sem provedor de Internet 4. Sem lei de zoneamento ou equivalente 4. Sem página na Internet 4. MÉDIA 4. Fonte: IBGE – Perfil dos Municípios Brasileiros 2001

Mesmo que esta hierarquia em cinco andares permita concluir que o Brasil rural está concentrado em cerca de 4,5 mil municípios, nos quais residem pouco mais de 30% de seus habitantes, isso ainda não é suficiente para que se tenha uma boa visão da configuração territorial do país. Para tanto, parece ser bem melhor a hierarquia de suas microrregiões.

É simples perceber que as 12 aglomerações metropolitanas afetam diretamente 22 microrregiões, que as 37 outras aglomerações afetam diretamente 41 microrregiões, e que os 77 centros urbanos estão localizados no interior de 75 microrregiões. Bem mais difícil é estabelecer distinções no interior das outras 420, isto é, de 75% das microrregiões. É inevitável que se pergunte, então, qual poderia ser um bom critério de classificação desse oceano de microrregiões que não abrigam sequer um centro urbano. Provavelmente nunca haverá resposta consensual a esta questão, pois ela depende dos inevitáveis pressupostos que condicionam qualquer construção de tipologia. O fundamental, então, é que tais pressupostos sejam bem explicitados na justificação do critério adotado.

Esta estimativa admite que a densidade demográfica também é um critério razoável para diferenciar essas microrregiões que sequer abrigam um centro urbano. Por isso, no exercício proposto mais adiante será usado o mesmo critério de corte – 80 hab/km

  • para separar essas microrregiões que não contêm sequer um centro urbano. Isto é, diferenciar as 420 microrregiões distantes de aglomerações e de centros urbanos em duas categorias separadas por esse corte de densidade demográfica. Disso resulta uma tipologia das microrregiões que está apresentada na tabela 4.

Tabela 4 Tipologia das Microrregiões do Brasil e crescimento populacional 1991-

Tipos de MRG

Número População 1991 (milhões)

População 2000 (milhões)

Variação % Metropolitanas 22 48,1 57,0 18, Não-metropolitanas 41 21,7 26,1 19, C/Centros Urbanos 75 23,5 27,7 18, Mais de 80 hab/km2 32 5,6 6,4 14, Menos de 80 hab/km

TOTAL 558 146,8 169,6 15,

Fonte dos dados brutos: Censos demográficos, IBGE

Todavia, a última coluna dessa tabela mostra que o comportamento populacional do quarto tipo (formado por microrregiões que não têm centros urbanos, mas que têm mais de 80 hab/km2) é mais próximo do constatado para os anteriores, onde há centros urbanos e aglomerações. Ou seja, essas poucas 32 microrregiões certamente

Ao insistir na oposição entre os pontos de maior artificialização ecossistêmica e as áreas de menor pressão antrópica, esta abordagem tricotômica evita uma ingenuidade tão comum quanto traiçoeira: a de se basear exclusivamente no critério do tamanho municipal. No México, por exemplo, o Indesol (Instituto Nacional de Desarrollo Social) diferencia os municípios em quatro categorias definidas exclusivamente pelo tamanho populacional. Considera urbanos todos os municípios com mais de 50 mil habitantes; como “semi-urbanos” os que ficam na faixa entre 10 mil e 49.999; como “semi-rurais” os que ficam na faixa entre 2.500 e 9.999; e como rurais os que têm menos de 2. habitantes. No entanto, um pequeno município de poucos milhares habitantes, mas que seja adjacente a uma aglomeração, pode ser muito mais urbano que um município com população bem maior, mas que tenha baixíssima densidade populacional e que esteja distante das aglomerações e dos centros urbanos. Mesmo assim, não deixa de ser surpreendente que 61% dos municípios mexicanos fiquem na categoria rural e 19% na categoria “semi-rural”.

Enfim, esse critério de tamanho populacional nem de longe reflete o que mais interessa: as alterações dos ecossistemas provocadas pela espécie humana. E já estão disponíveis estimativas que permitem que se agregue mais uma dimensão – a espacial - a esta estimativa da importância relativa do Brasil rural. A tabela 6 traz uma comparação entre os dados continentais e os brasileiros.

