Docsity
Docsity

Prepare-se para as provas
Prepare-se para as provas

Estude fácil! Tem muito documento disponível na Docsity


Ganhe pontos para baixar
Ganhe pontos para baixar

Ganhe pontos ajudando outros esrudantes ou compre um plano Premium


Guias e Dicas
Guias e Dicas

Relações de Poder na Sala de Aula: Percepções de Alunos do Ensino Médio em BH, Trabalhos de Ciências da Educação

Uma análise do discurso de alunos de escolas públicas e privadas de belo horizonte sobre aspectos ideológicos e relações de poder na sala de aula. A pesquisa se baseia na transcrição de entrevistas e utiliza o tcbq (questionário de comportamento do professor) para avaliar as dimensões presentes na comunicação do professor na sala de aula. Os resultados mostram uma ambivalência nas relações de poder, com percepções de democratização do ensino e relações de poder igualitárias, além de relações de poder assimétricas.

Tipologia: Trabalhos

2013

Compartilhado em 18/05/2013

tamira-carvalho-9
tamira-carvalho-9 🇧🇷

1 documento

1 / 10

Toggle sidebar

Esta página não é visível na pré-visualização

Não perca as partes importantes!

bg1
Educação Unisinos
16(2):179-188, maio/agosto 2012
© 2012 by Unisinos - doi: 10.4013/edu.2012.162.10
Resumo: O objetivo deste trabalho é apresentar uma análise do discurso realizada a partir
de entrevistas com alunos de instituições de ensino de Belo Horizonte, enfocando aspectos
ideológicos e relações de poder presentes na sala de aula. Seu referencial teórico consiste
nas contribuições de Fairclough oriundas do campo da Análise Crítica do Discurso. Dez alunos
da primeira série do Ensino Médio de escolas públicas e privadas foram entrevistados (quatro
meninos e seis meninas). Após a transcrição, foram selecionados excertos que abordavam
relações de poder na sala de aula. Identificamos tendências predominantes no discurso dos
alunos, elaborando as seguintes categorias: (a) papel do professor, (b) avaliação, (c) padrões
de interação discursiva, (d) individualismo. Ficou evidenciada uma ambivalência no discurso
dos alunos sobre as relações de poder na sala de aula. A constituição intertextual do discurso
dos alunos aponta tanto para um discurso de democratização do ensino e relações de poder
igualitárias, quanto para um discurso de relações de poder assimétricas.
Palavras-chave: relações de poder, sala de aula, análise crítica do discurso.
Abstract: The goal of this study is to present a discourse analysis of interviews with students
of secondary schools in Belo Horizonte (Southeast Brazil). Its focus is the ideological aspects
and power relations present in the classroom. The theoretical framework is the contribution
of Fairclough to the fi eld of Critical Discourse Analysis. Ten students (four boys and six girls)
of public and private secondary institutions have been interviewed. After transcribing the
interviews, we selected quotations that address power relations in the classroom. Based on
trends that we identifi ed in the students’ discourse, we propose the following categories: (a) role
Aspectos ideológicos e relações de poder na sala de aula:
a percepção de alunos do Ensino Médio1
Ideological aspects and power relations in the classroom:
Perceptions of secondary school students
Daniel Abud Seabra Matos
danielmatos@ichs.ufop.br
Alexandre Frank Silva Kaitel
afskaitel@gmail.com
Sérgio Dias Cirino
sergiocirino99@yahoo.com
Silvania Sousa do Nascimento
silvania.nascimento@gmail.com
Danusa Munford
danusamun@gmail.com
1 Apoio: Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de Minas Gerais (FAPEMIG).
pf3
pf4
pf5
pf8
pf9
pfa

Pré-visualização parcial do texto

Baixe Relações de Poder na Sala de Aula: Percepções de Alunos do Ensino Médio em BH e outras Trabalhos em PDF para Ciências da Educação, somente na Docsity!

Educação Unisinos 16 (2):179-188, maio/agosto 2012 © 2012 by Unisinos - doi: 10.4013/edu.2012.162.

