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Neste documento, analisamos a concepção de nietzsche sobre o mundo como rede de forças e a origem dos valores morais, enfatizando a vontade de poder e a dinâmica de subjugação e resistência. Exploramos a etimologia das palavras 'bom' e 'mau' e as configurações de forças que produziram as visões de mundo aristocráticas.
O que você vai aprender
Tipologia: Notas de estudo
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Compreende-se a moral como um conjunto de leis eternas e absolutas que determinam o que é o Bem e o que é o Mal, com o poder de se impor ao mundo por si mesmas. Leis imutáveis intrínsecas ao mundo ou eternamente suspensas no “além”, que coube justamente ao homem, o mais evoluído dos seres, o privilégio de encontrar, receber por dom ou revelação diretamente do criador supremo do universo, ou trazer já inscritas em seu ser, em seu “coração”, ou em seu intelecto superdesenvolvido (sua consciência, sua alma ou seu espírito). Uma vez encontradas, estas leis universais – que são sempre, direta ou indiretamente, proibições – devem ser respeitadas por todos os homens, cabendo àqueles que as descumprirem as mais rigorosas penas imagináveis e àqueles que viverem de acordo com elas, as mais sublimes e gloriosas recompensas, seja pelas mãos do próprio criador supremo do universo – em geral chamado “Deus” –, seja pelas mãos de seus representantes, que são homens portadores de uma capacidade excepcional de comunicação direta com o “além” – em geral chamados sacerdotes. De acordo com esta compreensão de mundo, portanto, Bem e Mal são valores supremos em si. Pessoas e coisas podem realizar ações boas ou más e, computando-se a quantidade e a qualidade das ações boas e más que praticam, bem como alguns outros fatores, tais como as intenções (principalmente), arrependimento, submissão ao castigo devido, esforço de reparação e frequência de reincidência, pessoas e coisas podem ser em essência, morais ou imorais, ou seja, boas ou más. Sendo assim, esta concepção pressupõe a existência de sujeitos em si, livres para escolher bem ou mal suas ações, ou então, que trazem desde o nascimento uma essência imutável boa ou ruim, que determinará pelo resto de suas vidas a direção de seus atos. No entanto, segundo a concepção de mundo que estamos formulando desde o primeiro capítulo, o mundo como rede de forças tem apenas uma determinação intrínseca: a vontade de poder, que é uma espécie de impulso
inescapável e não alguma “lei” que possa ser imposta ou desrespeitada. Neste sentido, é um princípio descritivo e não prescritivo. Por sua própria dinâmica constitutiva, este mundo não admite também nenhum “além” de si, sendo todo e qualquer valor, e, portanto, toda e qualquer moral que apareça sobre a face da Terra, produzidos por dentro do próprio jogo conflituoso das forças. Nenhum destes valores, a propósito, pode sustentar um caráter eterno ou universal, embora muitos deles queiram constantemente arrogar para si estes títulos – o que é natural pela lógica do próprio movimento desejante constitutivo da existência, que é de acumulação e expansão de poder. Todos eles, então, por mais eternos e universais que se queiram, são fenômenos locais, produzidos como efeito de uma configuração complexa de forças e que, mais cedo ou mais tarde, como tudo o mais, hão de se desintegrar, mas que se mantêm ativos enquanto houver algum poder, não do além, mas aqui-agora, que os sustente. Nenhum deles é, tampouco, verdadeiro em si. São todos resultantes de um processo interpretativo, ou seja, são perspectivos, interessados, relacionais, condicionados, e, enquanto tais, necessariamente fictícios. Ficções que por um investimento de poder em sua pretensa