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Guias e Dicas
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1968: O ano que não terminou | bibliopedra, Notas de aula de Teatro

1968: O ano que não terminou. Zuenir Carlos Ventura. Revisão de originais e tipográfica SOLANGE D' ALMEIDA TELLES. PAULO CESAR CORGA DE ARAUJO.

Tipologia: Notas de aula

2022

Compartilhado em 07/11/2022

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1968: O ano que não terminou
Zuenir Carlos Ventura
Revisão de originais e tipográfica SOLANGE D' ALMEIDA TELLES
PAULO CESAR CORGA DE ARAUJO
CIP-Brasil, Catalogação-na-fonte Sindicato Nacional dos Editores de
Livros, RJ.
Ventura, Zuenir
. Zuenir Ventura. - Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1988.
1. Brasil - Política e governo - 1968.
2. Jovens - Atividades políticas.
3. Jovens - Comportamento social.
A Mary, Mauro e Elisa, comPanheiros de viagem
A meu Pai, Por quase um século de luta
Em memória de
Leon Hirszman, Hélio Pellegrino e Joaquim Pedro de Andrade
"... Não devemos servir de exemplo a ninguém. Mas podemos servir de
lição."
(MÁRIO DE ANDRADE)
Agradecimentos
Este livro é o resultado de uma conjuração de afetos e amizades. A
Mary Ventura devo a idéia. A Sérgio Lacerda, a coragem de bancá-la.
A Fernando Pimenta, a participação especial.
A Mauro e Elisa Ventura, fico devendo o apoio moral e concreto em
todas as fases do projeto.
Gobery do Couto e Silva a papéis que obteve da Biblioteca Lyndon
Johnson permitirá aos leitores conhecer agora documentos inéditos,
como o teor da ata da histórica
sessão do Conselho de Segurança Nacional de 13 de dezembro de 68 - a
que decretou o AI-5 - e alguns relatórios secretos da CIA. Tão
precioso quanto esse material,
é o gesto de quem o cedeu. No jornalismo, onde a busca da
exclusividade e do furo costuma justificar qualquer usura, são raras
tais prodigalidades.
A Luiz Garcia, que consegue ler tão bem quanto escreve, um
agradecimento especial pelo rigor da leitura dos originais. É
possível até que, por falta de tempo, eu
não tenha atendido a todos os aperfeiçoamentos sugeridos. Que isso
não lhe seja debitado.
Há muitos a quem agradecer. Aos companheiros de trabalho - do JB, da
Escola de Comunicação da UFRJ e da Escola Superior de Desenho
Industrial - pela cobertura que
me deram durante essa minha demorada fuga para o passado. A Mário
Pontes, um reiterado obrigado pelas múltiplas contribuições. Esse
agradecimento se estende a Antoninho
de Paula, pela diagramação do livro e por muito mais do que não ficou
visível. De Claudio Bojunga e Wilson Coutinho não esqueço
o continuado estímulo e, sobretudo,
as valiosas idéias e sugestões.
A Daniel Liberato e Sylvio Romero Ferreira da Cruz, pela transcrição
das gravações, a Márcio Salgado, pela colaboração na fase inicial da
pesquisa, e a Elisa Ventura
e Bebete Martins, pela organização do material, inclusive da
bibliografia, o meu reconhecimento. Fico devendo muito à paciência
dos que se dispuseram a prestar depoimentos
para este livro e a alguns amigos que me ajudaram a tomá-los ou que
os tomaram por
mim: Alda Palma, Norma Cury, Paulo Gil Soares, Márcio Salgado,
Ricardo Lessa e, principalmente, Roberto Pumar.
Este lançamento não teria cumprido o seu prazo sem a operação que
conjugou a competência e organização de profissionais de vários
departamentos do JB: do setor de
informática à oficina. Um agradecimento especial a Xico Vargas, à
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1968: O ano que não terminou

Zuenir Carlos Ventura

Revisão de originais e tipográfica SOLANGE D' ALMEIDA TELLES PAULO CESAR CORGA DE ARAUJO CIP-Brasil, Catalogação-na-fonte Sindicato Nacional dos Editores de Livros, RJ. Ventura, Zuenir

. Zuenir Ventura. - Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1988. 1. Brasil - Política e governo - 1968. 2. Jovens - Atividades políticas. 3. Jovens - Comportamento social. A Mary, Mauro e Elisa, comPanheiros de viagem A meu Pai, Por quase um século de luta Em memória de Leon Hirszman, Hélio Pellegrino e Joaquim Pedro de Andrade "... Não devemos servir de exemplo a ninguém. Mas podemos servir de lição." (MÁRIO DE ANDRADE) Agradecimentos Este livro é o resultado de uma conjuração de afetos e amizades. A Mary Ventura devo a idéia. A Sérgio Lacerda, a coragem de bancá-la. A Fernando Pimenta, a participação especial. A Mauro e Elisa Ventura, fico devendo o apoio moral e concreto em todas as fases do projeto. Gobery do Couto e Silva a papéis que obteve da Biblioteca Lyndon Johnson permitirá aos leitores conhecer agora documentos inéditos, como o teor da ata da histórica sessão do Conselho de Segurança Nacional de 13 de dezembro de 68 - a que decretou o AI-5 - e alguns relatórios secretos da CIA. Tão precioso quanto esse material, é o gesto de quem o cedeu. No jornalismo, onde a busca da exclusividade e do furo costuma justificar qualquer usura, são raras tais prodigalidades. A Luiz Garcia, que consegue ler tão bem quanto escreve, um agradecimento especial pelo rigor da leitura dos originais. É possível até que, por falta de tempo, eu não tenha atendido a todos os aperfeiçoamentos sugeridos. Que isso não lhe seja debitado. Há muitos a quem agradecer. Aos companheiros de trabalho - do JB, da Escola de Comunicação da UFRJ e da Escola Superior de Desenho Industrial - pela cobertura que me deram durante essa minha demorada fuga para o passado. A Mário Pontes, um reiterado obrigado pelas múltiplas contribuições. Esse agradecimento se estende a Antoninho de Paula, pela diagramação do livro e por muito mais do que não ficou visível. De Claudio Bojunga e Wilson Coutinho não esqueço o continuado estímulo e, sobretudo, as valiosas idéias e sugestões. A Daniel Liberato e Sylvio Romero Ferreira da Cruz, pela transcrição das gravações, a Márcio Salgado, pela colaboração na fase inicial da pesquisa, e a Elisa Ventura e Bebete Martins, pela organização do material, inclusive da bibliografia, o meu reconhecimento. Fico devendo muito à paciência dos que se dispuseram a prestar depoimentos para este livro e a alguns amigos que me ajudaram a tomá-los ou que os tomaram por mim: Alda Palma, Norma Cury, Paulo Gil Soares, Márcio Salgado, Ricardo Lessa e, principalmente, Roberto Pumar. Este lançamento não teria cumprido o seu prazo sem a operação que conjugou a competência e organização de profissionais de vários departamentos do JB: do setor de informática à oficina. Um agradecimento especial a Xico Vargas, à