Resumo: O objetivo deste trabalho é apresentar uma análise do discurso realizada a partir de entrevistas com alunos de instituições de ensino de Belo Horizonte, enfocando aspectos ideológicos e relações de poder presentes na sala de aula. Seu referencial teórico consiste nas contribuições de Fairclough oriundas do campo da Análise Crítica do Discurso. Dez alunos da primeira série do Ensino Médio de escolas públicas e privadas foram entrevistados (quatro meninos e seis meninas). Após a transcrição, foram selecionados excertos que abordavam relações de poder na sala de aula. Identificamos tendências predominantes no discurso dos alunos, elaborando as seguintes categorias: (a) papel do professor, (b) avaliação, (c) padrões de interação discursiva, (d) individualismo. Ficou evidenciada uma ambivalência no discurso dos alunos sobre as relações de poder na sala de aula. A constituição intertextual do discurso dos alunos aponta tanto para um discurso de democratização do ensino e relações de poder igualitárias, quanto para um discurso de relações de poder assimétricas.

Palavras-chave: relações de poder, sala de aula, análise crítica do discurso.

Abstract: The goal of this study is to present a discourse analysis of interviews with students of secondary schools in Belo Horizonte (Southeast Brazil). Its focus is the ideological aspects and power relations present in the classroom. The theoretical framework is the contribution of Fairclough to the field of Critical Discourse Analysis. Ten students (four boys and six girls) of public and private secondary institutions have been interviewed. After transcribing the interviews, we selected quotations that address power relations in the classroom. Based on trends that we identified in the students’ discourse, we propose the following categories: (a) role

Aspectos ideológicos e relações de poder na sala de aula:

a percepção de alunos do Ensino Médio^1

Ideological aspects and power relations in the classroom:

Perceptions of secondary school students

Daniel Abud Seabra Matos

danielmatos@ichs.ufop.br

Alexandre Frank Silva Kaitel

afskaitel@gmail.com

Sérgio Dias Cirino

sergiocirino99@yahoo.com

Silvania Sousa do Nascimento

silvania.nascimento@gmail.com

Danusa Munford

danusamun@gmail.com

(^1) Apoio: Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de Minas Gerais (FAPEMIG).

Educação Unisinos

Daniel Matos, Alexandre Kaitel, Sérgio Cirino, Silvania Nascimento, Danusa Munford

Introdução

Nas últimas décadas, mudanças importantes foram efetuadas na educação brasileira, como o aumento significativo do número de crianças e adolescentes matriculadas nas escolas. Esta melhora no acesso às escolas, entretanto, ainda não repre- sentou uma melhora dos índices de aprendizagem e aquisição de conhe- cimentos específicos. Além disso, também percebemos desigualdades persistentes, tanto em relação às regiões brasileiras quanto em rela- ção às escolas públicas e privadas. A educação apresenta em média melhores resultados nas regiões sul e sudeste e nas escolas privadas. Para enfrentar melhor esses novos desafios e promover a inclusão de um alunado cada vez mais diverso, é fundamental compreender como certos fatores influenciam de for- ma significativa esse processo de ensino-aprendizagem. Dados acerca do rendimento acadêmico dos estu- dantes ou dos professores não são suficientes para aprimorarmos nossa compreensão desse processo. Assim, no campo educacional cresce, cada vez mais, o interesse por conhecer o que se passa nas escolas e nas salas de aula, contemplando-se as perspectivas dos vários sujeitos en- volvidos. Nesse sentido, construtos que enfocam a caracterização do contexto da aprendizagem, como o “clima escolar” (Brito e Costa, 2010) e o ambiente de aprendizagem da

sala de aula (Fraser, 1998), trazem grandes contribuições para o campo. Dentre as várias possibilidades de abordagem da sala de aula, a análise do ambiente de aprendizagem tem sido uma das opções de trabalho. Pesquisas internacionais têm se dirigido para o desenvolvimento e uso de instrumentos para avaliar o ambiente de aprendizagem da sala de aula a partir da perspectiva do aluno. Os esforços de pesquisas envolven- do a avaliação e a investigação da percepção de aspectos do ambiente de aprendizagem da sala de aula estabeleceram esta área como um produtivo campo de estudo, que tem passado por um notável crescimento, diversificação e internacionalização (Fraser e Walberg, 1991). Assim, uma característica dessa área é a disponibilidade de uma variedade de questionários desenvolvidos es- pecialmente para avaliar a percepção dos alunos a respeito do ambiente de aprendizagem da sala de aula (Fraser, 1998). No entanto, algumas questões ainda permanecem pouco explora- das sobre o ambiente de aprendi- zagem da sala de aula, tais como as percepções dos estudantes acerca das relações de poder que são construídas nesse contexto. Vários autores têm destacado a importância dessas relações nos processos de ensino-aprendizagem (por exem- plo, Bloome e Clark, 2006). Assim, o presente artigo visa analisar as percepções dos alunos acerca das

relações de poder que acontecem no ambiente de aprendizagem da sala de aula. Para atingir esse objetivo, fo- ram utilizadas entrevistas que fazem parte da dissertação desenvolvida por Matos (2006), que realizou uma adaptação e validação do questio- nário intitulado Teacher Commu- nication Behavior Questionnaire