legitimidade, cristalizam-se e passam a ser acreditadas como absolutamente verdadeiras, ou em outras palavras, tornam-se um vício. A moral dominante, vigente há mais ou menos dois mil anos, ao menos no mundo ocidental, é aquela que tem por valores superiores, ou seja, por “Bem”, o altruísmo, a renúncia, a piedade, a compaixão e a abnegação. Consequentemente, reconhece como “Mal” o egoísmo, o desejo de posse, de acumulação e expansão de força, a violência, a agressividade e o orgulho. Embora possua algumas variantes, todas elas partem deste princípio comum: são morais do altruísmo. E a expressão máxima já conhecida até hoje deste tipo de ordenação moral do mundo, veio à cena com o advento do cristianismo, é a chamada moral cristã. Por ser dominante, se não mesmo hegemônica no mundo ocidental há aproximadamente dois milênios, é à moral altruísta que Nietzsche dirigirá sua crítica, concedendo especial atenção a esta “espécie de moral que alcançou vigência e domínio como moral em si – a moral de décadence , falando de modo mais tangível, a moral cristã” (EH, Por que sou um destino , § 4). De fato, é difícil falar hoje em moral sem que pensemos automaticamente na doutrina moral cristã. Tão logo falamos em “bem”, imediatamente nos ocorrem ideias de altruísmo, compaixão, humildade, enquanto associamos as ideias de
acompanhável daquela famosa afirmação presente em Humano demasiado humano : “tudo veio a ser; não há realidades eternas : tal como não há verdades absolutas” (HH, § 2). O que quer que exista passa por um longo e conflituoso processo de formação, até que de uma determinada tensão de forças se dê sua emergência. A partir daí, passa por diversas reinterpretações, até chegar à fixação, por hora estável, do seu sentido habitual, aquele que conhecemos hoje. Assim, não há nada que seja eterno, nada que seja absolutamente verdadeiro, nenhum em-si, nenhuma realidade fixa e imutável, nem mesmo – como denuncia Nietzsche em sua genealogia da moral – aquilo que tomamos por mais sagrado e inquestionável, como os valores morais. Esta compreensão tem grande afinidade com a própria concepção nietzschiana de mundo, baseada no conceito de vontade de poder e na ampliação de seu campo de atuação pela introdução da teoria das forças, segundo a qual tudo o que existe são forças em conflito intrinsecamente impulsionadas pela vontade de poder. As forças, que aspiram à expansão de seu poder, lutam entre si, aniquilam, dominam, escravizam, aliam-se temporariamente umas às outras. Este conflito, sem possibilidade de pausa ou resolução final, forma arranjos temporários de forças que se reconfiguram a cada instante e é esta rede de forças, em permanente conflito e movimento, que constitui o próprio mundo. Não há, portanto, essências, núcleos ou verdades imutáveis, somente resultantes mais – ou menos – estáveis da rede de forças em jogo. O método genealógico não busca, então, apreender a origem de alguma coisa, uma origem simples, datada e perfeitamente identificável, mas acompanhar o longo processo não-linear que a constituiu tal como a conhecemos hoje. Mapear as forças em jogo no momento de sua emergência, as dominações, as reinterpretações, as fixações de significados e sentidos, as astúcias, as reviravoltas. Buscar “A” origem, como ressalta Foucault, é procurar a “essência exata da coisa, sua mais pura possibilidade, sua identidade cuidadosamente recolhida em si mesma, sua forma imóvel e anterior a tudo que é externo, acidental, sucessivo”, é “querer tirar todas as máscaras para desvelar enfim uma identidade primeira”. (Foucault, Microfísica do poder , p. 17) A origem, assim compreendida, é metafísica, está “antes”, está “além”, é mera projeção de uma perfeição e de uma verdade impossíveis.