equipe do Projeto Automação - Proauto - ao Departamento de Pesquisa e à Biblioteca, a Francisco Flávio, Umberto Rio, Jurandir Ventura, Márcio Barroso, João Diniz, Accácio M. Teixeira, Márcia Abreu do Nascimento, Marcos Antonio M. de Souza, enfim a todos os companheiros do PCP, do Processamento e da Fotomecânica. Minha gratidão ao carinho com que dois extraordinários profissionais cuidaram criativamente da revisão: Solange D' Almeida Telles e Paulo Cesar Corga de Araujo. Não há como deixar de registrar uma dívida interna para com alguns modelos desse, digamos, jornalismo de reconstrução, gênero no qual, se não fosse a pretensão, gostaria de incluir o meu livro. São hoje fontes de inspiração e sugestão trabalhos como A sangue frio, de Truman Capote, O assassinato de Lorca, de Ian Gibson, A rive gauche, de Herbert R. Lotman, e o admirável Olga, de Fernando Morais, para só citar alguns. Nesse quase um ano de trabalho, muitos foram os empréstimos, doações e indicações - de revistas, jornais, discos e livros raros. Por isto, agradeço em especial a Artur Xexéo, Etevaldo Dias, Alberto Rajão, Alfredo Machado, Maria Costa Pinto, Alesandro Porro, Mauro Malin, Tárik de Souza, Humberto Werneck e Joaquim Ferreira dos Santos. Além dos citados, o meu reconhecímento aos seguintes amigos, pelo estímulo eou ajuda: Ancelmo Gois, Ângela Maria de Aquino Saraiva, Beto Costa Souza/Paulo Markun/TV Cultura de São Paulo, Carlos Alberto M. Pereira, Ceres Feijó, Eliane Leite de Souza, Geneton Moraes Neto, Guguta Brandão, Iesa Rodrigues, João Batista Ferreira, João Manoel Cardoso de Melo, José Antônio Ventura, Liana Aureliano, Luís Eduardo Conde, Macksen Luiz, Marcelo Pontes, Márcia Cezimbra, Maurício Ferreira dos Santos, Maurício Stycer, Mílton Temer, Miriam Leitão, Muniz Sodré, Ricardo El-Jaick, Ricardo Osman, Roberto Benevides, Susana Schild, Teté Muniz, Zinota Erthal, Ziraldo. O livro sai sem prefácio. Ele seria feito por quem mais me estimulou a realizar esse projeto: Hélio Pellegrino. Pouco antes de morrer, Hélio lembrou-se de que há quase 20 anos, na cadeia do Regimento de Cavalaria Marechal Caetano de Faria, onde estávamos, eu o presenteara com o livro Cem anos de solidão, com a seguinte dedicatória: "A Hélio, um homem aberto com quem eu fecho." É a dedicatória que eu repetiria para ele neste livro.

1968: O ano que não terminou

Introdução

A nossa história começa com um réveiZlon e termina com algo parecido a uma ressaca - ressaca de uma geração e de uma época. Entre os dois, o Brasil e o mundo viveram um tempo apaixonado e apaixonante. É possível que 1968 não seja, como querem alguns de seus hagiólogos, o ano zero de uma nova modernidade, embora os estudantes franceses já tivessem avisado, na época, que era apenas o começo: "Ce n'est q'un début", advertiam os muros de Paris. O sociólogo Edgar Morin, que acompanhou o maio francês e em seguida veio ver nossas passeatas, falou em "êxtase da História". Seu colega mais velho, Raymond Aron, assustou-se com a "demência coletiva", para mais tarde admitir que aquele "psicodrama coletivo" - outra de suas classificações

não confiar em nínguém com mais de 30 anos. Entre outras originalidades, ela acabou nos ensinando, talvez sem querer, que uma geração não é feita de idades, e sim de afinidades. Por isso, podia comportar um psicanalista de meia-idade, um garoto de 14 anos como Cesinha, cuja saga consta deste livro, e um velho de 76 como Tristão de Athayde, isto é, Alceu Amoroso Lima, que defendia a nova "cruzada das crianças" com entusíasmo juvenil. O que mais impressíonava o político e psícanalista Hélio Pellegrino era o sentido ético desses jovens. Ele dava como exemplo o seu comportamento durante a guerra suja que se seguiü a 68: "Conhecem-se deles muitas e inadmissíveis loucuras, inclusive execuções, mas nenhum ato de turtura." Esta, porém, é outra história. Serão os nossos anos de chumbo, quando essa geração solar, escancarada e comunicativa, troca as ruas pela paisagem lunar da clandestinidade