  • TCBQ (She e Fisher, 2000) com uma amostra de 414 alunos brasi- leiros. O TCBQ analisa a percepção dos alunos a respeito do comporta- mento comunicativo do professor de Ciências e tem cinco escalas que avaliam dimensões presentes na comunicação do professor na sala de aula: Desafio (perguntas feitas pelo professor), Encorajamento e elogio, Apoio não verbal, Compreensão e relação amigável, e Controle do comportamento dos alunos. Essa dissertação utilizou métodos de pesquisa quantitativos associados a métodos qualitativos para obter uma melhor compreensão de aspectos da relação professor-aluno. A parte qualitativa da pesquisa envolveu a realização de entrevistas com alunos de escolas públicas e privadas de Belo Horizonte. Os dados dessas entrevistas foram utilizados na pro- dução do presente artigo.

Objetivo

O objetivo desse trabalho é apre- sentar uma análise do discurso re- alizada a partir de entrevistas com alunos e alunas da primeira série do

of the teacher; (b) assessment; (c) patterns of discursive interaction, (d) individualism. There is evidence of ambivalence in the students’ discourse about power relations in the classroom. The intertextuality of the students’ discourse points to a discourse of democratization at school and more egalitarian relations between teacher and students, as well as to a discourse of asymmetric power relations.

Key words: power relations, classroom, critical discourse analysis.

Educação Unisinos

Daniel Matos, Alexandre Kaitel, Sérgio Cirino, Silvania Nascimento, Danusa Munford

torização para participar da pesquisa por meio da assinatura do termo de consentimento livre e esclarecido. No total, dez alunos e alunas da primeira série do Ensino Médio, pertencentes a três escolas de Belo Horizonte, participaram de entre- vistas semiestruturadas em grupos. Foram entrevistados quatro meninos da Escola A (privada), duas meninas da Escola B (pública) e quatro meni- nas da Escola C (privada). Na entrevista, foi pedido aos integrantes do grupo que respon- dessem ao TCBQ individualmente e em silêncio. Eles foram instruídos a marcar a lápis qualquer dúvida que tivessem sobre o questionário durante a leitura. Depois, todas as dúvidas dos alunos e alunas foram discutidas em grupo. Os alunos só respondiam à entrevista semiestru- turada após responderem ao ques- tionário. O pesquisador também fez uso de um diário de campo onde anotava informações sobre as es- colas, as turmas e as condições das entrevistas. As entrevistas foram realizadas na própria escola dos alunos, em locais reservados e sem nenhuma interrupção. Todas as entrevistas foram gra- vadas em áudio e transcritas. Após a transcrição, foram selecionados excertos que abordavam relações de poder na sala de aula.

Análise do discurso:

as entrevistas com os

alunos e alunas

A partir da análise dos excertos selecionados, identificamos tendên- cias predominantes no discurso dos alunos e alunas. Isso possibilitou a

elaboração das seguintes categorias analíticas: (a) papel do professor: a percepção dos alunos em relação à posição ocupada pelo professor; (b) avaliação: percepção de aspectos avaliativos ligados a conteúdo e comportamentos; (c) padrões de interação discursiva: emergência e controle da interação discursiva na relação professor-aluno; (d) individualismo: responsabilização individual para fenômenos sociais e sobreposição do desejo individual ao projeto grupal. Os excertos a se- guir serão analisados de acordo com essas categorias. Além disso, nesses excertos será utilizada uma legenda^2 para facilitar a compreensão da transcrição^3 das falas. Consideramos que as respostas dadas correspondam às percepções dos alunos e alunas sobre relações de poder na sala de aula.

Excerto A: Entrevistador: S _obre o que a primeira parte do questioná- rio fala?

Se o professor faz perguntas pra gente, se ele usa o que a gente fala pra trabalhar a matéria. As coisas que ele exige da gente dentro de sala, o que ele está cobran- do, se ele está cobrando da gente. O nosso desempenho. A gente raciocinar também quando ... para responder as perguntas que ele faz. Raciocinar ... e responder ... fazer as perguntas para as pessoas. Está sempre cobrando do aluno. Para ver o que o aluno aprendeu também. O que ele está extraindo._ (Grupo da escola A).

Aqui podemos perceber algumas características de reprodução das re- lações de poder da nossa sociedade.