Também a finalidade corrente de uma coisa nada pode nos dizer sobre sua proveniência. O desenvolvimento da história não é teleológico, não está desde o princípio visando um determinado fim. Até atingir sua finalidade habitual, uma coisa deve passar por inúmeros processos de dominação e reinterpretação, configuração e reconfiguração de sua forma, fixação e dissolução de sentidos. Nietzsche chega a afirmar que “não há princípio mais importante para toda ciência histórica”, do que a compreensão definitiva de que “a causa da gênese de uma coisa e sua utilidade final, a sua efetiva utilização e inserção em um sistema de finalidades, diferem toto coelo [totalmente]”. Isso porque uma vez se produza algo, “é sempre reinterpretado para novos fins, requisitado de maneira nova, transformado e direcionado para uma nova utilidade, por um poder que lhe é superior” (GM, II, § 12). De acordo com a lógica da vontade de poder Todo acontecimento do mundo orgânico é um subjugar e assenhorear-se, e todo subjugar e assenhorear-se é uma nova interpretação, um ajuste, no qual o ‘sentido’ e a ‘finalidade’ anteriores são necessariamente obscurecidos e obliterados. (GM, II, § 12) Por mais que tenhamos compreendido com exatidão a finalidade de alguma coisa, de um “órgão fisiológico (ou de uma instituição de direito, de um costume social, de um uso político, de uma determinada forma nas artes ou no culto religioso), nada se compreendeu acerca de sua gênese” (GM, II, § 12). Comumente, no entanto, confundimos a finalidade com a causa. Erro análogo àquele indicado por Nietzsche em Crepúsculo dos Ídolos como um dos quatro grandes erros: a “confusão de causa e consequência” (CI, Os quatro grandes erros , § 1). Como exemplo desta confusão, Nietzsche cita a recomendação de uma dieta rigorosa capaz de proporcionar longevidade a seus praticantes. Imagina-se que a dieta é causa da longevidade, quando na verdade, ela é tão somente o efeito de um metabolismo naturalmente lento, propenso à longevidade. Quando imaginamos que a finalidade de uma coisa, instituição ou ideia seja sua causa, nos esquecemos de que esta finalidade é apenas efeito, resultante de uma série de dominações. Todos os fins, todas as utilidades são apenas indícios de que uma vontade de poder se assenhoreou de algo menos poderoso e lhe imprimiu o sentido de uma função; e toda a história de uma “coisa”, um órgão, um uso, pode desse modo ser uma ininterrupta cadeia de signos de sempre novas interpretações e ajustes, cujas causas nem precisam estar relacionadas entre si, antes podendo se suceder e se substituir de maneira meramente casual. (GM II, § 12)
fortalecem? Afirmam ou negam? Abençoam ou condenam? Limitam ou ampliam os horizontes? Que visão de mundo se esforçam para promover? Ou seja, é preciso investigar – e estabelecer mesmo – o valor dos valores. “O problema crítico é esse: o valor dos valores e, portanto, o problema da sua criação” (Deleuze, Nietzsche e a Filosofia , p.4). Investigar e estabelecer o valor dos valores, este será o ofício de Nietzsche. Realiza, então, uma análise crítica dos valores morais, procurando conhecer as “condições e circunstâncias nas quais nasceram, sob as quais se desenvolveram e se modificaram”, revelando a moral como “consequência, como sintoma, máscara, tartufice, doença, mal-entendido; mas também moral como causa, medicamento, estimulante, inibição, veneno” (GM, Prefácio, § 6). Como surgiram, então, as avaliações “bem” e “mal”? Em primeiro lugar, Nietzsche vai buscar na etimologia o significado das palavras “bom” e “mau” em diversas línguas e por toda parte descobre “bom” como sinônimo de “nobre”, “forte”, “aristocrático”, “espiritualmente privilegiado” (GM, I, § 4). “Bom” era o valor que os próprios aristocratas se auto atribuíam, por se reconhecerem como os melhores, os poderosos, os mais fortes, os mais nobres, os mais ricos, os mais felizes, enquanto “mau”, era utilizado por eles para designar o homem “comum”, “plebeu”, “baixo” (GM, I, § 4). “Foram os ‘bons’ mesmos, isto é, os nobres, poderosos, (...) que sentiram e estabeleceram a si e a seus atos como bons (...) em oposição a tudo que era baixo, de pensamento baixo, e vulgar, e plebeu” (GM, I, § 2). Foi pelo desejo de estabelecer uma marca de distinção e orgulho que “tomaram para si o direito de criar valores” (GM, I, § 2) e não por ver neste tipo de classificação alguma utilidade: “que lhes importava a utilidade!” (GM, I, § 2). Sendo assim, fica claro que, em sua origem, “a palavra ‘bom’ não é ligada necessariamente a ações ‘não-egoístas’”. (GM, I, § 2) Pelo contrário, é justamente quando os valores aristocráticos declinam, que surge a oposição entre egoísta e não-egoísta. É “o instinto de rebanho , que com ela toma finalmente a palavra (e as palavras )” (GM, I, § 2). No próprio alemão, Nietzsche encontra na palavra “slecht” (mau), uma correspondência com a palavra “slicht” (simples), que era utilizada para designar o homem simples, comum, por oposição a “gut” (bom), que ele acredita derivar de “gottlich” (divino), significando o homem de origem divina e “goth”, palavra originalmente utilizada para designar a nobreza. No iraniano e no eslavo,