  • para se enfurnar nos soturnos aparelhos, ou para mergulhar nos subterrâneos da droga. A nossa história é a de 68, ou melhor, uma das possíveis histórias de um periodo rico demais para ser apreendido em uma só visão. Por isto, aliás, é que o autor privilegiou, mais do que a própria vivência, o material de época e o testemunho dos protagonistas, sabendo como é dificil olhar para o passado sem ser assaltado pela vontade de promover um retoque aquí ou uma melhoria ali. Todo cuidado, porém, foi tomado para não se fazer como certas obras de restauração de patrimônios históricos, que mantém a fachada, mas alteram o interior. Com esta exaustiva pesquisa e o apoio de dezenas de depoimentos e entrevistas, esperamos ter realizado não uma simples devolução de fatos, mas a reconstituição dos sonhos, do imaginário, das mentalidades, dos sentimentos, do clima e do comportamento daqueles tempos de exaltação e de febre, ou, como diz um dos protagonistas, o diretor de teatro Flávio Rangel, "tempos de nó na garganta". Os nossos "heróis" são os jovens que cresceram deixando o cabelo e a imaginação crescerem. Eles amavam os Beatles e os Rolling Stones, protestavam ao som de Caetano, Chico ou Vandré, viam Gláuber e Godard, andavam com 15 a alma incendiada de paixão revolucionária e não perdoavam os pais - reais e ideológicos - por não terem evitado o golpe militar de 64. Era uma juventude que se acreditava política e achava que tudo devia se submeter ao político: o amor, o sexo, a cultura, o comportamento. Uma simples arqueologia dos fatos pode dar a impressão de que esta é uma geração falida, pois ambicionou uma revolução total e não conseguiu mais do que uma revolução cultural. Arriscando a vida pela política, ela não sabia, porém, que estava sendo salva historicamente pela ética. O conteúdo moral é a melhor herança que a geração de 68 poderia deixar para um país cada vez mais governado pela falta de memória e pela ausência de ética. 16 O rito de passagem "Não acreditava em sonhos e mais nada. Apenas a carne me ardia e nela eu me encontrava." (PAULO, o intelectual de Terra em transe) A crônica da época não lhe dedicou mais do que magras 15 linhas. Nos registros existentes, ele consta apenas como uma das inúmeras festas

que marcaram a entrada daquele distante 1968. E, no entanto, para os que viveram o que seria um banal acontecimento, ele permanece como um misterioso marco cujos símbolos e significados ocultos a memória e o tempo vão-se encarregando de descobrir, ou de criar, até obter o material com que se fazem os mitos. Não terá ocorrido com o "Réveillon da casa da Helô" o que ocorreu com outros aparentemente insignificantes mas memoráveis acontecimentos? Afinal, o Último Baile da Ilha Fiscal não mereceu da imprensa, de imediato, o justo destaque que lhe reservaria a História - ou a lenda. Ele foi dos "melhores", assegura uma das colunas sociais da época, sem porém lhe dar a correspondente importância, preferindo contemplar as razões mais füteis: "o scotch era legítimo", dizia a colunista Léa Maria; o som "combinava carnaval com iê-iê-iê" e os trajes se apresentavam variados - "smokings, longos formais, curtos mini, roupas hippies de luxo". - Além disso, o elenco de convidados era atraente: "metade gente de cinema e teatro novo; a outra metade, grupos de jovens assessores lacerdistas". 17 Ah, sim, havia também a casa: uma bela construção no alto do Jardim Botânico, toda feita com sucata de demolição - um estilo que a audácia arquitetônica de um certo Zanine inventara para se transformar logo numa moda chique. A casa parecia uma adaptção cinematográfica especialmente escolhida para aquele espetáculo. Entrava-se por um portão e logo à esquerda começava a perna mais longa do L que lhe dava forma; aí ficavam os quartos. A grande sala completava o L e fechava o terreno ao fundo. Com o muro à direita, tinha-se a impressão de estar num pátio interno espanhol. Do portão até a sala, devia-se percorrer um grande retângulo gramado, com uma bela e cinqüentenária árvore. Cada um desses detalhes topográficos ou arquitetônicos iria ter um papel importante na noite. Mas a festa, evidentemente, não foi importante apenas pelo décor. O réveillon promovido pelo casal Luís-Heloísa Buarque de Hollanda foi muito mais do que sugerem as descrições feitas no calor da hora - pelo menos para a história que se vai contar. Não que tivesse mudado o destino do país, longe dísto. Mas talvez porque condensasse e antecipasse um estado de espírito e um clima que seriam predominantes no período. A sua significação para 68 talvez seja idêntica à da famosa seqüência da festa de Terra em transe - então, a referência cultural obrigatória. Sem ela, o filme de Gláuber Rocha provavelmente não iria deixar de ganhar o prêmio especial da crítica em Cannes e nem perderia o carisma de obra-prima do cinema brasileíro. Mas certamente não sería o mesmo; da mesma forma, um dos presentes à festa, o jornalista Elio Gaspari, acha que "depois do réveillon da Helô, o Rio nunca mais foi o mesmo". Por sua composição, que incluía mais facções sociais, políticas e ideológicas do que as citadas nas colunas, a festa de Helô, tanto quanto a de Gláuber, foi vivida como a alegre metáfora - ou paródia - de uma ampla e variada aliança política, algo assim como a que o VI Congresso do Partido Comunista propusera, meses antes, para unir as "forças progressistas" a fim de lutar contra a ditadura e quem a sustentava: o imperialismo. Acreditava-se - não só nas festas - que derrubar uma era atingir o outro, e nada melhor contra os dois do que juntar no mesmo