A primeira delas é a concepção de que “o professor fazer perguntas” é utilizar “o que a gente (os alu- nos e alunas) fala para trabalhar a matéria”. Este padrão aponta para uma possibilidade de participação dos alunos e alunas na construção do conhecimento não apenas como ouvintes, e sim como pessoas que vão “raciocinar ... e responder”, em consonância com um discurso educacional de democratização. Entretanto, aponta também para um discurso de relações de poder assimétricas, tanto pelo professor propor o tema ao iniciar a interação quanto por ele ter o poder de avaliar a resposta dos alunos e alunas como correta ou incorreta. Isso equivale a dizer que o controle das interações discursivas em sala de aula é exer- cido principalmente pelo professor: “pra responder as perguntas que ele (o professor) faz”. Mortimer e Scott (2003), por exemplo, destacam um padrão de interação discursiva es- pecífico do contexto de sala de aula denominado Iniciação – Resposta – Avaliação (I-R-A), onde o professor inicia a interação e depois avalia a adequação do discurso do aluno. Outro fator de reprodução é a per- cepção do papel do professor como alguém que cobra desempenho – “ver se ele tá aprendendo. O que ele tá extraindo” – e comportamentos ade- quados ao ambiente – “Tipo, ver o que que o aluno tá fazendo dentro da aula”. A escolha desses termos aponta para a concepção do professor como líder de produção, como um chefe que cobra do funcionário em uma em- presa. O caráter de condicionamento ideológico para funcionar dentro de uma sociedade capitalista aparece

(^2) Legenda: ... intervalo, pequena pausa. = sobreposição de falas.

alternância da fala entre os membros do grupo. (()) fala ininteligível. (^3) Devido a diferenças entre a linguagem escrita e a oral, em alguns casos, nas transcrições foram feitas alterações da fala dos participantes para que ela se adequasse à norma culta. Esse é um procedimento adotado por vários pesquisadores (por exemplo, Cameron, 2001).

volume 16, número 2, maio • agosto 2012

Aspectos ideológicos e relações de poder na sala de aula: a percepção de alunos do Ensino Médio

aqui. Freire (1987) nomeia essa ideologia “educação bancária”, onde os professores apenas depositam os conhecimentos nos alunos e alunas, depositários passivos. Além disso, podemos pensar que resultados ainda insatisfatórios do rendimento acadêmico colocam uma pressão nos professores, o que, associado à ideologia bancária, ajuda a explicar a postura adotada. Nas escolas privadas, geralmente, essa pressão se soma a outra (aprovação nos vestibulares de instituições federais de ensino), que incide nos alunos, alunas, professores e pro- fessoras desde cedo na vida escolar.

Excerto B: Entrevistador: _Na per- gunta 15, “Esse professor usa minhas ideias como parte da aula”, você colocou raramente. Por quê?

Tem na sala de aula, tem pessoas assim, que ... tem mais ideias, esses negócio. E tem outras pessoas que, por exemplo como eu, são mais ca- ladas, assim. E na hora de explicar [...] E na hora de usar ideia, eu não uso as ideias, quem usa mais são as pessoas que tiram nota boa._ (Aluno da escola A).

O Excerto B aponta que a nota dada pelo professor define se determinado aluno ou aluna pode colocar suas ideias em sala. Assim, a avaliação passa a ter um papel de dar poder a determinados alunos e alunas, pos- sibilitando que os melhor avaliados tenham mais voz que os pior avalia- dos. Considerando que a nota maior vai para aqueles que conseguem reproduzir o conhecimento apresen- tado, monta-se um esquema onde a paráfrase predomina em sala de aula. Fica evidente também o individu- alismo, onde o sujeito se responsa- biliza unicamente pelo que acontece com ele. O aluno considera que não participar é explicado por uma característica de sua personalidade, ser calado, e que a participação dos colegas é explicada por eles “terem

mais ideias”. Fatores sociais que também contribuem para o fenôme- no são ignorados pelo aluno. Freire (1987) aponta que “a estrutura de seu pensar se encontra condicionada pela contradição vivida na situação concreta, existencial, em que se formam” (Freire, 1987, p. 32). Essa estrutura é individualista e bancária. O autor aponta ainda que a conscien- tização do sujeito sobre sua situação concreta é passo importante para a modificação da realidade social. Não percebemos esse nível de consciên- cia no discurso dos alunos e alunas.

Excerto C: Entrevistador: _No item 30, “Esse professor é amigável co- migo”, você marcou quase sempre. Por quê?