encontramos “arya” significando “os ricos, os possuidores”, como valor que os aristocratas utilizavam para se autodesignar. No grego, “kakós” (mau), significa plebeu, covarde, em oposição a “agathós” (bom). Também a palavra gaélica “fin”, utilizada para designar a nobreza, significa “o bom”, “o nobre”, “o puro”. No latim, “bonus” (bom), deriva de “duonus”, o guerreiro, e em Roma o guerreiro era o “bom” (GM, I, § 5). Fica claro, então, que são os poderosos que forjam o valor “bom” para se autodesignar, como sinal de distinção e orgulho e são eles mesmos que garantem a legitimidade deste valor. Eles são os nobres, os fortes, têm a espada nas mãos e sabem como usá-la, portanto, sua força é a própria garantia dos valores que criam e impõem naturalmente. Vejam que “bom” e “mau” não são valores “em si”, não estão fixados no além, nem foram entregues aos homens por entidades superiores, nem são úteis em si mesmos para a comunidade, ou para qualquer outro fim. São resultantes de uma intrincada complexidade de forças: uma posição social superior, condições econômicas favoráveis, o fato de se ter nascido numa determinada linhagem, a força física, a coragem, boas condições de saúde, etc. Todas estas forças, entrelaçadas em rede, e sempre no impulso da vontade de poder, produzem uma determinada visão de mundo, uma perspectiva própria, uma avaliação: neste caso, os valores aristocráticos “bom” e “mau”. Mas, os fracos e despossuídos se ressentem do poder dos fortes e dos poderosos. Inseridos na dinâmica da vontade de poder, como qualquer configuração de forças existente, desejam o poder, mas falta-lhes a força e a coragem para lutar por seu objetivo. Seus anseios por poder, longamente reprimidos, dão origem a um grande ódio, um grande desejo de vingança, que cresce internamente, silenciosamente, tal qual uma planta venenosa cuidadosamente cultivada em segredo. Os grandes representantes destes homens fracos são os sacerdotes – aqueles que se promovem como dotados de um poder especial de comunicação direta com o além, capazes, portanto, de dizer quais são os valores morais verdadeiros em si. Nietzsche afirma que são eles “ os mais terríveis inimigos (...) porque são os mais impotentes. Na sua impotência, o ódio toma proporções monstruosas e sinistras, torna-se a coisa mais espiritual e venenosa” (GM, I, § 7). Os fracos, então, conduzidos pelos sacerdotes, deram curso à sua grande vingança “através de uma radical tresvaloração dos valores” (GM, I, § 7). Armados com seu
felicidade”, que aparece sempre sob a forma de “narcose”, “entorpecimento”, “sossego”, “paz”, “sabbat”, “distensão do ânimo e relaxamento dos membros” (GM, I, § 10), ou seja, sua felicidade se dá de forma passiva, é sempre apenas uma promessa de paz eterna num mundo além que ainda há de vir. A diferença capital entre o modo de operação aristocrático e aquele da moral de ressentimento, é que no aristocrata, forte, nobre, a acumulação e a expansão de poder se dão de maneira ativa, afirmativa, a vontade de poder se manifesta como vontade de auto superação, de auto elevação. O aristocrata sente a massa popular abaixo dele. Traz consigo o sentimento da superioridade, do orgulho, da distinção e sua luta é sempre em primeiro lugar contra si mesmo em favor de si mesmo. Se luta, em qualquer nível, com alguém que ocupa uma posição semelhante ou superior à sua, não o faz com o objetivo de rebaixá-lo, e sim buscando o prazer da luta, da vitória, num esforço constante de auto superação, de auto elevação. Já na moral ressentida, a acumulação e a expansão de poder se dão unicamente pelo enfraquecimento e pelo rebaixamento de todo aquele que está acima. Não há auto elevação, não há auto superação. O crescimento do seu poder se efetiva pelo enfraquecimento sistemático dos superiores até que estes desçam a um nível mais baixo, inferior ao seu. Já sabemos que toda configuração de forças é necessariamente perspectiva, desejante, interessada, mas no caso particular da moral, toda a dinâmica do seu processo de produção e validação deve ser cuidadosamente escondida, denegada^1 , ou ela simplesmente não funciona como se espera. A moral não pode se olhar no espelho, não pode chegar a desconfiar de seu caráter perspectivo e interessado, não pode, portanto, ser questionada, deve passar por verdade absoluta e universal. A dúvida quanto à validade absoluta da moral é fraqueza de fé, o questionamento é pecado. A moral, então, é onde não pode haver lucidez. É um sistema intrinsecamente denegatório. Vejamos como se dá o processo de construção da moral cristã: toma-se a própria fraqueza e as características que dela decorrem como as mais altas “virtudes”, o próprio “bem” supremo. Assim, a paciência, a docilidade, a renúncia a toda vingança, a humildade são transformadas em virtudes, em grandes méritos,
(^1) Utilizamos o conceito freudiano de denegação ( Verneinung) , significando o ato de negação, ou projeção para o exterior (para o outro), pelo analisando, de algo que está dado, claramente presente em afirmação em seu próprio sistema psíquico.