social e política carregada de problemas - o arrocho salarial, os sindicatos sob íntervenção, uma insuportável inflação de 4~7r ao ano que Delfim Netto prometia reduzir para 25 Mas, segundo governo militar anunciava que queria restabelecer o diálogo com a sociedade e com a classe polítíca. Só por isso o ano de 68 já seria um avanço. Um personagem que viveu intensamente aqueles tempos, o diretor de teatro Flávio Rangel, manifesta, 20 anos depoís, a sensação de que havia entre 67 e 68 um malpercebido clima de abertura, uma "primavera" - que lembrava uma outra, contemporãnea, a de Praga, e que, como esta, seria abortada, ainda que sem invasão de tanques. No depoimento que deu para este livro, em dezembro de 1987, ele disse que só experimentaria clima semelhante nos anos 80. Mas voltando ao réveillon dessa frustrada abertura: encontrava-se ali uma parte considerável da inteligência brasileira que produzira, ou iria produzir do bom e do melhor. Com aqueles talentos, era possível organizar uma preciosa antologia. Com as vontades políticas ali presentes, poder-se-ia fazer a Revolução, isto é, a grande utopia daqueles tempos. Isso, evidentemente, se o processo revolucionário dependesse apenas das condições subjetivas - e os anos seguintes iriam demonstrar dramaticamente que não, que volição e revolução às vezes não passam de um trocadilho. 20 Como o Brasil de então, o réveillon de Helô tinha tudo para dar certo, a começar pela dona da casa. A professora Heloísa Buarque de Hollanda, bonita, culta e de esquerda, era mito e ícone da intelectualidade carioca dos anos 60. Com esses tempos a "Bela Mestra" iria fazer a matériaprima de sua tese de doutorado uma década depois. Misturando duas viagens - a sua e a da História -, o seu trabalho ensinaria ao meio acadêmico que saber e competência não precisam ser chatos. A organização da festa, entregue a uma comissão, ou a um "coletivo", como era de bom-tom dizer, parecia perfeita. Na verdade não foi: havia mais motivação do que competência, como aliás em tudo o que se organizava então. É bem verdade que os convites eram à prova de falsificação. Um dos organizadores, o editor Sérgio Lacerda, na época o principal diretor da Datamec, uma empresa de processamento de dados, informatizou os ingressos, personalizandoos. Mas nem isso adiantou. Lá pelas tantas, Luís Buarque, diante da iminente invasão, baixou uma ordem para o porteiro: "Se não estiver nu, deixa entrar." A anfitriã e um elenco de outras estrelas da época Maria Clara, Marília, Maria Lúcia, Glória, Dílmen tomaram as providências indispensáveis. O som foi alugado na Josias. Para entrar, além do convite personalizado, ficou decidido que cada casal deveria levar uma garrafa de scotch, ou uma quantia correspondente a ser usada na preparação da comida e no conserto de eventuais estragos patrimoniais. Alguém, no início da noite, porém, teve a intuição de que um dos dois

  • a festa, não ainda o país - corria um certo risco. O jovem advogado Rui Solberg, que ajudara na organização, chegou cedo, com sua mulher Glória Mariani, e pediu dois uísques. Era só "para começar", uma espécie de entrada a uma noite que se anunciava longa e promissora. Quando atenderam ao pedido, ocupando-lhe as mãos com duas garrafas de uísque escocês, ele levou um susto. Pensou: "Isto não vai dar certo." Veterano

de festas, Rui não se lembrava de jamais, em qualquer delas, ter sido presenteado com duas garrafas ao pedir duas doses. Apesar do exagero da oferta, Rui não devolveu as garrafas, graças ao que tem hoje apenas lembranças vagas do que fez naquela noite - ou, mais precisamente, do que 21 lhe fizeram. Recorda-se confusamente, por exemplo, de que foi "seqüestrado" para um canto deserto da casa por uma das jovens mais atraentes da festa e daqueles tempos. Sem esforço, quase contra a vontade - se a expressão no caso não fosse uma impropriedade -, Rui fora premiado com um dos tesouros da noite, mas não só ele. Muitas das reminiscências da festa registram o mesmo episódio repetindo-se com outras bem- aventuradas vítimas. Nem todos, porém, se embriagaram. Gláuber Rocha, por exemplo, que não dançava e quase não bebia - as drogas, mesmo a maconha, ainda não freqüentavam oficialmente as reuniões sociais -, preferiu se divertir atiçando discussões entre os grupos. A sua cabeça estava ocupada em parte com a infindável polêmica suscitada por Terra em transe e em parte com o novo projeto para 68, O dragão da maldade contra o santo guerreiro. Seria difícil repetir o sucesso artístico do ano anterior, mas qualquer que fosse a qualidade do resultado, tinha-se a garantia de alguns meses de apaixonadas discussões e generalizadas controvérsias. Ninguém depois de Gláuber, nem mesmo José Celso Martinez Corrêa, nem Caetano Veloso, dois mestres na arte da agitação cultural, possuiu idêntica capacidade de desarrumar convicções estabelecidas - e de aglutinar ódios e paixões. Ele era um dos principais pólos de atração da festa e do país naquele momento, e até morrer. em 82, Outros, apesar da importância, eram menos notados, como Geraldo Vandré. Esbarrava-se com o ainda pouco conhecido compositor sem se desconfiar de que ele viria a ser um dos personagens mais notórios do ano que começava. Ao contrário do que ensinaria sua famosa canção "quem sabe faz a hora, não espera acontecer" , ele não soube fazer a sua na festa. Imobilizou Millôr durante horas num canto da sala, com uma discussão meio sem sentido, e foi por isso o responsável pelo humorista ter sido, como brinca, "o único a não arranjar ninguém naquela festa". Em compensação, Millôr sente até hoje prazer em dizer: "Ele é o autor da nossa Marselhesa, o nosso autêntico hino nacional." Num canto da sala, o editor Ênio Silveira parecia se exaltar com o artista plástico Carlos Vergara. Não era preciso estar perto para adivinhar o conteúdo de uma 22 discussão que envolvia um prócer do PC - responsável por alguns dos mais significativos lançamentos da época - líder político de sua categoria, que por suas posições radicais era chamado de "Che Vergara". O bate-boca dos dois anunciava um antagonismo que iria se ampliar com o tempo: a discussão entre comunismo e anticomunismo de esquerda. Regada pelo legítimo e generoso scotch, a demorada troca de idéias - talvez mais de insultos do que de idéias - encerrou-se com um edificante diálogo que muitos puderam apreciar:

  • Os novos tempos vão exigir muita macheza política

mistérios em público, apenas sugeria. Vivia-se apenas o começo das mutações antropológicas que se iam tornar nítidas mais adiante: a ambigüidade sexual, os cabelos masculinos mais compridos, a confusão de papéis, uma certa indiferenciação dos signos aparentes dos sexos, o declínio do macho. Maria Lúcia falou com algumas pessoas, distribuiu sorrisos, mas nem todos puderam admirá-la mais demoradamente. Pouco depois da meia- noite, sangrando, era conduzída por um amigo para a farmácia Noite e Dia, em Copacabana. Foi tudo muito rápido. A aparíção dançava com a novidade daquele verão carioca, um forasteíro egípcio que, por ser também judeu, ganhou dos seus rivais um apelido retirado da incomum combinação étnica: "contradição ambulante". Dizia-se que era muito rico e contavam-se histórias 24 mirabolantes a seu respeito. Ao certo, sabia-se que no Charles tinha uma cara estranhamente bela e um nome com rima e escondia-se aliteração, desde que pronunciado à francesa: Soli Levi. Até onde se podia ver, o par dançava como se estivesse não disputando um concurso de bom comportamento; nem de rostos colados estavam. De repente, ela avistou o marido vindo em sua direção. Estava transtornado. Sem dizer uma palavra, puxou-a pelo braço e desferiu-lhe uma bofetada - a mais sonora e indevida de uma noite que iria assistir a muitas outras. Além de sonoro e indevido, o bofetão fora sobretudo inesperado. A bela atriz e o marido, o cineasta Gustavo Dahl, formavam o primeiro "casal moderno" surgido no olimpo as versões carioca. Por "moderno", devia-se entender a disposição para experiências existenciais que poderiam incluir casos e aventuras extraconjugais. Como todos os seguidores desta princesa", de vanguarda, que procurava com um comportamento novo subverter as bases do casamento burguês, a atriz e seu diretor haviam estabelecido um pacto que previa e preservava a autonomia de cada um. Os dois se davam o direito ao que a convenção chamava de infidelidade, desde que confessada, sem mentiras e segredos. A infidelidade não deveriasuprimir a lealdade, mas não deveria também incluir a paixão. Sem as noções de ciúme e de traição, valores considerados fetiches da moral burguesa, as relações amorosas apenas ganhariam em consistência e solidez; se não ganhassem, era porque estavam baseadas em laços de convenção e preconceito, logo, não valiam a pena. Essa geração iria experimen tar os limites não apenas na política, mas também no comportamento. Daí a surpresa da agressão. "Logo eles!?" - foi o que mais ou menos todo mundo comentou. Antes de saírem de casa, o marido tentara impor uma restrição: que ela não dançasse com aquele egípcio que, nos últimos meses, vinha operando uma devastação nos corações que freqüentavam a praia. Mas essa era uma cláusula de última hora, um casuísmo posterior ao verdadeiro pacto. De mais a mais, ela acabara de surpreender o marido beijando uma moça na cozinha. Mais tarde, já em 83, o belo alvo da talvez primeira

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bofetada do ano de 1968 transporia o incidente para o seu primeiro

livro - Quem não ouve o seu papai, um dia... balança e cai -, uma deliciosa mistura de memória e ficção. Naquelas jovens cabeças revolucionárias, nem sempre ao discurso libertário correspondia uma prática liberal. Tentava-se dominar a emoção como se ela fosse um animal domestícável. O resultado costumava se apresentar carregado de contradições, como as do incidente daquela noite, Mas não seria tudo isso natural? Não era próprio das revoluções, inclusive as comportamentais, a convivência numa etapa inicial do novo que se impõe com o arcaico que resiste? O fato é que o casamento moderno da atriz com o cineasta terminou ao som daquela bofetada e nunca maispôde ser refeito. Fícou como um marco: foi o primeiro de uma série de 17 casamentos - modernos ou não - que se desfizeram naquela noite ou em conseqüência dela. Essa não foi, como se disse, a única briga da festa. Houve um momento em que quase todos os presentes, de alguma maneira, apanharam ou bateram - e até hoje não sabem bem por quê. Sabe-se que a briga começou por causa de um desentendimento bobo entre o cineasta Afonso Beato e o jornalista Henrique Coutinho, com uma pequena e involuntária sobra para Luci Barreto, que dançava. Seu marido, Luís Carlos, estava no jardim quando lhe disseram qualquer coísa como: "Sua mulher está lá dentro apanhando." O primeiro safanão foi para o próprio ínformante. "Eu entrei no salão feito um trator, batendo em todo mundo e apanhando de todo mundo", recorda Barreto. "Não sei em quem bati, nem quem me bateu." Uma das poucas pessoas sóbrias da festa era o jovem Antônio Calmon, assistente de Gláuber Rocha. Como bebia pouco e não ousava levar maconha para um lugar daqueles, pôde ser um bom observador. O que mais o impressionou foi o comportamento de uma das suas duas acompanhantes, uma líder estudantil, da AP, organização de tendênçia maoísta que ainda iria dar muito trabalho. A bebida teve sobre ela um efeito liberador que atuou mais sobre a linguagem do que sobre a libido. Boa parte da 26 festa ela passou deitada no chão, gritando sem sucesso: "Eu quero trepar! Eu quero trepar!" Essa seqüência um dia Calmon ainda põe num filme: "A briga ia até a porta, voltava, atropelava a líder da AP e a oferta continuava." Sejá estivesse em voga a citação de clichês psicanalíticos, alguém certamente catalogaria a cena como o desejo da fala suplantando o do falo. Aliás, a presença do palavrão nos teatros, nos salões, nos livros foi um dos fenômenos de

  1. Ziraldo chegou a usar o marketing da raridade para lançar uma peça: "É a única peça sem palavrão do teatro brasileiro", anunciou. Ao contrário da seguinte, aquela era uma geração tagarela, como se verá num capítulo desta história. O dono da casa, por outras razões, também não bebeu: ficou o tempo todo tentando salvar o aparelho de som alugado e o seu patrimônio, sem sucesso. "A casa ficou inteiramente destruída", lamenta até hoje Luís. Ainda bem que as cerca de mil pessoas que ele calcula terem passado por lá naquela noite, quebrando móveis e danificando a reserva ecológica da casa, a árvore, não foram suficientes para liquidar todo o uísque. Sobraram umas 100 garrafas, que foram vendidas para pagar parte da reforma geral. Às 6 da manhã, duas horas antes de a festa acabar, Luís assistiu à repetição da cena da amiga de Calmon: uma outra moça expressava idêntico desejo, deitada

entre 20 e 30 anos - consistia em questionar os valores institucionais que davam sustentação ao que chamavam com desdém de "casamento burguês": a monogamia, a fidelidade, o ciúme, a virgindade. Na prática, isso significava para elas deixar a confortável condição de apêndice econômico, a segurança psicológica de um lar, e partir para a arriscada aventura da experimentação existencial, que se podia traduzir na busca de uma profissão, em novas e descomprometidas relações, ou, às vezes, em um mergulho na solidão. Só issojá faria de 68 um ano marcante no destino dessa 29 geração, que se autodenominava orgulhosamente de "pra frente".