Às vezes, ele não pode ficar dando atenção só para mim, entendeu? Ele tem que dar atenção para as outras pessoas da turma também. Cada professor tem seu ponto de vista for- mado sobre o aluno. Eu acho que... ele é amigável. É uma pessoa que entende bem as pessoas, sabe tratar. O tratamento dele é bom._ (Aluno da escola A).

Aparece no discurso do aluno a necessidade do professor “entender bem” e “saber tratar” os alunos e alunas, o que tem correspondência em um discurso educacional de relações de poder mais igualitárias. Podemos perceber também a característica pós-moderna de exa- cerbação do individualismo. O aluno explica que, “às vezes, ele não pode ficar dando atenção só para mim, en- tendeu? Ele tem que dar atenção para as outras pessoas da turma também”. Em um grupo (sala de aula) cujos objetivos comuns são formar e con- seguir conhecimentos seria natural que a atenção fosse voltada ao grupo e seu projeto. Assim, a fala do aluno “às vezes ele (o professor) não pode” passa a impressão de que o professor deveria dar atenção exclusiva às suas demandas, ou pelo menos de

que o aluno gostaria dessa forma de tratamento. Essa exacerbação do individualismo dificulta a percepção do projeto grupal e dificulta também uma postura crítica e modificadora da realidade. Além disso, dizer que “cada professor tem seu ponto de vista formado sobre o aluno” aproxima-se de uma noção de imutabilidade das relações estabelecidas. Não podendo mudar essa relação, o aluno ou aluna malvisto pode retrair-se, assumir uma posição de confronto direto ou utilizar defesas como dormir ou conversar durante as aulas. Já o aluno ou aluna bem-visto pode se acomodar nessa posição. Esta noção de imutabilidade parece dificultar o processo ensino-aprendizagem, que pressupõe mudanças tanto nos alu- nos e alunas quanto nos professores e professoras.

Excerto D: _> Ah, se eu tenho algo a dizer, ele quase nunca escuta. Ele mais presta atenção no pessoal, na galera que senta mais na frente assim. Então eu acho que, eu sento atrás da sala, mas atrás ele quase não dá atenção.

Nem na frente ele dá atenção. Eu sento na frente (()). Ele quer, ele quer explicar a ma- téria, ele explicando a matéria ele... não quer escutar o pessoal._ (Grupo da escola B).

Aqui aparece a preponderância do conteúdo sobre o interesse dos alunos, em consonância com um dis- curso tradicional não democrático. Os comentários que fizemos a respeito do Excerto A, sobre a situ- ação educacional no Brasil, servem também ao entendimento desse fragmento. Aparece também a imu- tabilidade da visão sobre os colegas, onde quem senta na frente possui algumas características diferentes dos alunos que sentam mais atrás. Podemos ainda questionar sobre o interesse dos alunos e alunas em ter

volume 16, número 2, maio • agosto 2012

Aspectos ideológicos e relações de poder na sala de aula: a percepção de alunos do Ensino Médio

Torna-se oportuno aqui retomar a forma como o conceito de hegemonia é trabalhado por Fairclough. Para esse autor, a hegemonia lida com relações de poder que são sempre atingidas por meio de um equilíbrio instável. Afirmamos também que a maior parte do discurso possui sustentação na luta hegemônica em instituições como a escola. Portanto, para pensar as relações de poder que permeiam as estruturas sociais, podemos ana- lisar, por exemplo, as relações que se estabelecem entre professores ou professoras e alunos e alunas. Na teo- ria de Fairclough, isso corresponde à articulação entre discurso e mudança social. O discurso dos alunos e alunas nas entrevistas, portanto, revela um foco de luta sobre essas questões educacionais. O discurso social e institucional por vezes encontra ressonância na fala dos alunos e alunas. Entretanto, essa posição de igualdade de condições para todos na sala de aula é contestada várias vezes. Os alunos e alunas percebem as dife- renças de interação que ocorrem na sala. Daí a afirmação de Fairclough de que a hegemonia sempre é atingi- da de maneira parcial e temporária, como um equilíbrio instável. Esse foco de luta aparece em outras falas:

Excerto E: Entrevistador: _No item 38, “Esse professor não me permite fazer coisas diferentemente daquilo que ele/ela espera”, você marcou às vezes. Por quê?

Porque nem toda vez ele permite fazer o que a gente quer. Uma opinião que a gente dá na sala. É ... talvez fi- que melhor com a nossa opinião, mas tem que ser do jeito que ele espera._ (Aluna da escola B).