mas, na verdade, não é por mérito que os fracos atingem estas “qualidades”. Pelo contrário, estas já são suas próprias características pelo simples fato de serem desprovidos de força. Não há alguma instância subjetiva que “escolhe” efetivar ou não seu poder. Cada configuração de forças, determinada por todas as forças desejantes que a constituem e pelo impulso intrínseco da vontade de poder, faz exatamente o que pode fazer, vai exatamente até onde tem poder para ir. Portanto, a atitude passiva e inativa dos fracos não poderia ser diferente: é seu modo específico de ação e reação segundo os arranjos de forças que os constituem. Para reverter esta situação de impotência, eles não trabalham no cultivo da própria força. Ressentidos, lançam mão dos engenhosos artifícios moralísticos capazes de inverter a balança de poder vigente. Suas características são transformadas e tomam para si A roupagem pomposa da virtude que cala, renuncia, espera, como se a fraqueza mesma dos fracos – isto é, seu ser , sua atividade, toda a sua inevitável, irremovível realidade – fosse um empreendimento voluntário, algo desejado, escolhido, um feito , um mérito. Por um instinto de auto conservação, de auto afirmação, no qual cada mentira costuma petrificar- se, essa espécie de homem necessita crer no “sujeito” indiferente e livre para escolher. O sujeito (ou, falando do modo mais popular, a alma ) foi até o momento o mais sólido artigo de fé sobre a terra, talvez por haver possibilitado à grande maioria dos mortais, aos fracos e oprimidos de toda espécie, enganar a si mesmos com a sublime falácia de interpretar a fraqueza como liberdade, e o seu ser-assim como mérito. (GM, I, § 13) Com este artifício, “eles não se denominam fracos; denominam−se ‘bons’” (AC, § 17). E sua grande recompensa por serem tão “virtuosos”, que é ao mesmo tempo sua grande vingança longamente desejada, com requintes de crueldade saborosamente imaginados, o momento de desfrutar sua grande vitória, o momento em que se tornam enfim os poderosos, chama-se “O Reino de Deus”. “Esses fracos – também eles desejam ser os fortes algum dia, não há dúvida, também o seu ‘reino’ deverá vir algum dia” (GM, I, § 15). Lá neste reino, para melhor saborear sua vingança “verão as penas dos danados, para que a beatitude lhes dê maior satisfação” (GM, I, § 15). Vale a pena transcrever algumas passagens do 14º parágrafo da primeira seção da Genealogia da moral, no qual Nietzsche, com uma retórica impecável, bela e vigorosa, descreve o processo de construção da moral ressentida:
Como já dissemos, o forte é a própria garantia de validade e legitimidade dos valores que cria. Eles valem aqui e agora porque o forte assim determina. O fraco, em contrapartida, precisa absolutizar seus valores, universalizá-los, atribuir para eles um valor de verdade absoluta inquestionável que deve ser seguida por todos os homens. Assim, fixam seus valores no “além” e precisam recorrer a um juiz – um poder – pretensamente “externo” ao jogo para garantir sua legitimidade: “Deus”. Para poder dizer Não a tudo o que constitui o movimento ascendente da vida, tudo o que na Terra vingou, o poder, a beleza, a auto afirmação, o instinto de ressentiment, aqui tornado gênio, teve de inventar um outro mundo, a partir do qual a afirmação da vida apareceu como o mau, como o condenável em si. (AC, § 24) Com o grande investimento de poder nestas configurações de forças – moral, Deus – , tanto por parte daqueles que se adiantam em apresentar-se como “sacerdotes” – todos aqueles que se querem mediadores entre o “além” e o aqui –, quanto por parte de todos aqueles que constituem o solo fértil onde estes ideais podem proliferar – toda a massa popular de fracos e desvalidos – , estas configurações crescem em poder, cristalizam, tornam-se crenças. Uma crença nada mais é que uma configuração de forças, que, através de um grande investimento de poder cria uma série de defesas e barreiras rígidas em torno de si, perde qualquer capacidade de autocrítica, denega