A primeira observação a ser feita é sobre o contraste entre o grau de artificialização dos ecossistemas da Europa e do resto do mundo. Estão intensamente alterados uns 65% do território europeu (tanto por assentamentos humanos quanto por agropecuária intensiva). Nos demais continentes essa fração não chega a um terço, e atinge mínimos 12% na América do Sul e na Australásia. Em seguida, é importante notar que mais da metade dos territórios das Américas e da Australásia foram considerados praticamente inalterados, pois mantêm a vegetação primária, com baixíssimas densidades demográficas. Finalmente, pode-se dizer que metade da área planetária permanece praticamente inalterada, e mais uma quarta parte parcialmente alterada com formas extensivas de exploração primária. Ou seja, apenas uma quarta parte da área global está mais artificializada pela urbanização e pelas formas mais intensivas de agropecuária.

Tabela 6 Habitat e alteração humana por continente e no Brasil.

Área total Praticamente inalterada (1)

Parcialmente alterada (2)

Fortemente artificializada (3) Milhões de Km2 %^ %^ %

Europa 5,8 15,6 19,6 64, Ásia 53,3 43,5 27,0 29, América Norte 26,2 56,3 18,8 24, África 34,0 48,9 35,8 15, América do Sul 20,1 62,5 22,5 12, Australásia 9,5 62,3 25,8 12, TOT s/Antártica

Antártica 13,2 100,0 0,0 0, TOT MUNDO 162,1 53,8 24,4 21,

BRASIL 8,5 63,0 18,0 19,

(1) (1) Praticamente inalterada : áreas com vegetação primária e com baixíssimas densidades humanas. (2) (2) Parcialmente alterada : áreas com agropecuária extensiva, vegetação secundária, e outras evidências de alteração humana, como pastoreio acima da capacidade de suporte, ou exploração madereira. (3) (3) Artificializada : áreas com agropecuária intensiva e assentamentos humanos nas quais foi removida a vegetação primária, ou com desertificação e outras formas de degradação permanente. Fonte : Hannah et al. (1994) para os continentes. Para o Brasil, ver Embrapa Monitoramento por Satélite: http://www.cobveget.cnpm.embrapa.br/resulta/brasil/leg_br.html

Informações recentemente disponibilizadas pela Embrapa Monitoramento por Satélite mostram que a repartição do território brasileiro segundo essas três intensidades de alteração humana está a meio caminho, entre as situações da América do Sul e da América do Norte. A parte das áreas inequivocamente artificializadas (urbanas e agropecuárias) não chega a 20%. Outros 18% ficam na categoria intermediária, constituída essencialmente por mosaicos de vegetação alterada, outras formas ultra- extensivas de lavouras e pastoreios (mas também por rochas e solos nus, ou com vegetação dispersa, e corpos d’água). E nos demais 63% estão as florestas úmidas

entanto, em nenhuma dessas várias formas empíricas de abordar a configuração territorial foi possível prescindir do contraste urbano/rural. Nenhuma das opções apresentadas conseguiu “se libertar” do jugo dessa oposição. Tudo se passa como se a dicotomia resistisse a todas a tentativas de superá-la, permanecendo onipresente, mesmo que criticada e rejeitada.

É que há aqui uma questão básica de lógica. Dicotomia é uma divisão em dois ramos, ou a divisão de um gênero em duas espécies que absorvem o total. É uma classificação em que se divide cada coisa ou cada proposição em duas, subdividindo- se cada uma destas em outras duas, e assim sucessivamente. Contradição não é subdivisão, e sim oposição entre duas idéias, ou duas proposições. Para o senso comum, em qualquer oposição entre duas proposições contraditórias, uma delas exclui necessariamente a outra. E, neste sentido, de fato, contradição e dicotomia seriam expressões sinônimas. Se a dicotomia é uma divisão em dois ramos, cada um exclui o outro, sendo, pois, também uma contradição.