Excerto F: > “Se o professor ... ele exige que a gente faça aquilo que ele deu no quadro, que ele explicou, é aquilo. Ele sempre quer que a gente faça o que ele... manda a gente fazer.

Eu entendi que... é... exige que eu siga as regras, esse negócio. Tudo que... exige. Só exigir, exigir. É isso que ela falou. Que ele exige tudo que ele pas- sou, a gente tem que fazer igualzinho ele fez.” (Grupo da escola B).

Aqui, o estabelecimento da di- cotomia anomia/regras impostas pode obscurecer a possibilidade do estabelecimento coletivo de regras e normas, como propõe, por exemplo, a pedagogia institucional de Lapas- sade. A pedagogia burocrática, mais comum em nossa cultura, trabalha com os princípios de impessoalidade e hierarquia. As normas são defini- das nas instâncias superiores, e os alunos e alunas não participam da elaboração delas. O professor é o de- tentor do saber, e os alunos e alunas receptores passivos. A manutenção da ordem e a avaliação são funções prioritárias dos professores e pro- fessoras, que adestram os alunos e alunas para funcionarem como em- pregados passivos no capitalismo. O principal risco é que a mudança e a inovação fiquem prejudicadas. A pedagogia institucional é aquela na qual o professor ou professora não se coloca como detentor único do poder, e sim como facilitador den- tro do grupo. As normas e regras são definidas pelo grupo, assim como as formas de implementação das mesmas. As principais dificuldades são: (a) os professores e professo- ras têm dificuldade para abrir mão do poder e da posição de suposto saber; (b) os alunos e alunas têm di- ficuldade para assumir uma postura mais participativa, tanto por essa demandar um maior investimento quanto por terem sido treinados a se manter passivos na família e nas experiências educacionais anteriores (Lapassade, 1989). O discurso dos alunos e alunas apresenta uma percepção negativa do papel do professor como aquele

que cobra uma adequação ao que ele determina: “Ele exige tudo que ele passou, a gente tem que fazer igualzinho ele fez”. A insatisfação dos alunos e alunas se encontra em consonância com um discurso educacional de relações de poder mais igualitárias, e a percepção das ações do professor ou professora em consonância com relações de poder assimétricas. Já o excerto “É ... talvez fique melhor com a nossa opinião, mas tem que ser do jeito que ele espera” , aponta que a avaliação segue moldes tradicionais, onde é bem avaliado quem repete o professor e reproduz o discurso estabelecido. Este tipo de avaliação sobre o que é adequado dizer é incoerente com um discurso educacional democrático. Podemos pensar também no in- dividualismo. Quando o aluno diz: “Nem toda vez ele permite fazer o que a gente quer”, parece haver uma cobrança para que o professor ou professora se oriente pelos desejos individuais de cada aluno e aluna, e não pelo projeto grupal comum.

Excerto G: Entrevistador: _No item 33, “Os padrões de comportamento exigidos por esse professor são muito altos”, você marcou quase sempre. Por quê?

Porque ele é muito exigente no nosso comportamento. Ele não abre mão de jeito nenhum. Que haja con- versa, indisciplina na sala. (()) Ele é muito exigente, ele não se importa quem seja, não. _ [Outro membro do grupo toma a palavra, mesmo a pergunta sendo individual] por mais que ele goste. Por exemplo, a Bruna (todos os nomes utilizados são fictícios). Ela era um amor com ele e tal, aí ela tava conversando um dia. Ele não se importou que foi ela que tava conver- sando. Mandou ela pra fora e pronto. Ele não perdoa ninguém. Entrevistador: Vocês acham que ele trata igual pra turma toda, então?

Educação Unisinos

Daniel Matos, Alexandre Kaitel, Sérgio Cirino, Silvania Nascimento, Danusa Munford

_> = É, disciplina. = Disciplina sim, = Igual para todo mundo. = Disci- plina, é.

Até se o Joãozinho tiver conversan- do, (()) ele ... daria uma ocorrência para o Joãozinho._ (Alunas da escola C).