seu caráter perspectivo e desejante e passa a se impor como verdade absoluta, existente em si e por si. Através dos poderosos mecanismos de defesa que constrói ao redor de si, torna-se “intocável”, sagrada. Num esforço e fechamento sobre si mesma, torna-se ferrenhamente excludente, condena tudo o que fica de fora, tudo o que não é ela: o “outro” é falso, “mau”, está “errado”. Esta configuração de forças cristalizada passa a atuar como uma espécie de polo atrator das outras configurações de forças da rede, passa a monopolizar as possibilidades de articulação e conexão entre as forças a ela mais diretamente relacionadas. Numa palavra: constitui um vício. A moral cristã e seu Deus característico são vícios que limitam consideravelmente as possibilidades de pensamento, comportamento, ação e reação. A crença “exige que nenhuma outra ótica possa mais ter valor, após tornar sacrossanta a sua própria” (AC, § 9). Diante de qualquer situação, aquela configuração na qual comparece crença, atrai para si o movimento articulatório das forças, ou seja, o crente, diante das mais diversas situações que se lhe impõem, recorre sempre aos
mesmos mecanismos explicativos e comportamentais que sua crença determina. E se tentamos explicá-lo a dinâmica de formação e funcionamento de sua crença, graças aos fortes mecanismos de defesa que ela já estabeleceu, ou ele não entende, ou se aborrece. É nesse sentido que Nietzsche pode afirmar que “convicções são prisões” (AC, § 54) Com a introdução desta espécie de mundo “além” como mundo absoluto da verdade e do bem, os fracos condenam a existência, vingam-se deste mundo “aqui”, o único que existe, o mundo do conflito, do efêmero, o mundo que faz sofrer, o mundo no qual são fracos e despossuídos. A “noção de ‘além’”, de “‘mundo verdadeiro’”, inventada “para desvalorizar o único mundo que existe” (EH, Por que sou um destino , § 8). Em suma: o mundo real, tal como deveria ser , existe; este mundo, no qual vivemos, é somente erro – este nosso mundo não deveria existir. (...) Que espécie de homem reflete assim? Uma espécie sofredora e improdutiva; uma espécie cansada da vida. (VP, § 585)
“Deus” como figuração absoluta da verdade e do bem “em si”, é uma ideia que seduz, que não precisa provar seu valor, que não deve ser examinada nem investigada, que faz parecer um contrassenso verificar sua eficácia, porque se quer, já de saída, verdadeira e boa em si. É preciso, portanto, acreditar. Por outro lado, ao fixar o “além”, “Deus”, “a moral”, como valores verdadeiros e bons em si, os fracos e ressentidos condenam o mundo – a rede de forças, a vontade de poder – e o relegam à condição de “falso”, “pior”, “mau”, o mundo no qual não vale a pena viver. “Em Deus a hostilidade declarada à vida, à natureza, à vontade de vida! Deus como fórmula para toda difamação do ‘aquém’, para toda mentira sobre o ‘além’!” (AC, § 18). O ódio ressentido e a impotência, secretam um mundo “além” povoado de verdades eternas e absolutas que existem em si e por si, como vingança e (de)negação do jogo dinâmico de forças em conflito que constitui a existência. A noção de “Deus” inventada como noção-antítese à vida – tudo nocivo, venenoso, caluniador, toda a inimizade de morte à vida, tudo enfeixado em uma horrorosa unidade! Inventada a noção de “além”, “mundo verdadeiro”, para desvalorizar o único mundo que existe (EH, Por que sou um destino , § 8)
percebe, suas maneiras específicas de comportamento, ação e reação e, consequentemente, determina o que ela é. Não que haja alguém que faça um cálculo a todo momento. Este cálculo corresponde à própria dinâmica do jogo de forças, seu próprio processo interpretativo de conflito e articulação. Não há, portanto, qualquer possibilidade de haver uma configuração de forças – uma pessoa, por exemplo – altruísta, abnegada, pacífica. Aparecendo como configuração, já está desejando poder e buscando os meios efetivos para sua realização. Não há saída. Não é que não existam no mundo pessoas e ações aparentemente