  • Foi o anu mais importante de minha vida", lembra-se Marília, cuja família, "aparentemente feliz, glamourosa e endinheirada", se desmoronara completamente, a família a que se refere era a mãe, que se matou em 68, e o pai, que morrera um ano antes. Descasadas e descapitalizadas, Marília e Maria Lúcia estavam prontas para ingressar na crescente vanguarda, cujo modelo mais notório ficaria sendo, um ano depois, a atriz Leila Díniz, com uma entrevista-manifesto no Pasquim que escandalizou o país. A disposição dessas jovens mulheres era, pelo menos, não repetir o erro de suas mães. Elas não queriam ser tão infelizes quanto julgavam ter sido a geração anterior. Se os exemplares mais estabelecidos da geração tentavam subverter o casamento pela sua destruição, outros, mais novos, começavam a experimentar formas alternativas de relacionamento que não reedítassem os compromissos matrimoniais impostos pela convenção. Na noite do réueillor, enquanto na casa de Helô casais se desfazíam, um se formava num apartamento da Zona Sul do Rio. Ele tinha 14 anos incompletos, ela, 16, e iam viver sua primeira experiência sexual - os dois eram virgens. César Queirós Benjamin - Cesinha - cursava a 4a série no Colégio de Aplicação da UFRJ, a escola secundária que formou grande parte da liderança estudantil carioca. Dessa primeira noite de amor nasceu uma relação que durou até que a Revolução os separasse, em 1971. Neste ano, e já promissor quadro revolucionário com uma folha corrida que incluía vários assaltos a bancos e a participação no seqüestro de um embaixador, Cesinha seria mandado por sua organização
  • o MR-8 - para o interior da Bahia, enquanto Cláudia, a namorada, ia para o Chile. No dia 30 de agosto desse mesmo ano ele caía nas mãos da polícia. Poucos, como o precoce Cesinha, levariam a experimentação política tão longe. O que havia de comum entre o grupo de Cesinha e o daS Marílias, a Marias Claras. Marias Lúcias, Glórias, era a vontade de experimentar - uns na política, outros no comportamento. Experimentava-se em todas as áreas, quase sempre 30 pelo simples prazer da descoberta. Quando se pergunta a Caetano Veloso o que o levou a resgatar Roberto Carlos, rei do ié-iê-iê, e, principalmente, a interpretar Coração matere no, de Vicente Celestino, um monumento ao mau gosto, ele responde: "Pela curtição da descoberta em mim mesmo de poder gostar daquilo." A sua liberdade de "conhecer uma beleza que passa primeiro pelo feio" foí, aliás, uma experimentação revolucionária, que ajudou a criar um

fenômeno na época: a valorização estética do kitsch. a "Foi o ano em que experimentamos todos os limites" - lembra-se Cesinha - "em que as moças começaram a tomar a pílula, que sentamos na Rio Branco, que fomos para as portas das fábricas, que redefinimos os padrões de comportamento." Parte dessa geração queria "trazer a política para o comportamento" e parte procurava levar o comportamento para a política. Um neo-existencialismo não pressentido na época convencia aquela juventude a rejeitar uma secular esquizofrenia cultural que separava política e existência, arte e vida, teoria e prática, discurso e ação, pensamento e obra. Essa talvez tenha sido a grande ruptura com a geração anterior

  • e uma das mais dificeis realizações de 68, principalmente para as "revolucíonárias" do comportamento. Como essas jovens sabiam mais o que não queriam do que o que queriam, o seu projeto existencial acabou rejeitando e pretendendo, mais do que afirmando. Com um discurso muitas vezes ambíguo e uma ação quase sempre contraditória, buscavam a felicidade como se buscava tudo naquele momento: pela mágica da revolução. As mutações desses tempos de ruptura deveriam passar pela destruição do que viera antes - fossem tabus, resistências, preconceitos, mas também os legados da emoção. Agiam como se à vontade correspondesse sempre o desejo. Marílic e O marido, por exemplo, agiam COm a maior liberdade, mas, como ela diz, guardavam "ciúmes eternos". "A teoria era uma coisa e o coração, outra. Era a ílusão de que se podia driblar a emoção." Como dizia o colunista Telmo Martino, "a teoria era Genetica a prática, feydeao". Mesmo para uma época em que tudo era considerado possível, até a conquista da Lua, dar racionalidade à emoção era ambição demais para uma geração só. Daí 31

porque essa vanguarda, a exemplo da política, não chegou a arrebatar as massas na pré-história do feminismo. Mas nem por isso deixa de ser menos sígnificativo o seu gesto, nem menos conseqüente, a longo prazo, o seu esforço. "A gente estava ensaiando para o que de fato aconteceu depois", reconhece Marília. Foi um ensaio cheio de erros e correções, mas sem o qual não teria havido o grande avanço posterior. Como movimento político, 68 pode não ter sido, como se verá, um exemplo de eficácia; do ponto de vista do comportamento, no entanto, mesmo no Brasil, seus efeitos se fazem sentir inclusive hoje, ou pelo menos até o momento em que a AIDS passou a liderar a contra-revolução. Essas mulheres, porém, pagaram um preço por essa atitude de "vanguarda". Bonitas, inteligentes, bemsucedidas profissionalmente, hoje em dia constatam o que a ensaísta