O individualismo volta a aparecer nesse exemplo. A questão de um interesse grupal em aprender que se sobreponha ao desejo individual de conversar não aparece na fala dos alunos. Parece que cobrar disciplina é um capricho ou desejo individual do professor. Aparece nessa fala uma represen- tação do papel do professor como alguém que cobra de forma impessoal, sem proteger aqueles alunos e alunas que têm com ele melhor relação. Ape- sar dessa cobrança ser percebida como exagerada, o tratamento igualitário a todos os alunos e alunas é percebido como algo positivo, em consonância com um discurso educacional demo- crático. Contextualizando a cobrança feita pelo professor, lembramos o que escrevemos sobre a pressão para me- lhorar o rendimento acadêmico, pro- vocada pelos resultados insatisfatórios da educação no Brasil e pela pressão do vestibular (geralmente maior nas escolas privadas). Passaremos agora para a análise da relação entre essas últimas falas dos alunos e alunas que acabaram de ser interpretadas. Nos Excertos E e F, os alunos e alunas descrevem o controle exercido pelo professor ou professora na sala de aula. Fairclough (2001a), ao discutir a questão da análise textual, aborda as características do controle interacional. Para ele, esse controle é exercido até certo ponto de uma forma colaborativa pelos participantes, mas pode existir uma assimetria quanto ao grau de controle nas interações discursivas. O sistema de tomada de turno na sala de aula é um exemplo do controle diferencia-

do exercido pelo professor. Assim, as falas citadas evidenciam que os alunos e alunas percebem essa rela- ção de assimetria. No Excerto G, as alunas indicam que o professor exige disciplina de uma maneira igual para todos, inclusive para um aluno que possui uma relação mais próxima com o professor. Dessa forma, um elemento contraditório aparece aqui no discurso das alunas: mesmo que a disciplina seja igual para todos, al- guns alunos e alunas são vistos como portadores de uma relação privilegia- da com o professor. Esses excertos mais uma vez indicam um embate entre o discurso dos alunos e alunas e o discurso institucional e social em relação à questão da igualdade de condições para todos na sala de aula. Ao analisar o discurso como prá- tica discursiva, Fairclough (2001a) aborda os processos de produção, distribuição e consumo textual. Nessa dimensão do discurso, o con- texto adquire um papel importante. Nas palavras do autor, “o efeito do contexto de situação sobre a inter- pretação textual (e produção textual) depende da leitura da situação” (Fairclough, 2001a, p. 112). Assim, podemos dizer que o contexto, a situ- ação na qual emerge o discurso, faz parte das condições de produção do discurso. A fala a seguir exemplifica essa questão:

Excerto H : > Eu acho que ele, tipo... Ele, na sala de aula não é como se fosse um professor com a gente. Ele gosta da gente como se fossemos, sei lá, filho, sobrinho, alguma coisa mais (()).

Eu acho o contrário. Eu acho o contrário. Ele é mais amigável fora de sala de aula do que dentro (()). Porque, por exemplo, eu converso com ele no MSN. Ele é completa- mente diferente. A gente conversa de coisas assim, opiniões e tal. Agora, ele na sala de aula ele cobra muito. Porque ele quer ver a gente se dando bem, entendeu? (Alunas da escola C).

Nesse excerto, as alunas evi- denciam a importância do contexto diferenciando a relação estabelecida com o professor ou professora dentro e fora da sala de aula. Fairclough (2001a) aponta que a investigação dos princípios interpretativos (re- lacionados com o contexto) usados para elaborar um determinado sen- tido permite revelar o investimento político e ideológico de um tipo de discurso. No caso específico da sala de aula, revela as identidades sociais de professores e professoras, alunos e alunas, e as relações entre elas. Em relação ao papel do profes- sor, existe um discurso social que identifica relações de afeto como próprias do ambiente familiar, en- quanto na escola o tratamento deve ser burocrático. Portanto, qualquer expressão de afeto desloca o lugar do professor ou professora e o aproxima do lugar de pai, mãe ou tia (este último termo até pouco tempo designava as professoras do Ensino Básico). Existem também discursos sociais opostos a este, dizendo que as relações na sala de aula devem ser menos assimétricas em relação ao poder e mais afetivas. Podemos perceber influências dos dois discur- sos nas falas apresentadas. Os alunos percebem o afeto do professor: “Ele gosta da gente como se fosse, sei lá, filho, sobrinho, alguma coisa mais” e percebem também uma diferença en- tre seu comportamento dentro e fora da sala de aula: “Ele é mais amigável fora de sala de aula do que dentro”. Esta diferença de postura dentro e fora da sala de aula é correlata às diferenças entre o que é considerado socialmente correto no ambiente de trabalho (cobrança) e no ambiente familiar (dar opiniões). As forma- ções discursivas que estabelecem o que pode ser dito são contingentes aos locais onde o discurso acontece. O papel do professor foi repre- sentado pelas alunas como aquele que cobra e estabelece o que é certo

Educação Unisinos

Daniel Matos, Alexandre Kaitel, Sérgio Cirino, Silvania Nascimento, Danusa Munford

Janeiro. Revista Brasileira de Educação , 15 :500-510. http://dx.doi.org/10.1590/ S1413- CAMERON, D. 2001. Working with spoken discourse. London, Sage Publications, 206 p. CHARAUDEAU, P.; MAINGUENEAU, D.