altruístas, abnegadas, desinteressadas. O que acontece é que elas já se inscrevem automaticamente num movimento desejante de poder. Lembrando que não se trata exclusivamente de poder político ou econômico, mas de uma acumulação ou expansão de força em qualquer sentido, em qualquer instância. Mesmo aqueles monges que costumamos tomar como exemplo supremo de abnegação só porque abriram mão de qualquer pretensão ao poder político e econômico, estão supermotivados por um desejo de expansão absoluta de poder que virá como recompensa por sua “abnegação” no reino dos céus. Contam ainda com um sentimento de superioridade por estarem respeitando as verdadeiras leis morais instituídas pelo próprio Deus e com a satisfação interna de saber que todos aqueles que buscaram outros prazeres, outros poderes, serão duramente castigados. Os iogues hindus, em sua extrema abnegação e desinteresse estão impulsionados por um desejo de expansão absoluta de poder na “iluminação do espírito”, ou querem ao menos a recompensa da eliminação de algumas reencarnações futuras. O mais simples camponês que trabalha de sol a sol, ainda que não aspire ao poder político ou econômico nos mais elevados graus, sua própria relação com a terra é uma relação de poder, sua energia de trabalho é vontade de poder e seus objetivos, por mais simplórios que sejam, como sustentar a família, comprar um pequeno lote de terras, adquirir algum tipo de conforto, são expressões do seu desejo de acumulação e expansão de poder. Para quem está inserido num outro regime de forças, este tipo de cálculo parece desinteressado, ou então simplesmente absurdo, mas ele está tão inscrito na lógica da vontade de poder como qualquer outro. Há uma economia pulsional efetiva no processo existencial, há diversos maquiavelismos e artifícios, mas sempre necessariamente inscritos na mesma lógica – aquela da vontade de poder. O inseto que se finge de morto domina o
homem que desiste de desferir o golpe fatal. Do mesmo modo o fraco, pela introdução da moral altruísta, enfraquece o forte, desperta pena, compaixão, piedade e o domina, impedindo-o de exercer seu poder livremente. “Por caminhos secretos desliza o mais fraco até à fortaleza, e até mesmo ao coração do mais poderoso, para roubar o poder” (ZA, Da vitória sobre si próprio ). O que acontece é que a moral ressentida funciona num regime denegatório, não se reconhece como movimento inscrito na lógica da vontade de poder. Apenas se afirma como boa, verdadeira e altruísta, já que seu ato de dominação é para ela um ato de bondade, de introdução do outro no caminho da verdade e do bem. O que a moral não sabe, o que a moral não quer nem pode saber, é que ela constitui um aparelho bastante eficaz de dominação, de acumulação e expansão de poder. Ou seja, seus objetivos, e também seus meios, são necessariamente imorais segundo a própria tábua de valores que estabelece. “Todos os meios pelos quais, até hoje, quis-se tornar moral a humanidade foram fundamentalmente imorais ” (CI, Os “melhoradores” da humanidade , § 5). A moral cristã domina e enfraquece os fortes, os nobres e os submetem. Instituindo, ou apropriando-se da noção de “livre arbítrio”, coloca como possível
O homem forte não é “livre” para escolher não exteriorizar sua força. Ele só pode efetivar seu poder. “Que as ovelhas tenham rancor às grandes aves de rapina não surpreende: mas não é motivo para censurar às aves de rapina o fato de pegarem as ovelhinhas” (GM, I, § 13). O que a moral cristã faz ao “educar” o homem forte em sua doutrina não é torná-lo “consciente” da sua “liberdade de escolha” entre o “Bem” e o “Mal”. O que ela faz é enfraquecer efetivamente o homem poderoso tornando-o crente desta ideia absurda e diminuindo assim, efetivamente, seu poder de ação. Seduzido pela verdade e o bem em si, quando não mesmo à força, o homem, envolvido nesta estranha dinâmica circular – escolha, pecado, culpa, penitência, castigo, recompensa – , é enfraquecido, domado, domesticado, dominado, mas segundo a moral cristã, ao ser inserido nesta dinâmica, o homem é “melhorado”, experimenta um verdadeiro progresso moral. Quem sabe o que acontece nas ménageries duvida que a besta ali seja “melhorada”. Ela é enfraquecida, tornada menos nociva; mediante o depressivo afeto do medo, mediante dor, fome, feridas, ela se torna uma besta doentia. – Não é diferente com o homem domado, que o sacerdote “melhorou”. (CI, Os “melhoradores” da humanidade , § 2)