falava-se e escrevia-se mais do que se fazia sexo. Como em geral só se fala de liberdade na sua ausência, a liberação era mais aparente do que real. Na época, no entanto, muitos se assustavam com seus efeitos, embora outros não apostassem nem um pouco em seu futuro. Quando a butique Justine, em Ipanema, resolveu lançar blusas e vestidos transparentes - que as moças começaram usando com malhas cor da pele - a revista Veja previu: "Não vai pegar. Sem sutiã não vai pegar." Em compensação, o cronista Nélson Rodrigues, um dos maiores críticos dos novos costumes, achava que as coisas tinham chegado a tal ponto que a liberdade sexual abolira o ciúme das relações amorosas. Com impagável exagero, escrevia: "O sexo só mata na manchete de O Dia e da Luta Democrática." O marido moderno, segundo ele, não só era "o primeiro a saber", como às vezes sabia "antes do pecado". O amor, depois de Freud, tinha virado doença, na cabeça de Nélson. A nudez acabara com o interesse pelo corpo feminino. O que ele chamava de nudez eram os biquínis, com cada um dos quais se poderia confeccionar hoje uns três fios dentais. O cronista escrevia: Como é triste o nu que ninguém pediu, que ninguém quer ver, que não espanta ninguém. O biquíni vai comprar grapete e o crioulo da carrocinha tem o maíor tédio visual pela plástica nada misteriosa. E aí começa a expiação da nudez sem amor: a inconsolável solidão da mulher. A onda de educação sexual inspirou a Nélson algumas de suas mais deliciosas crónicas. Se na época elas irritavam pelo reacionarismo, hoje divertem pelo humor e o exagero, 34 como aquela em que, numa hipotética reunião de pais de alunos, a madre liberada explica por que no seu colégio a educação sexual começava aos quatro anos de idade. A criança tinha que aprender que fazer sexo é tão natural "como beber um copo d'água". Afinal, como a freira argumentava, "ser prostituta é uma profissão como outra qualquer". Na verdade, as coisas eram mais complicadas do que a caricatura que delas faziam os conservadores. A pílula anticoncepcional conseguia de fato acelerar as mudanças de comportamento da mulher brasileira, mas o processo não atingia todas as classes sociais. Contra a pílula havia resistências que iam do temor natural dos seus efeitos, não de todo conhecidos, até o preconceito que via nela um instrumento de promoção da promiscuidade. Em outubro, ao desmantelar o congresso da UNE em Ibiúna, as forças policiais exibiram como troféu de guerra uma razoável quantidade de caixas de pílulas apreendidas. Como se a pílula fosse um preservativo de uso imediato como a camisinha, a polícia acreditava que a exibição provaria à opinião pública que as moças tinham ido ao encontro preparadas para algo mais do que discutir as questões estudantis. Por oposição da Igreja e por desconfiança das usuárias, a revolução da pílula custou a se popularizar. Uma pesquisa realizada no então Estado da Guanabara, entre 1965 e 67, mostrava que 76% das quatro mil mulheres ouvidas usavam todos os tipos de velhos anticoncepcionais - dos diafragmas à raspagem do útero -, menos as pílulas. Entretanto, ainda que muitas vezes escondidas nas bolsas para não serem vistas pelos pais, as pílulas funcionaram como aliadas eficazes

das vanguardas femininas, mesmo que a sua importância no processo de libertação biológica tenha sido mais percebida do que o poder de subversão que elas teriam nas relações entre o homem e a mulher, inaugurando o prazer sem o risco da procriação. Carmen da Silva foi na imprensa uma competente divulgadora da Revolução Sexual, sem que a adesão ao movimento lhe tirasse o senso crítico. Sem concessões ao intelectualismo próprio da época, a colunista de Cláudia se dirigia a um amplo público de classe média - naturalmente prudente e mais conservador - com uma sensatez muito 35 útil num momento de culto do radicalismo. Ela mostrava que as formas de pensar e exercer a sexualidade variavam não só conforme as classes sociais. mas segundo também as gerações. As mulheres de 40 anos, por exemplo, ainda estavam presas aos tabus do passado recente e a uma hipócrita santificação da maternidade, que dava ao homem o álibi de que precisava para buscar fora de casa, nos prostíbulos ou na casa das amantes, o livre exercício de sua sexualidade e de suas fantasias. Havia coisas que ele só podia fazer na rua. O dever legitimava a sexualidade dela; o direito sancionava os abusos dele. No meio desta complexidade cultural é que surgia uma geração de jovens intelectualizados, reagindo contra o tradicionalismo sexual e criando antitabus. "Em vez de realmente derrubar os mitos", lamentava Carmen, "limitam-se a virá- los do avesso." Esse antitabu tentava reduzir o sexo a uma função meramente fisiológica, como tomar um copo d'água, para usar o exemplo da freira hipotética de Nélson Rodrigues. A Revolução Sexual, na verdade, tinha trazido algumas soluções, mas criado também muitos problemas. Curiosamente, as transformações de costumes que começavam a se operar então - principalmente no campo sexual - nem sempre foram absorvidas pelas organizações políticas como um fenõmeno paralelo, convergente ou alíado. A esquerda - mesmo a radical, que sonhava com a Revolução geral - olhava para aquele movimento com a impaciência de quem é interrompido em meio a uma atividade séria pela visão ínoportuna de um ato obsceno. Manifestava um soberano desdém ideológico pelas travessuras comportamentais da geração de Leila Diniz. Outra matriz comportamental, a imperecível Danusa Leão, também sofria a mesma discriminação ideológica daqueles que falavam em nome do futuro, sem perceber o revolucionário pioneirismo desses modelos que já anunciavam os anos 80. Neste sentido, e infelizmente não só neste, a percepção da direita foi mais, digamos, dialética - como puderam comprovar a própria Leila, Caetano, Gil e outros da chamada esquerda "alienada". Ao perseguir Leila pela sua conduta moral ou ao raspar os caracóis dos cabelos de Caetano na cadeia, logo depois do AI-5, a repressão ensinou à esquerda, que vaiara o compositor dois meses antes, que tínha uma 36 visão mais ampla daquilo que podia não parecer, mas era também subversão. Portanto, não é de estranhar que muitas "revolucionárias" de então vivessem uma ambigüidade que a distância pode injustamente parecer cínica. Marília se lembra do conselho de sua companheira de vanguarda Heloísa Buarque: "A gente tem que fingir que dá para os caras, mas a gente não tem que dar para

anosc a Revolução triunfaria, ele acreditava, e tudo voltaria ao normal. O aparecimento de Iara inundou a sua vida de paixão e de culpa. "Ele se martirizava com isso", relatam os autores de sua melhor biografia. Lamarca se perguntava "Não seria sacanagem? Mandar a mulher para longe depois arranjar outra..." A retrógrada moral da organização chegava ao ponto de se preocupar "com o que a repressão vai dizer": certamente iriam acusá-lo de, além de traidor do Exércíto, ser também traidor da esposa. A intolerância da esquerda, de todas as esquerdas, era ainda maior quando essas liberalidades de costumes ameaçavam tabus como a prática do homossexualismo ou experimentação de drogas. Fernando Gabeira, que viria a ser um especialista no tema, acredita que a própria concepção de revolução e um 38