  1. Dicionário de análise do discurso. São Paulo, Contexto, 555 p. FAIRCLOUGH, N. 2001a. Discurso e mu- dança social. Brasília, Editora Universi- dade de Brasília, 316 p. FAIRCLOUGH, N. 2001b. A Análise Crí- tica do Discurso e a mercantilização do discurso público: as universidades. In: C.M. MAGALHÃES (org.), Reflexões sobre a análise crítica do discurso. Belo Horizonte, FALE-UFMG, p. 31-81. FISCHER, R.M.B. 2001. Foucault e a análise do discurso em educação. Cadernos de Pesquisa , 114 :197-223. Fraser, B.J. 1998. Classroom environment instruments: Development, validity and applications. Learning Environments Research , 1 :7-33. http://dx.doi.org/10.1023/A:

FRASER, B.J.; WALBERG, H.J. 1991. Educational environments: Evaluation, antecedents and consequences. Oxford, Pergamon Press, 335 p. FREIRE, P. 1987. Pedagogia do oprimido. São Paulo, Editora Paz e Terra, 213 p. LAPASSADE, G. 1989. Grupos, organiza- ções e instituições. 3ª ed., Rio de Janeiro, F. Alves, 316 p. MARTINS, I. 2007. Quando o objeto de inves- tigação é o texto: uma discussão sobre as contribuições da Análise Crítica do Discurso e da Análise Multimodal como referenciais para a pesquisa sobre livros didáticos de ciências. In: R. NARDI (org.), A pesquisa em ensino de ciências no Brasil: alguns recortes. São Paulo, Escrituras Editora, p. 95-116. MATOS, D.A.S. 2006. A percepção dos alunos do comportamento comunicativo do professor de ciências. Belo Horizonte, MG. Dissertação de Mestrado. Univer- sidade Federal de Minas Gerais, 170 p. MORTIMER, E.F.; SCOTT, P.H. 2003. Meaning making in secondary science classrooms. Maidenhead Philadelphia, Open University Press, 141 p.

NASCIMENTO, S.S. 2007. A linguagem e a investigação em educação científica: uma breve apresentação. In: R. NARDI (org.), A pesquisa em ensino de ciências no Brasil: alguns recortes. São Paulo, Escrituras Editora, p. 131-142. OLIVEIRA, J.B.A. 2005. Desigualdade e políticas compensatórias. In : C. BRO- CK; S. SCHWATZMAN, Os desafi os da educação no Brasil. Rio de Janeiro, Nova Fronteira, p. 13-41. SAVIANI, D. 1995. Escola e democracia. Campinas, Autores Associados, 112 p. SHE, H.C.; FISHER, D. 2000. The deve- lopment of a questionnaire to describe science teacher communication beha- vior in Taiwan and Australia. Science Education , 84 :706-726. http://dx.doi. org/10.1002/1098-237X(200011)84:6<706::AID- SCE2>3.0.CO;2-W SIROTA, R. 1994. A escola primária no coti- diano. Porto Alegre, Artes Médicas, 168 p.

Submetido: 16/07/ Aceito: 22/02/

Daniel Abud Seabra Matos Universidade Federal de Ouro Preto Departamento de Educação Instituto de Ciências Humanas e Sociais Rua do Seminário, s/n, Centro 35420-000, Mariana, MG, Brasil Alexandre Frank Silva Kaitel Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais Curso de Psicologia Rua Walter Ianni, 255, São Gabriel 31980-110, Belo Horizonte, MG, Brasil Sérgio Dias Cirino Universidade Federal de Minas Gerais Departamento de Métodos e Técnicas de Ensino Av. Antônio Carlos, 6627 31270-901, Belo Horizonte, MG, Brasil Silvania Sousa do Nascimento Universidade Federal de Minas Gerais Departamento de Métodos e Técnicas de Ensino Av. Antônio Carlos, 6627 31270-901, Belo Horizonte, MG, Brasil Danusa Munford Universidade Federal de Minas Gerais Departamento de Métodos e Técnicas de Ensino Av. Antônio Carlos, 6627 31270-901, Belo Horizonte, MG, Brasil