O cristianismo, expressão máxima já conhecida da moral de ressentimento, por ter florescido primeiramente em meio a todo tipo de homens fracos, pobres, doentes, desvalidos, volta-se contra os nobres e poderosos. “O cristianismo quer assenhorar-se de animais de rapina ; seu método é torná-los doentes – o debilitamento é a receita cristã para a domesticação ” (AC, § 22). Depois de educado na doutrina moral cristã, que aparência apresentava, mesmo o mais forte dos homens? A de uma caricatura de homem, de um aborto: tornara-se um “pecador”, estava numa jaula, tinham-no encerrado entre conceitos terríveis... Ali jazia ele, doente, miserável, malevolente consigo mesmo; cheio de ódio para com os impulsos da vida, cheio de suspeita de tudo o que ainda era forte e feliz. Numa palavra, era “cristão”... Para falar em termos fisiológicos: na luta contra o animal, torna-lo doente é talvez o único meio de enfraquecê-lo. A Igreja compreendeu isso perfeitamente: ela perverteu o homem, tornou-o fraco – mas reivindicou o mérito de tê-lo tornado “melhor” (CI, Os “melhoradores” da humanidade , § 2) Como podemos ver, pouco importa que estas noções: “Deus”, “alma”, “pecado”, “moral”, “mundo além”, sejam ou não verdadeiras. Uma configuração de forças não é “verdadeira” a princípio. Não haveria qualquer critério extrínseco para determinar isso. Toda configuração de forças é perspectiva, aparente, fictícia,
por não haver uma realidade “em si” à qual ela possa corresponder. E é justamente pelo grande investimento de força que a faz crescer mais e mais em poder, que conseguirá se impor, seja pela força, pela sedução, ou pela eficácia que consegue demonstrar para determinados fins, como verdadeira. Uma vez produzida, uma configuração de forças qualquer, já atua efetivamente na rede como força em jogo. Pelo impulso intrínseco da vontade de poder, vai procurar acumular e expandir poder até o limite. Se obtém um grande sucesso, se chega a cristalizar e se tornar crença, vai passar a monopolizar as possibilidades de articulação entre forças e procurar se impor como verdadeira e boa em si. Por isso, as noções de “Deus”, “alma”, “pecado”, “moral”, “mundo além”, embora sejam necessariamente fictícias, e não verdadeiras em si como se vendem, operam dominações efetivas neste mundo aqui, movimentam efetivamente a balança de poderes, mobilizam massas, enfraquecem poderosos. Como as forças estão interconectadas em rede, não há uma separação a priori entre “físico” e “mental”. Há sempre configurações complexas compostas de forças de todas as ordens – biológicas, físicas, químicas, climáticas, econômicas, emocionais, culturais, intelectuais, etc. Portanto, embora estas noções moralísticas sejam, conforme costumamos dizer, “puramente imaginárias”, como coloca Nietzsche – Nada senão causas imaginárias (“Deus”, “alma”, “eu”, “espírito”, “livre arbítrio” – ou também “cativo”); nada senão efeitos imaginários (“pecado”, “salvação”, “graça”, “castigo”, “perdão dos pecados”). Um comércio entre seres imaginários (“Deus”, “espíritos”, “almas”); uma ciência natural imaginária (antropocêntrica; total ausência do conceito de causas naturais); uma psicologia imaginária (apenas mal-entendidos sobre si, interpretações de sentimentos gerais agradáveis ou desagradáveis – dos estados do nervus sympathicus , por exemplo – com ajuda da linguagem de sinais da idiossincrasia moral-religiosa – “arrependimento”, “remorso”, “tentação do Demônio”, “presença de Deus”); uma teleologia imaginária (“o reino de Deus”, “o juízo final”, “a vida eterna”) (AC, § 15)