certo conteúdo religioso da prática política foram responsáveis pelas resistências aos avanços nesse campo: "Pensavase que com a mudança da sociedade todos os problemas seriam resolvidos." Enquanto isso, permanecia "o conflito entre o pessoal e o coletivo". Segundo ele, não era fácil admitir, nos grupos armados, que os problemas pessoais pudessem ser problemas políticos. Alguns pioneiros de 68 tiveram que enfrentar as mais severas discriminações por parte das nossas elites pré-revolucionárias, sobretudo quando aliavam à militância política a prática do homossexualismo. Se às duas ainda associavam o uso de drogas, viravam então seres politicamente desprezíveis. Quando se recorda o escândalo que já no início dos anos 80 o próprio Gabeira provocou, tentando atualizar a moral comunista - "aquela bicha da tanga lilás", como a ele se referiam algumas das melhores cabeças esquerdistas -, pode- se ter uma vaga idéia do que passaram os precursores. "Você não pode imaginar o que sofria uma pessoa como eu que era comunista, homossexual e transava droga", lembra-se Luís Carlos Lacerda. Com 22 anos em 68, Bigode era de fato um intrépido vanguardista. Filho de pai comunista e militante do PC desde a adolescência, ele tivera aos 16 anos um caso de amor com o escritor Lúcio Cardoso sobre quem fez o seu documentário de estréia, O enfeitiçado, em 68, ano aliás em que morreu o romancista. Lúcio, excelente escritor, era um maldito para as esquerdas. Além de homossexual, era católico; além de católico, escrevia romances de introspecção psicológica, quando se exigiam romances sociais. Se não bastasse, era anticomunista. "Esses comunistas não estão com nada", costumava dizer. Um ano após essa experiência homossexual, Bigode provou o seu primeiro cigarro de maconha, um hábito então só reservado aos marginais de baixa extração social. Ele achava que podia ser ao mesmo tempo comunista, homossexual e consumidor de droga, por que não? "Eu não me conformava em transar essas coisas de maneira clandestina, eu não tinha noção de pecado." O problema é que o PC tinha, e ele acabou tendo que abandonar a base na qual militava. Uma de suas decepções

39 foi reveladora da hipocrisia e do moralismo que o cercavam. Um dia ele chegou em casa com um livro de poemas prefaciado por Walmir Ayala. Estava lá um dirigente do PC, amigo de seu pai, que se interessou em dar uma olhada. Pegou o livro, folheou,

viu logo a assinatura do prefácio e disparou um inflamado discurso. Que todo cuidado fosse pouco com esses elementos dissolutos típicos do capitalismo decadente. Isso mesmo: o homossexualismo era uma doença da burguesia. Evidentemente, ele queria chamar a atenção do pai para as más companhias do jovem filho. Bigode ficou enfurecido, mas não disse nada. A forra viria por acaso. Alguns anos depois, estando na casa do autor do prefácio, eis quem chega? O autor do discurso indignado. "Tudo mentira, que hipócrita!", pensou Bigode, mas outra vez não disse nada. Só que naquele momento resolveu transformar a sua revolta num impiedoso e bem-sucedido plano de sedução - que lhe deu, depois, o prazer de tripudiar sobre sua conquista: "Que tal a doença da burguesia?" Na época, o futuro diretor de Leila Diniz era assistente de Nélson Pereira dos Santos, com quem trabalhara no ano anterior em Fome de amor, rodado em Angra dos Reis. Lançado em 68, o filme não foi bem recebido e muitos, inclusive Gláuber Rocha, atribuíram seus desacertos à "equipe de drogados". Na verdade, o único drogado era Bigode, segundo quem a esquerda atribuía todos os males às drogas. "Em Angra, eu fumava escondido até do Arduíno Colasanti, que depois virou guru das drogas." Bigode, como assistente de Nélson, e Antõnio Calmon, como assistente de Gláuber, desmentiriam, se fosse preciso, a crença muito divulgada pela repressão de que os jovens de então eram manipulados pelos mais velhos. Esses dois discípulos, rebeldes à orientação comportamental dos maiores monstros sagrados do cinema brasileiro, empunharam bandeiras próprias e chegaram até a tentar "desencaminhar" seus mestres, convencendo-os de que deveriam, pelo menos uma vez, "como experiência", provar drogas. "Eu tinha essa coisa militante, achava que tinha que aplicar às pessoas", confessa Bigode. "Quem apresentou maconha para o Nélson fui eu. Eu achava que era um ato ideológico, que a Revolução ia se dar por aí." 40 Aos 23 anos, Antônio Calmon era mais do que um simples assistente de direção de Gláuber Rocha - era uma espécie de filho espiritual a quem um pai protestante e moralista paternalizava e cujas ações reprimia, com a rigidez e severidade de quem usava a palavra homossexual como xingamento e acreditava que as drogas eram o resultado de uma diabólica operação da CIA para corromper a juventude do Terceiro Mundo. Durante muito tempo Calmon se divertiu com essa teoria conspiratória do seu guru. Em 64, ainda garoto, quando fez sua primeira experiência com droga, ele sofreu o que chama de "um ritual de aplicação de maconha, inclusive com livrinhos para colorir". Os seus iniciadores eram uns americanos estranhos que desembarcaram aqui no início dos anos 60. Muito tempo depois, alguém encontrou o grupo na Califórnia, numa seita de magia negra de extrema-direita. Para os que gostavam de atribuir a Gláuber poderes de profeta, a história servia para confirmar mais essa profecia: a de que a entrada das drogas nos meios intelectuais brasileiros era obra da CIA. Com uma militância política que vinha de seus tempos do Colégio de Aplicação, Calmon participava de assembléias e passeatas, mas em 68 estava meio desiludido: "Eu tinha perdido a fé na política." Por isso, quando Gláuber o chamou