Todavia, a noção de contradição sempre foi algo bem diferente na filosofia ocidental. Pelo menos desde que Heráclito - há cerca de 2,5 mil anos - transformou em solução o que até ali parecia um grande mistério. Para ele, o mundo deveria ser entendido justamente pela unidade dos contrários, tese que só foi ganhar mais consistência com Kant e Hegel, há menos de duzentos anos. E no século XX ela gerou um imenso e confuso debate – que está longe de se encerrar - sobre a chamada relação Marx/Hegel e seus eventuais desdobramentos sobre os marxismos e seu declínio. Como um aprofundamento deste tema foge ao escopo deste artigo, o leitor mais interessado certamente tirará muito proveito de uma consulta comparativa a três livros recentemente publicados no Brasil: Tambosi (1999), Giannotti (2000), e Holloway (2003). Mas isso não impede que ela seja aqui brevemente retomada, sob um prisma distinto, proposto por Nicholas Georgescu-Roegen (1971), o pesquisador que certamente mais contribuiu para o esclarecimento daquilo que Marx chamava de “metabolismo” que os seres humanos mantêm com a natureza e entre si.

Desde logo é preciso lembrar que muitos conceitos podem ser diferenciados de forma discreta, no sentido matemático dessa palavra. Entre os conceitos de círculo e de quadrado não há qualquer “zona cinzenta”. São conceitos que simplesmente não se sobrepõem. Todavia, não é desse tipo a relação entre o quadrado e o retângulo. É quase impossível ter certeza de que um retângulo concreto seja de fato um quadrado concreto. Além disso, o quadrado é “Um” no âmbito das idéias, mas “Muitos” no

âmbito dos sentidos. Até os conceitos de “vida” e de “morte” já escaparam da relação binária desde que os biólogos afirmaram que certos vírus/cristais estão na penumbra entre os reinos animado e inanimado. E praticamente todos os grandes conceitos que envolvem julgamento, ou que são valores (como justiça, ou democracia), pertencem à segunda categoria. Como diz Georgescu-Roegen, não há entre eles fronteiras “arithmomórficas”, pois são cercados por uma penumbra na qual estão sobrepostos aos seus contrários. O autor os chama de conceitos “dialéticos”, fazendo questão de registrar que sua abordagem é bem diferente das de Hegel e Marx, muito embora inspirada na lógica do primeiro. E não há necessidade alguma de esticar este raciocínio para afirmar que as noções de urbano e rural são desse tipo, mesmo que possam ter sido realmente “arithmomórficas” na Europa dos séculos X a XII.

Como movimento dos contrários, a relação urbano-rural evoluiu tanto nos países mais avançados, que na década de 1970 o grande filósofo e sociólogo marxista Henri Lefebvre foi levado a sustentar a hipótese teórica de que a sociedade pós-industrial seria completamente urbana. Ou seja, que o pólo rural da contradição tenderia a desaparecer. No entanto, as tendências mais recentes indicam o quanto pode ser equivocado tratar o rural como sinônimo de agrário, o tropeço básico de Lefebvre. Encantos como paisagens silvestres ou cultivadas, ar puro, água limpa, silêncio, tranqüilidade, etc., muito valorizados por aposentados, turistas, esportistas, congressistas e alguns tipos de empresários, já constituem a principal fonte de vantagens comparativas da economia rural (Galston & Baehler, 1995).

Claro, em qualquer lugar a qualidade de vida se refere, em última instância, ao acesso de seus habitantes a alternativas de emprego, serviços sociais públicos essenciais, facilidades educacionais e médicas, a um conjunto amplo de serviços culturais e comerciais e à natureza, ou seja, espaços abertos para recreação. Para todos os critérios, exceto o último, o acesso é, normalmente, maior nos grandes complexos metropolitanos. E também são vistos com crescente inquietação os aspectos negativos da concentração da população – muito tempo gasto em transporte, congestionamentos, unidades de serviços públicos desnecessariamente grandes e impessoais, stress, alienação individual e do grupo, e poluição (Pred,1979).

Além disso, o crescimento econômico não poderá se basear por muito mais tempo na extração da baixa entropia contida no carvão, gás e petróleo. Logo deverá se basear em formas mais diretas de exploração da energia solar, com destaque para a biomassa. Não há como imaginar futuras formas de compensação entrópica sem

Referências

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